Jogos históricos

Juventus e Fiorentina fizeram uma final rocambolesca na Copa Uefa de 1990

No século XIX, o romancista francês Ponson du Terrail fazia sucesso com seus folhetins inusitados e personagens marcantes. O mais famoso deles, Rocambole, sempre se metia em situações mirabolantes. Ele inspirou o bolo de mesmo nome e o adjetivo que define circunstâncias espalhafatosas, mas poderia também influenciar facilmente tramas na vizinha Itália. Dentre elas, uma das finais mais emocionantes da antiga Copa Uefa: aquela entre Juventus e Fiorentina, pela temporada 1989-90. Foi a primeira vez que dois times italianos se enfrentaram em uma decisão europeia.

Aquela edição da Copa Uefa foi a última sem times da Inglaterra, suspensos por conta da ação dos hooligans do Liverpool na tragédia no estádio de Heysel, em 1985, que matou 39 pessoas e feriu 600 antes da final da Copa dos Campeões contra a Juventus. A ausência dos ingleses contribuiu para que equipes de outras nações da Europa ganhassem os holofotes e também permitiu que a hegemonia dos italianos se consolidasse. Além da decisão entre Juve e Fiorentina, o Napoli faturou a mesma competição no ano anterior e o Milan foi bicampeão continental em 1989 e 1990.

Apesar disso, a reta final da década de 1980 foi estranha para a Juventus. Após a conquista da Copa dos Campeões naquele trágico 1985 e lidar com a aposentadoria de Michel Platini, a Velha Senhora passou por um momento de reconstrução, no qual ficou longe de conquistar títulos. Não por ter equipes ruins, pelo contrário. Nomes como Stefano Tacconi, Rui Barros, Sergio Brio e o polivalente Angelo Alessio passaram por lá, por exemplo. No entanto, a dominância do Napoli e dos times de Milão no Campeonato Italiano fez com que a Juve ficasse anos sem levantar o scudetto.

Em 1988, a lenda bianconera Dino Zoff assumiu o cargo de técnico da Juventus e a classificou para a Copa Uefa. Um ano depois, recebeu os reforços de Alessio, que retornava de empréstimo ao Bologna, e também de Dario Bonetti, Sergei Aleinikov, Pierluigi Casiraghi e Salvatore Schillacci. Com um time mais qualificado, os piemonteses venceram a Coppa Italia sobre o Milan e fizeram bonito na competição continental.

Na Copa Uefa, os bianconeri eliminaram Górnik Zabrze, da Polônia, por um placar agregado de 5 a 2, Paris Saint-Germain, da França (3 a 1), e Karl-Marx-Stadt, da Alemanha Oriental (3 a 1), antes de terem dois adversários da Alemanha Ocidental pela frente. Nas quartas, com um 3 a 2, a Juventus deu o troco no Hamburgo, para o qual havia perdido a final da Copa dos Campeões de 1983. Nas semifinais, repetiu a dose diante do Köln, que havia eliminado, nas oitavas, o poderoso Estrela Vermelha – que levantaria a orelhuda no ano seguinte.

Principal nome da Fiorentina, Baggio lamentou a derrota para a Juventus na ida da final da Copa Uefa (Onze/Icon Sport)

A Fiorentina também vivia uma montanha-russa na reta final dos anos 1980. Jogadores importantes deixaram a agremiação, o treinador sueco Sven-Göran Eriksson foi demitido no verão de 1989 e, em seu lugar, chegou Bruno Giorgi, que quase conseguiu a façanha de levar o Cosenza para a Serie A. O novo técnico não fez a equipe deslanchar no campeonato e, apesar de ter conduzido a Viola às semifinais da Copa Uefa, o fato de os gigliati brigarem contra o rebaixamento pesou na decisão da diretoria. No fim de março de 1990, Francesco Graziani aportou em Florença.

O ídolo do Torino encontraria um elenco repleto de jovens inexperientes, mas talentosos: o goleiro Marco Landucci, o meia-atacante Renato Buso, o centroavante Marco Nappi e um certo Roberto Baggio, projeto de craque, e que já marcava seu nome na história italiana. Além deles, o plantel tinha o versátil capitão Sergio Battistini, o ala Alberto Di Chiara, os volantes Dunga e Lubos Kubík, e os defensores Celeste Pin e Giuseppe Volpecina.

Aos trancos e barrancos na Serie A, a Fiorentina escapou do rebaixamento na última rodada. A Viola, vale destacar, teve de mandar diversas partidas fora de casa, porque o estádio Artemio Franchi estava passando por reformas em virtude da Copa do Mundo de 1990. O Renato Curi, de Perugia, foi uma das praças mais utilizadas pelos gigliati e foi o escolhido para receber os jogos da equipe pela Copa Uefa.

