Luciano Gaucci é uma das figuras mais exóticas do futebol italiano. Ele ficou no comando do Perugia durante 13 anos e, volta e meia, fazia barulho por algum motivo. Habitualmente batia de frente com a federação por arbitragens mais condescendentes para com sua equipe – o presidente geralmente falava que os grifoni “eram roubados” –, mas também tentou assinar com uma jogadora para a equipe masculina e levou ao parlamento europeu a polêmica da dispensa do coreano Ahn Jung-hwan, que marcou o gol que eliminou a Azzurra da Copa do Mundo de 2002. O dirigente adorava publicidade. Sabe o lema “falem bem, falem mal, mas falem de mim”? Então dá para entender porque ele levou o filho do ditador Muammar al-Gaddafi para jogar na Úmbria.
“Jogar” talvez seja um verbo muito forte para classificar as andanças de Al-Saadi pela Itália. O líbio fez duas partidas incompletas em três anos, vestindo três camisas diferentes. A mais desejada, a da Juventus, não passou de um sonho de uma noite de verão.
Ligações
As histórias de Líbia e Itália se encontram em dois momentos separados por quase dois milênios. Um dos arcos do triunfo que sobreviveram ao tempo é o erguido pelo imperador líbio Septímio Severo. Ele foi construído próximo ao Monte Capitolino por volta do ano 203, em comemoração às vitórias contra o Império Parta. Em Tripoli, antiga Oea, é possível visitar o Arco de Marco Aurélio, romano que saiu vitorioso em outra guerra contra os partos – esta entre 161 e 166.
O país africano foi uma colônia da península entre as décadas de 1910 e 1940. Para o líder fascista Benito Mussolini, reocupar alguns estados do norte da África para formar um novo terreno ao sul do Império era essencial para a propaganda do regime – bem como manter a posse dos artefatos arqueológicos roubados das regiões de Cyrenaica e Tripolitânia no mesmo período. As relações diplomáticas só foram restabelecidas em 1947, dois anos após a morte do ditador.
De forma resumida, Gaddafi tinha vínculos estreitos com a península. Um dos amigos do ditador era o presidente da petrolífera Eni, Paolo Sacaroni. A famosa estatal do Belpaese tem um acordo para explorar, produzir e distribuir petróleo em território líbio que dura 59 anos e vai durar mais duas décadas, de acordo com a renovação realizada em 2007. Ademais, em 2011, a Líbia constava como a maior fornecedora de petróleo e a terceira maior de gás natural para a Itália. O país europeu era o principal comprador de petróleo bruto líbio e 99% das exportações líbias de hidrocarbonetos eram destinadas ao continente europeu.
Quatro contratos firmados pela Lafica também ajudam a compreender a relação entre Gaddafi, Itália e o filho do ditador que resolveu aparecer na Bota. Entre os anos 1970 e 2000, o banco estatal de investimento estrangeiro do país africano acertou a compra de ações da Finmeccanica, que supria a nação com armas de fogo e tanques de guerra; do principal banco italiano (Unicredit); da Fiat; e da Juventus. A montadora, por exemplo, teve participação do capital líbio para salvá-la da falência, em 1976 – o percentual foi de 9,5% no período inicial e chegou a 15% na fase áurea. Quando os rebeldes invadiram as instalações do ditador em Tripoli, durante a Primavera Árabe, eles encontraram um Fiat 500 de 200 mil euros na garagem.
Durante sua vida, Gaddafi teve uma ambição política maior do que a de governar a Líbia. Isso é mostrado com clareza no documentário “Mad Dog: Inside the Secret World of Muammar Gaddafi”, produzido pelo canal inglês BBC. O filme mostra como o coronel tomou o poder através de um golpe de estado e enriqueceu exponencialmente, em paralelo à saúde financeira das empresas estatais – o faturamento delas chegava a de 1 bilhão de dólares por semana. No entanto, revela traços mais interessantes sobre a figura do ditador que ficou conhecido como “cachorro louco” por causa da tirania e brutalidade contra seus opositores.
