Se hoje Jorginho, Allan e Leandrinho podem levantar bandeiras brasileiras no sul da Itália, eles devem muito a outros jogadores de nossa terra que chegaram a Nápoles há bastante tempo. Muito antes que Jorginho trocasse o verde e amarelo pela bandeira tricolore, o capitão Paulo Innocenti fez mais de 200 jogos entre as décadas de 1920 e 1930, Luís Vinício anotou 70 gols na década de 1950 e a dupla Alemão e Careca levantou o scudetto em 1990.
Este título teve como astro-rei, é claro, Diego Maradona. E é importante que se fale do argentino mesmo quando estamos falando quase que exclusivamente dos brasileiros. Isso porque, apenas um atleta brasiliano teve a honra de usar a mítica camisa 10 depois que Maradona deixou o clube partenopeo: Joubert Araújo Martins, o popular Beto.
Nascido em Cuiabá, Beto apareceu para o mundo do futebol no Botafogo, em 1995, quando passou de um recém-promovido das categorias de base a homem de confiança de Paulo Autuori. O jogador foi titular em 24 partidas na campanha do título brasileiro do Alvinegro, formando um meio-campo com Leandro Ávila, Jamir e Sérgio Manoel. E o troféu nacional ganhou a companhia de uma conquista com a Seleção Brasileira quando Beto sagrou-se campeão do torneio Pré-Olímpico de 1996, inclusive marcando um belo gol no jogo decisivo, contra a Argentina. A vaga nos Jogos de Atlanta escapou das mãos do meia em virtude de uma lesão, mas a alegria chegou em sua vida de outra forma: uma transferência para o futebol italiano.
Os olheiros do Napoli foram ao Brasil e voltaram com duas indicações: um garoto dentuço de apenas 15 anos começava a encantar a todos nas categorias de base do Grêmio, enquanto um outro jovem de 20 anos de idade já havia sido até convocado por Zagallo para a Copa América de 1995. A primeira aposta parecia arriscada demais e não dá para julgar que o time italiano tenha sido mais conservador, optando pelo botafoguense.
E se hoje a ideia de que alguém tenha preferido Beto a Ronaldinho Gaúcho parece absurda, na época de sua contratação o brasileiro também foi comparado a outra estrela do futebol mundial. O presidente napolitano Corrado Ferlaino alegou que com a chegada do novo camisa 10 não havia a menor necessidade de o time contratar Roberto Baggio.
O início da história do jogador com o novo time foi maravilhoso. Na terceira rodada da Serie A o Napoli foi a Gênova enfrentar a Sampdoria e voltou com os três pontos graças a um golaço de Beto, que aplicou uma caneta no veterano Moreno Mannini e soltou um foguete da entrada da área. Tudo ia bem no time, que além de Beto tinha os também brasileiros André Cruz e Caio Ribeiro.
O segundo gol veio na vitória por 4 a 2 sobre o Perugia, em novembro, e até então o Napoli dava sinais de que poderia brigar na parte de cima da tabela. Na pausa para as festas de fim de ano a equipe era a vice-líder e no confronto direto com a primeira colocada, a Juventus, os napolitanos arrancaram um empate em Turim. Era só manter o mesmo nível na segunda metade do campeonato, mas não foi o que aconteceu com o time e, em especial, com Beto.
Na década de 1990, o drible e a técnica não eram as únicas coisas que caracterizavam o jogador brasileiro aos olhos europeus. Atrasos na volta de feriados também eram uma de suas marcas registradas. Em janeiro de 1997, Beto chegou dois dias depois do combinado para a reapresentação do elenco pós-pausa natalina e, sincero, nem tentou inventar qualquer tipo de desculpa. Só disse que queria passar mais tempo com a família e com a namorada.
Assim o brasileiro ficou fora do jogo contra a Fiorentina e um irreconhecível Napoli foi facilmente batido por 3 a 0. Beto teve a faca e o queijo na mão para mostrar, contra a Inter, na rodada seguinte, que o time precisava dele para voltar aos trilhos, mas foi expulso de maneira tola, por colocar a mão na bola, e o Napoli sofreu nova derrota. Depois disso, tudo passou a dar errado para clube e jogador. Apenas uma vitória em 13 jogos e queda livre na tabela. E mesmo quando Beto voltou a jogar bem e a ser decisivo as coisas não saíram como o planejado.
Acumulando vitórias magras contra times de pouca expressão, o Napoli foi avançando na Coppa Italia e, após bater a Lazio nas quartas de final, chegou a hora de enfrentar a Internazionale nas semis. Um mês depois de empatar o primeiro jogo em Milão, o Napoli começou a segunda partida sofrendo um gol de Javier Zanetti, mas chegou ao empate salvador depois que Beto recebeu na intermediária, se livrou de dois marcadores com um só toque e bateu entre as pernas do goleiro Gianluca Pagliuca.
