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Giorgio Ghezzi fez sucesso na dupla de Milão e teve rivalidade ‘exótica’ com Lorenzo Buffon

Giorgio Ghezzi conseguiu entrar para a história do futebol italiano e de duas cidades de maneiras diferentes. Primeiro, foi uma das grandes personalidades que nasceram na pequena Cesenatico e ajudou a desenvolvê-la tanto como vereador quanto através da instalação de um badalado hotel que levava o nome de uma de suas paixões: a Internazionale. Através de títulos e grandes atuações por Inter e Milan, o goleiro também escreveu páginas importantes do esporte de Milão e da Itália, uma vez que é considerado como um dos melhores da posição nas décadas de 1950 e 1960.

Natural de Cesenatico, pequeno balneário à margem do Mar Adriático, Giorgio veio ao mundo em 1930 e acabou vivendo sob o regime fascista durante parte considerável de sua infância e de sua adolescência. Uma situação que já não seria nada simples era agravada pelo fato de os Ghezzi serem de tendência esquerdista. Apesar disso, a família sobreviveu à ditadura e à Segunda Guerra Mundial e o pai, Spartaco, de célebre participação na Resistência, acabou sendo aclamado como prefeito pelo Partido Comunista, em 1946.

Aquele ano também foi de felicidade para seu filho: aos 16, Giorgio iniciou a sua carreira como jogador no Cesenatico. Com 1,82m de altura, o goleiro rapidamente se destacou no campeonato regional da Emília-Romanha e se transferiu ao Rimini, que na época disputava a Serie C. Antes mesmo de completar 18 anos, fez a sua estreia no clube biancorosso e, em 1948-49, viu a sua carreira ser impulsionada pelo técnico Guido Masetti.

Histórico goleiro da Roma e bicampeão mundial pela Itália, Masetti enxergou grande potencial em Ghezzi e lhe ensinou tudo o que sabia do ofício. Mesmo com pouca idade, Giorgio se tornou o titular do Rimini na terceira divisão e o ajudou a conseguir bons resultados, mas sem alcançar o acesso. Ali, começava a construir a sua reputação como Kamikaze, pela coragem de se arriscar nas saídas de gol tanto no alto quanto no chão, chegando a dividir fortemente com os atacantes adversários.

O time romanholo não subiu para a Serie B, mas Ghezzi sim. O Modena decidiu contratar o arqueiro, que defendeu o clube em 62 partidas distribuídas ao longo de duas temporadas. Giorgio se destacou nas campanhas em que os canarini brigaram pela promoção e, como ainda era muito jovem – tinha apenas 21 anos –, passou a ser disputado por grandes clubes.

Um deles era a Juventus, que designara Virginio Rosetta para observá-lo. Porém, enquanto a diretoria bianconera protelava e hesitava em efetuar a contratação, a Inter foi mais esperta e adquiriu o goleiro. Na Beneamata, Ghezzi teve outro treinador como professor: Aldo Olivieri, camisa 1 da Itália na Copa do Mundo de 1938. Em sua temporada de debute em Milão, o técnico fez um revezamento entre o reforço e o também promissor Livio Puccioni, sendo que cada um atuou em 19 partidas da Serie A.

Vestindo nerazzurro, Ghezzi ganhou scudetti e vaga na seleção (Arquivo/Inter)

O bom time nerazzurro terminou na terceira posição, mas o presidente Carlo Masseroni não ficou satisfeito com os resultados e trocou o comando: Olivieri deu lugar a Alfredo Foni. O novo treinador escolheu Ghezzi como titular e não se arrependeu. Giorgio se firmou, disputou todas as rodadas da Serie A e liderou a melhor defesa do campeonato, com 24 gols sofridos em 34 jogos. Com tal rendimento, a Inter deixou para trás uma fila de 13 anos e conquistou o sexto scudetto de sua história.