Se não perdoava antagonistas, Gaddafi tinha trânsito livre entre chefes de estado de outras nações africanas – e não só. O ditador era uma das figuras que encabeçavam o sentimento pan-africanista e visava ser o líder máximo de uma África forte perante o mundo. O vaidoso Gaddafi, com suas vestimentas excêntricas e hábitos opulentos, queria ser imagem e semelhança de um continente rico e renovado aos olhos do ocidente. Suas incursões comerciais na Europa, suas relações amistosas com Silvio Berlusconi e até mesmo o envolvimento de seu filho com o futebol serviam, também, como instrumentos de propaganda.
Caminho
As principais redes de televisão se aglomeraram na Torre Alfina. A apresentação de Al-Saadi, meia-atacante de 27 anos, aconteceu no castelo medieval que pertencia a Gaucci. O início da temporada 2003-04 do Perugia mais parecia um reality show, pelas palavras do atacante Emanuele Berrettoni. A Al-Jazira manteve uma equipe alocada na Itália para fazer a cobertura da pré-temporada completa do terceiro herdeiro mais velho de Gaddafi.
As teorias mais conhecidas sobre a contratação do playboy líbio contam que sua chegada fazia parte de um acordo de melhorias comerciais entre os países por meio de Berlusconi, amigo de Gaddafi, ou do próprio Gaucci, que também era próximo de alguns políticos. No entanto, Al-Saadi já tinha pisado na Itália com o propósito do desporto: em 1993, ele chegou a treinar com o time principal da Lazio e foi clicado de uniforme entre Paul Gascoigne e Dino Zoff. Curiosamente, dez anos depois do registro, o governo da Líbia se interessou pela compra da equipe da capital no momento em que a Cirio começava a ruir. O negócio, no entanto, não avançou.
A entrada da Líbia no futebol italiano se deu pela Atalanta: os Gaddafi estamparam o nome da petrolífera Tamoil durante 1989 e 1995 na camisa nerazzurra. Na década seguinte, a empresa líbia foi a principal patrocinadora da Juve – até 2007, pois o contrato de dez anos foi quebrado como punição por envolvimento de diretores do clube no Calciopoli. Se a Tamoil conseguiu uma participação de 33% na Triestina, a participação nas conversas para a compra da Roma antes da venda ao grupo americano de Thomas DiBenedetto não avançaram.
Dez em cada 10 textos sobre Al-Saadi informam, relatam ou relembram a qualidade questionável de seu futebol. Algo que não mudou nem mesmo após o filho do ditador contratar Diego Maradona como conselheiro e o ex-velocista Ben Johnson como personal trainer. O jornal La Repubblica chegou a escrever o seguinte sobre Al-Saadi: “ele é tão lento que, se fosse duas vezes mais rápido, ainda seria mais lento que a própria lentidão.” Seguimos.
Em Perugia, as grandes histórias de Gaddafi júnior aconteceram fora de campo. Gaucci pressionava Serse Cosmi pela escalação do jogador, mas o técnico permanecia inatingível: Al-Saadi não jogaria – inclusive ele era contra a presença do filho do ditador no elenco. Foi escalado somente uma vez: 15 minutos, em casa, numa vitória contra a Juve, pela antepenúltima rodada da Serie A 2003-04. O melhor lance dele foi um cruzamento errado após passe de Fabrizio Ravanelli. Antes disso, em outubro, um exame antidoping acusou traços de nandrolona e Al-Saadi foi suspenso por três meses. A isto se resumiu a passagem dele pelo Perugia.
Dinheiro
Al-Saadi tinha vantagens de ser quem era, afinal, estamos falando de um cara que pode escolher qualquer clube de Tripoli para jogar. A estreia aconteceu pelo Al-Ahly de Tripoli, mas Gaddafi somou a maior quantidade de gols pelo Al-Ittihad. O meia-atacante, aliás, representou a seleção da Líbia em 18 oportunidades.
O conto satisfaz as outras teorias: os treinadores eram forçados a chamar e escalá-lo. O italiano Franco Scoglio, por sua vez, foi demitido da seleção por não alinhar o jogador. Sua justificativa? “Ele era muito ruim, não tinha valor como jogador. O convoquei pro forma apenas para um jogo contra o Congo, mas sequer pedi que se aquecesse em minha gestão e ele foi embora antes do fim do primeiro tempo”. A influência era um peso, e o filho do ditador gostava de afirmar que tinha contribuído para a restauração da liga semiprofissional da Líbia. Por outro lado, Al-Saadi foi acusado de ser o responsável por uma operação tramada para rebaixar o Al-Ahly e demolir o estádio do clube, em 2000. Árbitros favoreciam o seu time e apenas o seu nome era anunciado pelos locutores nos estádios – os outros jogadores eram chamados apenas pelo número. Nessa época, ele era o presidente da federação de futebol local.