Sob o comando de Giorgi, os toscanos superaram várias pedreiras na competição europeia. Logo na primeira fase, após empate por 1 a 1 no placar agregado com o Atlético de Madrid, da Espanha, avançou nos pênaltis. Depois, repetiu o somatório contra o Sochaux, da França, e se classificou devido ao gol marcado fora de casa. A Fiorentina também passou pelo Dynamo Kyiv, da União Soviética (1 a 0) e pelos franceses do Auxerre (2 a 0).

Apesar da rispidez de Dunga, Casiraghi conseguiu marcar na ida (Allsport)

Já com Graziani à beira do campo, a Fiorentina passou com dificuldades pelo Werder Bremen, após outro 1 a 1 e nova vantagem no gol qualificado. Os alemães ocidentais chegaram às semifinais com pompa. Afinal, haviam batido o Napoli de Diego Armando Maradona, que defendia o título do torneio – e haviam vingado a Juventus, que fora eliminada pelos azzurri nas quartas de final da temporada anterior.

Os duelos com a Viola foram tensos e, no Curi, houve confusão: na volta para o segundo tempo, o goleiro Oliver Reck, do Werder Bremen, avistou um cachecol do adversário preso nas redes de sua meta e foi retirá-lo. Um torcedor da Fiorentina não gostou do gesto, invadiu o gramado e deu um tabefe no arqueiro. Por isso, a equipe toscana sofreu uma punição da Uefa e perdeu o mando de campo da partida de volta da decisão europeia. A entidade fez uma opção polêmica e levou o jogo para o estádio Partenio, em Avellino, no sul da Itália. Uma região conhecida por ser reduto da torcida da Juventus, rival gigliata na disputa pelo título.

O jogo de ida aconteceu em Turim, no estádio Comunale – atual Olímpico Grande Torino. Os bianconeri superlotaram sua casa: cerca de 47,5 mil pessoas compareceram para assistir a final, no dia 2 de maio de 1990. Os ânimos estavam à flor da pele e a partida começou elétrica. Aos 3 minutos, Schillaci arrancou pelo lado direito e cruzou para Roberto Galia, que aproveitou um buraco na defesa da Fiorentina para aparecer como elemento surpresa e chutar de primeira para o gol, abrindo o placar para os piemonteses.

Mas os torcedores da equipe de Turim tomaram um susto pouco depois, quando Baggio perdeu um gol na pequena área. Aos 10 minutos, Buso, promessa que não vingou na Juve, recebeu cruzamento de Di Chiara e, de cabeça, escorou para as redes, empatando para a Fiorentina. A Viola poderia ter virado o placar com testada perigosa de Nappi, mas Tacconi fez uma defesa segura. Aliás, o goleiro bianconero foi fundamental para impedir que Robi Baggio marcasse, num lance cara a cara, e parou o ataque toscano em toda a etapa inicial – na qual os gigliati foram superiores.

Após a ida, em Turim, Fiorentina e Juventus disputaram o jogo de volta em Avellino, no sul da Itália (Allsport)

Na segunda etapa, Zoff colocou Alessio no lugar do capitão Brio para dar mais munição ao ataque. Deu certo: a Juventus equilibrou o jogo e, aos 59 minutos, após troca de passes, a Velha Senhora chegou até a área adversária com um cruzamento. O lance que se seguiu foi confuso. Casiraghi claramente empurrou Battistini, que acabou escorando sem querer para Galia. O volante tentou anotar sua doppietta numa meia-bicicleta, a bola acabou tocando no braço de Giuseppe Volpecina e a sobra ficou com o próprio Casiraghi, que só completou para a rede. A partir de então, o árbitro espanhol Emilio Soriano Aladrén passou a ser conhecido como “Aladron” pela fanática torcida violeta.

Depois do gol, a Juventus recuperou a confiança e dominou o jogo. Nem mesmo Baggio, que seguia atormentando a vida da zaga bianconera, impediu que os mandantes ampliassem o placar. Aos 73 minutos, após uma cobrança de escanteio, Luigi De Agostini aproveitou a bobeada da Fiorentina e chutou forte. Resultado? A bola pingou, surpreendeu Landucci e morreu nas redes. Estava concretizada uma ótima vantagem para a Juve usufruir no duelo de volta.

Se a missão de reverter o placar de 3 a 1 no segundo jogo da final já era complicada para a Viola, ela se tornava ainda mais difícil por conta da transferência do duelo para Avellino, onde milhares de juventinos tomariam as arquibancadas. Era como atuar na casa da rival novamente. E, no fim das contas, a Fiorentina não fez uma boa partida, mesmo com um jogador a mais por cerca de meia hora, devido à expulsão do bianconero Pasquale Bruno. O máximo que os toscanos conseguiram foi colocar uma bola na trave.