Na temporada seguinte, o time de Foni mudou de estilo, abandonando o catenaccio, e Ghezzi ficou mais exposto – o que lhe fez ser mais kamizake do que nunca. O goleiro precisava se adiantar aos adversários com frequência e, à sua maneira, contribuiu bastante para que a Inter tivesse a segunda melhor defesa da Serie A e conquistasse o bicampeonato italiano. O campeonato foi disputado até o final, sendo que a Beneamata assumiu a liderança faltando três rodadas para o final e concluiu a competição com apenas um ponto de vantagem sobre a Juventus.

Em 1954, Ghezzi recebeu a sua primeira convocação para a seleção e estreou em um amistoso contra a França, em Paris, terminado com vitória italiana por 3 a 1. Logo depois, foi chamado para a Copa do Mundo, realizada na Suíça. Giorgio começou a competição como titular, participando da derrota para os anfitriões e da vitória para a Bélgica. Contudo, por opção do técnico Lajos Czeizler, não foi utilizado na partida de desempate contra os donos da casa – para o jogo extra, foi escalado o juventino Giovanni Viola. A derrota por 4 a 1 para os helvéticos representou a eliminação da Itália do único torneio em que o goleiro romanholo a defendeu.

Ao voltar para a Inter, o Kamikaze não conquistou mais títulos. Na verdade, foi uma das referências de um time que colecionou campanhas negativas nos anos sucessivos – a manutenção do bom desempenho nas redes garantiu mais oportunidades na seleção. Porém, em 1958, Giorgio rumou ao Genoa, que rondava apenas o meio da tabela da Serie A. Passou apenas uma temporada no clube rossoblù e, no verão seguinte, assumiu a meta do campeão: o Milan. A negociação gerou uma penca de polêmicas.

De cara, já causava certa comoção o fato de um ídolo da Inter aportar no rival citadino. Mas as questões iam além, já que a aquisição de Ghezzi pelo Milan era condicionada pela venda do também goleiro Lorenzo Buffon, maior rival de Giorgio, ao Genoa. Os dois foram antagonistas no Derby della Madonnina ao longo de toda a década de 1950 e disputaram a camisa número 1 da seleção. Cada um disputou uma Copa do Mundo, sendo que o arqueiro que rumava à Ligúria só se tornou titular no ciclo para o Mundial de 1962.

No Milan, Ghezzi intensificou a sua rivalidade com Buffon (imago/Buzzi)

Buffon substituiu Ghezzi no Genoa, na seleção e, em 1960, também na Inter. Não foram, contudo, as únicas vezes que sucedeu o romanholo. Estas sequer foram as ocasiões que geraram maior animosidade entre os dois e frisson midiático, já que a disputa ultrapassou as quatro linhas e adentrou as quatro paredes. Nos tempos de Inter, Giorgio namorou Edy Campagnoli, modelo e apresentadora da Rai. Porém, em 1958, a celebridade da televisão se casaria com Lorenzo – a situação foi prato cheio para as publicações de fofoca, que começavam a emergir na época.

No esporte, os dois acabariam tendo glórias em seus novos clubes: Ghezzi foi campeão italiano pelo Milan em 1962 e o interista Buffon, para variar, deu o troco no ano seguinte. Vestindo rossonero, contudo, Giorgio enfrentou muitas dificuldades nos momentos iniciais. Giuseppe Viani, diretor técnico, e Luigi Bonizzoni, treinador de campo, muitas vezes preferiram utilizar o jovem Luciano Alfieri, revelado na base do clube – e que não viria a ter sucesso na carreira.

Ghezzi realizou apenas 19 partidas em 1959-60, mas a sua situação mudou drasticamente na temporada seguinte, quando Viani se convenceu do seu potencial. A chegada do técnico Nereo Rocco, em 1961, a posição consolidada também se traduziu em conquistas: o oitavo scudetto rossonero, em 1962, e a primeira Copa dos Campeões, no ano seguinte. O Kamikaze participou de sete dos nove jogos da campanha continental, com seis gols sofridos, e pode sorrir após o brasileiro José Altafini marcar os dois da vitória por 2 a 1 sobre o Benfica de Eusébio, por 2 a 1, em Wembley.