Em escala menor, estas demonstrações de poder também aconteceram na Itália. O já citado Berrettoni, companheiro de Gaddafi em 2003-04, contou uma delas ao Bleacher Report. O atacante não se lembra qual era o problema específico, mas lembra que o jogador líbio conseguiu uma consulta com o melhor médico da Itália, voou para Milão de helicóptero pela manhã e retornou a tempo para os treinamentos do período vespertino. A residência dele era um andar inteiro do Brufani Palace, luxuoso hotel cinco estrelas construído no topo de uma colina e próximo às ruínas de um castelo papal.
O zagueiro Salvatore Fresi, contratado por empréstimo naquele ano, se aproximou de Al-Saadi porque eles eram vizinhos. Às quartas-feiras, ele contou, os atletas treinavam em dois horários. Às vezes, o meia-atacante simplesmente virava para Fresi e falava, em italiano: “essa noite, você vem comigo”. O filho de Gaddafi tinha um jatinho disponível que o levava até Milão para jantar – ou para curtir a noite na Sardenha e, posteriormente Paris. Retornavam no dia seguinte.
É mais comum ver clubes ou patrocinadores dando carros para os atletas do elenco. Al-Saadi, entretanto, enviava automóveis Smart como presente de aniversário aos companheiros de time. Em uma ocasião específica, ele fez questão de pagar pela viagem do plantel perugino para uma festa em Monte Carlo, na Côte d’Azur, na qual os líbios fariam uma proposta para sediar a Copa do Mundo de 2010. A imprensa italiana noticiou que o evento era uma maneira para fazer com que ele conseguisse se encontrar com Nicole Kidman. No fim das contas, nem a atriz nem o jogador foram à festa; ele se ausentou devido a uma apendicite.
Benefícios e luxos mostravam uma pequena parcela de quem Saadi realmente era, segundo quem conviveu com ele na Itália. Se de um lado o atacante era capaz de pagar 300 mil euros para arranjar um amistoso entre o selecionado líbio e o Barcelona no Camp Nou, por outro, a simplicidade falava mais alto. Em mais de uma oportunidade, os jogadores italianos frisaram que ele era uma pessoa extremamente humilde.
Sonhos e freios
O sonho de Saadi era vestir a camisa da Juventus. Ele era torcedor? Pelo menos foi isso o que ele disse quando o pai declarou que havia adquirido as ações da Velha Senhora, em 2003. O investimento inicial do ditador foi de 23 milhões de euros. O problema para o jogador era exclusivamente o futebol. Nem o bianconero nem o Milan permitiam espaço ao líbio. O amigo Berlusconi não queria assinar com um profissional pífio para um clube que já mostrava sinais de sucesso com Carlo Ancelotti.
O ex-jogador Valerio Bertotto resumiu o meia-atacante em palavras mais brandas que o La Reppublica: “ele foi um torcedor que teve a oportunidade de ser um futebolista por um momento, mas não foi um jogador de verdade. O pé esquerdo dele não era muito, muito, muito ruim. Se ele tivesse com a bola e quisesse fazer um lançamento longo, ele conseguiria. Mas fisicamente ele não tinha estrutura para jogar futebol: não tinha força, fôlego e não era rápido”. Ele foi o capitão da Udinese em 2005, portanto, dividindo o vestiário com o filho do “cachorro louco”.
Depois que Gaucci foi acusado de corrupção, abandonou a Itália rumo à República Dominicana e o Perugia foi à falência na Serie B, Al-Saadi precisava de um novo contrato se quisesse permanecer no Belpaese. A opção foi assinar um vínculo com a Udinese, em transferência a custo zero, para ser mais um atleta à disposição do novo treinador – ironicamente, os friulanos haviam acabado de assinar com Cosmi, que o vetava na Úmbria.