Nos pênaltis, classificação dos azzurri, mas o conto de fadas não teve um final feliz para o cuiabano. Não só porque o seu time foi batido na final pelo surpreendente Vicenza de Francesco Guidolin, mas também porque o meia ficou no banco de reservas nos dois jogos da decisão, inclusive deixando algumas lágrimas escaparem.
Três dias depois de perder o título, o Napoli voltou a enfrentar o Vicenza, dessa vez pela última rodada do Campeonato Italiano. E como o destino gosta de aprontar das suas, Beto marcou o único gol do jogo e foi um dos poucos jogadores a escaparem das vaias dos torcedores na despedida da temporada.
Um afago após meses de muitos problemas, mas não dava para negar que os dias do brasileiro em Nápoles haviam perdido o brilho. Foi então que Beto resolveu voltar ao Brasil para defender o Grêmio, então campeão brasileiro. Até hoje, o meia figura em um seleto grupo de apenas cinco jogadores que usaram a camisa 10 napolitana no intervalo entre a saída de Maradona e a aposentadoria da camisa, que aconteceu em agosto de 2000.
A passagem pelo Grêmio também foi fugaz e apenas no Flamengo o jogador conseguiu fincar raízes, defendendo a equipe por quatro anos – ficando seis meses emprestado ao São Paulo. No time da Gávea, Beto foi campeão de três Campeonatos Cariocas, uma Copa Mercosul e uma Copa dos Campeões. Durante os tempos de Flamengo o jogador também venceu a Copa América com a Seleção, em 1999, quando chegou ao grupo no apagar das luzes, substituindo o lesionado Leonardo.
Nos anos seguintes tornou-se um dos poucos jogadores a atuar nas quatro grandes equipes do futebol carioca, passando por Fluminense e Vasco, vencendo um Campeonato Carioca em cada um. Uma última tentativa de jogar fora do Brasil ainda ocorreu no Japão, mas o jogador se envolveu em uma confusão que começou em um restaurante e acabou na delegacia, e teve seu contrato com o Sanfrecce Hiroshima rescindido. Beto se aposentou em 2009 e desde então trabalha com a esposa em um buffet de festas infantis e tem também uma distribuidora de gelo, bebidas e artigos para churrascos.
Confira a entrevista feita com o jogador e a sua ficha técnica:
Hoje estamos vendo jogadores de potencial saindo cada vez mais cedo do Brasil, como o Vinícius Junior e o Paulinho. Você chegou no Napoli com 21 anos: foi uma idade boa ou você acha que foi muito cedo?
Naquela época era totalmente diferente de hoje. E naquela época a gente não saía tão cedo como hoje. Hoje, com 17 anos o jogador assina um contrato e com 18 já se apresenta ao clube. Eu já fui [para a Europa] mais maduro, já era campeão brasileiro, já estava na seleção principal… Hoje o mercado está mais propício pra molecada. Eles vêm buscar só a molecada. E pela necessidade dos clubes brasileiros a venda é de imediato.
Na época, a Serie A era o principal campeonato do mundo. Você sabia disso ou não tinha dimensão da qualidade dos jogadores que enfrentaria ou jogaria junto?
Eu já sabia. Quando mais jovem eu acompanhava o Campeonato Italiano pela Bandeirantes. Já tinha experiência pelo menos em assistir o campeonato. Eu só não esperava chegar onde eu cheguei tão rápido, porque eu cheguei em 1993 no Botafogo, em 1994 estava no profissional, em 1995 eu já estava na seleção principal, depois fui campeão brasileiro e aí fui vendido pro Napoli. Tudo na minha carreira foi de imediato.
Quando você foi apresentado, o presidente disse que com você no time eles não precisariam mais contratar Roberto Baggio. Como você se sentiu?
Pra mim foi uma emoção muito grande. Eu cheguei lá e sem nem eu ter jogado a torcida já tinha me abraçado. E eu fui o camisa 10 do Napoli. Acho que nenhum jogador estrangeiro usou a camisa 10 depois do Maradona. Eu fui esse jogador. [Nota: o argentino Roberto Sosa usou a 10 quando o Napoli caiu para a Serie C e a numeração era fixa. Fora essa situação, Beto está correto].
Como você reagiu quando soube que iria usar a camisa 10 do Maradona? De quem foi a ideia? Sua, do presidente ou do treinador?
A ideia foi deles, porque quando eu cheguei na cidade eles me deram a camisa 8. Daí eu tirei foto com a camisa 8, mas acho que na verdade eles fizeram uma surpresa pra mim (risos). Me deram a 8 e na hora de me apresentar me deram a 10. Eu fiquei radiante, porque só depois de tudo, de fazer os exames, é que me deram a 10. Ali eu fiquei maluco (risos).
Isso foi um tipo de pressão extra? Quem dava mais valor ao fato de você usar a camisa do Maradona, você ou a torcida?