Cinco meses depois da festa europeia, foi a vez de disputar o Mundial de Clubes contra o Santos de Pelé e companhia. No San Siro, 4 a 2 para o Milan, com dois gols do Rei do Futebol. O segundo jogo foi no Maracanã e o Santos devolveu o placar do primeiro jogo. Os resultados iguais forçaram a realização de um terceiro jogo realizado novamente no Maracanã. Ghezzi, contudo, ficou de fora do terceiro duelo e viu o seu time perder o título com um gol de pênalti de Dalmo.

Giorgio ficou no Milan até 1965, tendo sido reserva em suas duas últimas temporadas pelo Diavolo. Com quase 35 anos, o goleiro se despediu dos gramados num empate por 0 a 0 com a Fiorentina, completando sua partida de número 466 por clubes.

Em 1965, no fim da carreira, Ghezzi recebe o jornalista Gianni Brera e o ex-atacante juventino Giampiero Boniperti em Cesenatico (Foto Nanni)

Um ano depois, o ex-goleiro teve a sua única experiência como treinador. Ghezzi assumiu o Genoa, na Serie B, no final da temporada 1965-66, em dupla com Bonizzoni, e deixou o time no quinto lugar, dois pontos atrás do promovido Mantova. A campanha seguinte não foi boa e, após 19 rodadas, o romanholo acabou sendo demitido.

Sua curta carreira nas vestes de comandante ainda foi alvo de polêmicas, que emergiram anos após a sua morte. O atacante rossoblù Carlo Petrini acusou Giorgio de sujeitar os atletas ao uso de substâncias ilegais, o que era muito comum na época. Membro da associação das vítimas de doping, o ex-jogador sofreu com uma forma de glaucoma que o deixou quase totalmente cego – segundo especialistas, a enfermidade pode ter sido causada pelo uso indiscriminado de diversos fármacos.

Fora do futebol, Ghezzi retornou à Romanha. O ex-goleiro se dedicou a um negócio de sucesso em Cesenatico, sua cidade natal, que havia inaugurado em 1956: um hotel. O badalado empreendimento se chama Internazionale, em homenagem ao clube e também à Internacional Comunista – afinal, Giorgio ainda era um militante do partido.

Em 1968, o ex-goleiro assumiu as atividades do hotel. No subsolo, abriu um misto de restaurante e cabaré chamado Peccato di Gola (“O Pecado da Gula”, em tradução livre), que recebeu em seu palco alguns dos grandes cantores e comediantes da época. Entre os frequentadores de seu espaço, Ghezzi teve diversos amigos dos tempos de futebol, como Antonio Angelillo, Gianni Rivera, Benito Lorenzi, Sergio Brighenti e Altafini. O empreendimento contribuiu bastante para o turismo da bela cidade litorânea.

Pelo histórico da família e pela relevância que obteve através do esporte e do entretenimento local, Giorgio decidiu entrar na política em 1988. Foi eleito como vereador de Cesenatico pelo Partido Comunista, que continuava forte na cidade, mas a experiência na câmara municipal de sua terra durou pouco: em 1990, quando tinha apenas 60 anos, veio a óbito após um infarto.

Embora tenha falecido muito cedo, Ghezzi continua a ser recordado pelos amantes do futebol e foi homenageado pelos clubes que representou por mais tempo. Em 1993, o Milan celebrou o seu legado ao realizar um torneio amistoso com o seu nome. Mais tarde, em 2018, a Inter o recordou como um dos protagonistas das 110 histórias mais memoráveis da agremiação.

Giorgio Ghezzi
Nascimento: 11 de julho de 1930, em Cesenatico, Itália
Falecimento: 12 de dezembro de 1990, em Forlì, Itália
Posição: goleiro
Clubes: Cesenatico (1946-47), Rimini (1947-49), Modena (1949-1951), Inter (1951-58), Genoa (1958-59), Milan (1959-65)
Títulos: Serie A (1953, 1954 e 1962) e Copa dos Campeões (1963)
Carreira como técnico: Genoa (1966-67)
Seleção italiana: 6 jogos e 8 gols sofridos

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