O estilo de vida permaneceu o mesmo, visto que ele se mudou de um hotel luxuoso para outro. Ivano Molinaro, porteiro do Là di Moret, afirmou que as contas do jogador eram “astronômicas” e debitadas diretamente da conta ao ditador. A propósito, algumas histórias dão conta de que os cachorros do atleta tinham um quarto só para eles e dormiam nas camas (enquanto os instrutores ficavam no chão) e que a assistente da esposa do jogador pediu litros de leite para tomar banho na banheira – incidente que chateou o dono do hotel, visto que não tinha mais leite para servir aos hóspedes pela manhã.
A Udinese era uma das equipes classificadas para a Liga dos Campeões daquele ano, mas não, o currículo de Al-Saadi não mostra qualquer participação do líbio na competição continental ao lado de Antonio Di Natale e Vincenzo Iaquinta – para amenizar e até explicar ausências, o meia-atacante teve de retornar à terra natal durante a temporada para lidar com questões familiares.
Quando Giovanni Galeone assumiu a bronca após a demissão de Cosmi, acabou dando uma chance a Gaddafi. No último jogo da temporada, em casa, contra o Cagliari, o atacante entrou aos 35 minutos do segundo tempo sob aplausos irônicos da torcida friulana e quase marcou um gol de voleio – Antonio Chimenti conseguiu desviar o chute para escanteio.
Página final
Al-Saadi teve méritos em mudar a visão do pai sobre o futebol e reintroduzir o esporte do país no cenário internacional – algo exemplificado pela proposta de 6 bilhões de dólares para sediar a Copa do Mundo que ficou com a África do Sul, aquela da festa sem Nicole Kidman. No The Green Book, livro de 1975 que apresenta as visões políticas de Gaddafi e é considerada leitura obrigatória para os líbios, o ditador afirma que esporte é uma atividade que não pode ser assistida, e sim praticada. As regras da prática desportiva no território africano, proibidas durante um período, foram afrouxadas pelo pai exatamente pela paixão do atacante – tanto é que a Supercopa italiana foi disputada na capital líbia em 2002.
Para o futebol italiano, a carreira pouco longeva em campo foi irrelevante a ponto de não superar Rivaldo na votação do Bidone d’Oro, em dezembro de 2003. O líbio recebeu 21,5% dos votos da insólita premiação, enquanto o brasileiro ficou com a lixeira dourada depois de só ter entrado em campo uma vez na segunda temporada pelos rossoneri e ter rescindido o contrato em novembro. Rivaldo foi lembrado por 28% do público votante.
A passagem pela Itália acabou em 2007, depois que mais um time (Sampdoria) não lhe deu oportunidades. O quase-trequartista não conseguia se impor por questões físicas, mesmo estando na fase que seria o auge atlético de um jogador, ainda aos 30 anos. Fresi foi direto ao comentar este aspecto do líbio: “era como colocar um menino de 13 anos num grupo de atleta mais velhos”.
Aos amantes do futebol, fica a história pitoresca. Aos colecionadores, chegou a haver uma camisa de Al-Saadi à venda no eBay. Como tudo o que envolveu a carreira do filho de Gaddafi, o preço era salgado: 2,5 mil euros.
Hoje, porém, a grana e o luxo estão bem distantes da realidade de Al-Saadi. Após a guerra civil que se instaurou na Líbia, em 2011, seu pai foi assassinado pelos rebeldes, que tomaram o poder e começaram a construir uma fragílima democracia. Comandante das forças especiais do governo, o ex-playboy fugiu para o Níger e ficou foragido até 2014, quando foi capturado e extraditado para seu país. Gaddafi júnior chegou a ser torturado na cadeia e, cumpriu pena preventiva pela acusação de ser mandante de diversos assassinatos. Acabou se livrando do indiciamento definitivo e, em 2021, foi morar na Turquia.
Al-Saadi Gaddafi
Nascimento: 25 de maio de 1973, em Trípoli, Líbia
Posição: atacante
Clubes: Al-Ahly Tripoli (2000-01), Al-Itihhad Tripoli (2001-03), Perugia (2003-04), Udinese (2005-06) e Sampdoria (2006-07)
Seleção líbia: 18 jogos e 2 gols