Assim que eu cheguei a torcida já estava com um carinho enorme por mim, eu nem entendia porquê. Aí comecei a fazer pré-temporada me recuperando de contusão (lesão essa que tirou o jogador das Olimpíadas de Atlanta, em 1996) e acho que pelo carisma, pela maneira como eu tratava todo mundo, eles me abraçaram. Tanto é que a minha estreia em um amistoso deu mais de 60 mil pessoas. Daí o treinador (Luigi Simoni) me chamou, conversou comigo e me perguntou se eu conseguiria jogar quinze minutos porque a torcida queria me ver. Eu disse que sim, que daria. Faltando 25 minutos eu levantei do banco para aquecer. Daí conforme eu ia andando o estádio todo ia levantando. Foi uma coisa que marcou minha vida. Entrei no jogo muito bem, dando assistência e fazendo jogadas de efeito. Aí conquistei a torcida.
No seu último jogo com o Napoli, contra o Vicenza, a torcida vaiou todos os jogadores, menos você. Ali você já havia decidido que iria sair? Se sim, aquilo te balançou?
Ali eu não tinha decidido sair não, só fiquei chateado por não ter jogado a final (da Coppa Italia). Eu estava muito bem e todo mundo estava pedindo pra eu jogar. Mas aí eu tive a proposta do Grêmio, na época a cotação do dólar era quase igual e tinha a chance de disputar a Libertadores e o Brasileiro em um time forte, daí eu resolvi voltar. Mas ali eu não tinha resolvido voltar ainda não. Tanto que voltei pra pré-temporada seguinte do Napoli, cheguei a treinar.
Nos anos seguintes à sua saída, o Napoli foi perdendo muita força (até foi rebaixado na temporada seguinte) e enfrentou graves problemas financeiros. Já dava pra perceber que as coisas iam mal quando você estava lá?
Eu fiquei muito surpreso, porque a gente tinha o salário em dia, premiação em dia, vim embora para o Brasil sem nenhum atraso, então fiquei muito surpreso com o que aconteceu quando eu saí de lá. Parecia coisa de Deus, né? Não porque eu saí, mas quando eu saí aconteceu tudo isso. Foi uma coisa que me pegou muito de surpresa.
Qual sua principal lembrança dos tempos em que jogou no Napoli?
A melhor lembrança que eu tenho, é claro que é a semifinal da Coppa Italia, contra a Inter de Milão, emque graças a Deus eu fiz um gol que levou a disputa para os pênaltis. Mas uma que marcou também foi a vitória contra a Sampdoria, que eu fiz um gol muito bonito e ganhamos de 1 a 0. Outra memória boa é que aonde eu ia em Nápoles as pessoas me paravam, até no trânsito, para tirar foto e para eu dar autógrafo. A polícia ia na minha casa para tomar café! Tive bastante amizade com o pessoal, com todo o povo napolitano. Graças a Deus nunca tive problema nenhum com torcedores e nem com ninguém. Só agradeço por tudo o que eles fizeram por mim. Infelizmente eu fiquei pouco tempo, mas o pouco que eu fiquei fui muito feliz lá.
Acompanha os jogos do Napoli hoje em dia? Tem um jogador favorito? O que você acha do Allan?
Acompanho sim e fico triste porque eles ficaram com a mão na taça e na reta final parece que deu um branco nos jogadores e os caras perderam e empataram jogos bobos. Às vezes o título tá na mão e eles não conseguem. Eles têm que ganhar pra entrar pra história, ninguém ganhou o campeonato depois que o Maradona saiu, e teve um investimento muito grande! Todo mundo tá jogando muito, o Allan, o Jorginho, o Hamsík, tem um baixinho que joga muito (Insigne), o Callejón… Eu acompanho muito o Campeonato Italiano e principalmente o Napoli. Se você olhar lá no meu Instagram de vez em quando eu posto algumas coisas do Napoli. E eu quero ir lá… se der esse ano ainda eu vou. Quero passear, a cidade é bonita, o pessoal pede para eu ir lá.
Joubert Araújo Martins, o Beto
Nascimento: 7 de janeiro de 1975, em Cuiabá (MT)
Posição: meia
Clubes: Botafogo (1994-96), Napoli (1996-97), Grêmio (1997-98), Flamengo (1998-2000 e 2001-02), São Paulo (2000), Fluminense (2002), Consadole Sapporo (2003), Vasco (2003-04 e 2008), Sanfrecce Hiroshima (2004-06), Itumbiara (2007), Brasiliense (2007), Mixto (2008), Confiança (2009) e Imbituba (2009)
Títulos conquistados: Campeonato Brasileiro (1995), Campeonato Carioca (1999, 2000, 2001, 2002 e 2003), Taça Guanabara (1999, 2002 e 2003), Taça Rio (2000), Copa Mercosul (1999), Copa dos Campeões da CBF (2001) e Copa América (1999)
Seleção brasileira: 13 jogos e 2 gols