O empate sem gols determinou o título continental para a Velha Senhora – o segundo da equipe na história da competição que antecedeu a Europa League. Se Zoff e seus comandados faziam festa, Graziani dava adeus à Viola, pois sabia que o brasileiro Sebastião Lazaroni lhe substituiria após a Copa do Mundo. O clima nos vestiários gigliati era de velório. A final ocorreu no dia 16 de maio, exatamente oito anos depois da polêmica última rodada da Serie A, que Juventus e Fiorentina disputavam ponto a ponto. Tal qual em 1982, os bianconeri levavam a melhor.

Com a perda do título e a saída de Baggio para a Juventus, a Fiorentina viveu clima de velório após a decisão (Onze/Icon Sport)

O vice-campeonato na Copa Uefa e a coincidência das datas das frustrações diante da grande rival já era motivo suficiente para o torcedor da Fiorentina sofrer. Mas, como desgraça pouca é bobagem para o coração gigliato, o pós-decisão teve mais fatos rocambolescos, e com uma origem em comum. No dia seguinte à perda do título, a diretoria anunciou a venda de Baggio para a própria Juventus, por 25 bilhões de liras – um recorde na época.

A temporada da Fiorentina foi marcada por protestos da torcida, que chegou até a fazer greve para que Baggio não fosse negociado. O fantasma da venda do craque assombrava o clube, apesar da vontade de permanência do próprio Robi. Quando a transação foi informada por Claudio Pontello, irmão de Flavio Pontello, dono da agremiação, a fúria dos torcedores eclodiu.

Florença foi palco de protestos violentos e a polícia teve de ser acionada. A revolta era tanta que os gigliati chegaram a invadir o centro de treinamentos de Coverciano, nos arredores da cidade, onde a seleção italiana, que contava com o Divino Codino, treinava para a Copa de 1990. A Nazionale precisou até se transferir para Marino, comuna próxima a Roma.

No fim das contas, um dos alvos da revolta era o próprio sistema futebolístico nacional, representado pela pujança da Juventus, que tinha força nos bastidores para fazer a Uefa escolher uma cidade bianconera para a disputa da final e que, com a complacência da diretoria da Fiorentina, tirava o maior craque da equipe de Florença. O clima hostil na capital da Toscana permaneceu por anos: o povo foi para a rua comemorar a vitória da Argentina sobre a Itália na semifinal da Copa de 1990 e o triunfo do Brasil sobre os azzurri, na decisão de 1994. Em 1993, num amistoso entre a seleção italiana e o México, disputado no Artemio Franchi, o hino nacional dos mandantes foi vaiado.

Aquela final em maio de 1990 foi catártica para os dois clubes. Com Baggio, que se resignou com a transferência anteriormente indesejada e virou ídolo em Turim, a Juve se tornava ainda mais forte – e ganharia mais um título da Copa Uefa em 1993, por exemplo. Já a Fiorentina, após a venda do craque, passou por outra reconstrução. A família Pontello chegou a afirmar categoricamente que permaneceria na agremiação, mas acabou “expulsa”. No verão europeu de 1990, a Viola foi vendida para o produtor cinematográfico Mario Cecchi Gori, que formaria uma badalada equipe ao longo da década. Mas essas histórias são assunto para outro dia.

Juventus 3-1 Fiorentina

Juventus: Tacconi; Napoli, Bonetti, Brio (Alessio), De Agostini; Aleinikov, Galia, Marocchi; Rui Barros; Casiraghi, Schillacci. Técnico: Dino Zoff.
Fiorentina: Landucci; Pin, Battistini, Volpecina; Dell’Oglio, Kubík (Malusci), Dunga, Di Chiara; Baggio; Buso, Nappi (Zironelli). Técnico: Francesco Graziani.
Gols: Galia (3′), Casiraghi (59′) e De Agostini (73′); Buso (10′)
Árbitro: Emilio Soriano Aladrén (Espanha)
Local e data: estádio Comunale, Turim (Itália), em 2 de maio de 1990

Fiorentina 0-0 Juventus

Fiorentina: Landucci; Pin, Battistini, Volpecina; Dell’Oglio, Kubík, Dunga, Di Chiara; Baggio; Buso, Nappi (Zironelli). Técnico: Francesco Graziani.
Juventus: Tacconi; Galia, Napoli, Bruno, De Agostini; Aleinikov, Alessio, Marocchi; Rui Barros (Avallone); Casiraghi (Rosa), Schillacci. Técnico: Dino Zoff.
Cartão vermelho: Bruno
Árbitro: Aron Schmidhuber (Alemanha Ocidental)
Local e data: estádio Partenio, Avellino (Itália), em 16 de maio de 1990

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