Por um período de pouco mais de 40 anos do século XX, existiram duas Alemanhas e, naturalmente, duas seleções de futebol alemãs: a do lado ocidental e a do oriental. Apenas oito jogadores que vestiram a camisa da Alemanha Oriental, a chamada DDR, conseguiram defender a equipe nacional após a reunificação, que ocorreu em 1990. Thomas Doll foi um deles. Meia-atacante que se notabilizou pela qualidade técnica refinada, por municiar os companheiros de ataque e pela capacidade de ajudar o sistema defensivo, Doll atuou na era de ouro do Campeonato Italiano, no qual representou Lazio e Bari.
Nascido no nordeste da Alemanha, Thomas jogou até os 13 anos no Lokomotiv Malchin, principal equipe da sua cidade natal. O meia fez o restante das categorias de base com o Hansa Rostock, até subir para o profissional e estrear na DDR-Oberliga, o Campeonato Alemão-Oriental, pelos hanseáticos, em 1983.
Logo no início da carreira, o garoto cogitou largar o futebol e não foi por falta de talento. Seu pai recebeu uma encomenda clandestina de parentes que residiam na Alemanha Ocidental, com um relógio analógico e alguns chocolates. Artigos banais, mas proibidos pelo regime comunista do estado satélite da União Soviética. A apreensão dos itens foi o bastante para fazê-lo perder o emprego e colocar em risco o futuro de Thomas como jogador. No entanto, a situação foi contornada e o garoto seguiu no esporte.
Seu começo foi conturbado e de poucos gols — marcou apenas quatro em 47 aparições. Apesar disso, Doll chamava a atenção por sua habilidade com a bola nos pés e pela capacidade de organizar os ataques. Depois de dois anos no Rostock, se transferiu para o Dynamo Berlin, que à época era uma das melhores equipes do país. No lado vermelho da cidade, passou a atuar em uma posição mais avançada, o que potencializou ainda mais seu estilo de jogo. Vitorioso em dois campeonatos nacionais, Thomas encerrou sua passagem pelo time grená com 45 tentos em 115 partidas e recebeu as primeiras convocações para vestir a camisa da Alemanha Oriental.
O meia-atacante assinou com o Hamburgo em 1990, em um contexto marcado pela queda do Muro de Berlim e pela reunificação da Alemanha. A movimentação de jogadores de um lado para o outro, que antes só acontecia se algum atleta conseguisse escapar do regime oriental, passou a ocorrer livremente, ao passo que os campeonatos também seriam fundidos, a partir de 1991. Doll recebeu propostas de Celtic, Rangers e Borussia Dortmund, mas escolheu defender a mais antiga equipe germânica, cuja sede ficava a apenas 200 km de sua cidade natal.
No Hamburgo, permaneceu por uma única temporada e disputou a Bundesliga pela primeira vez. Ajudou a equipe na campanha que terminou com o quinto lugar e o retorno à Copa Uefa no ano seguinte. Porém, Doll não continuou a defender os rothosen, pois recebeu uma ótima proposta da Lazio, que precisava reforçar o meio-campo.
O presidente Gianmarco Calleri fez uma proposta de 13 bilhões de velhas liras para contratar o alemão, que agradou tanto o atleta quanto o clube. “Logo que recebi a oferta da Lazio, aceitei imediatamente. Na Itália era onde se jogava o melhor campeonato do mundo e onde estavam os melhores”, contou Thomas, em entrevista ao Corriere Dello Sport. O Hamburgo tampouco titubeou para aceitar, já que esse dinheiro aliviaria momentaneamente a crise financeira vivida pela agremiação.
Com a transferência oficializada, Doll se tornou o primeiro jogador nascido na Alemanha Oriental a atuar no futebol italiano. Thomas chegava a uma equipe coadjuvante no cenário doméstico, mas que se organizava para se tornar mais competitiva: originalmente, Calleri contratara Paul Gascoigne junto ao Tottenham, mas o inglês sofreu uma séria lesão no joelho e teve de ficar parado por um ano inteiro.
Doll, portanto, tinha sido escolhido para suprir a ausência do bad boy britânico. Ainda que fosse menos badalado que Gazza, aportava em Fiumicino com a mesma missão: ajudar a Lazio a incomodar as potências do primeiro escalão nacional, como o Milan dos holandeses Frank Rijkaard, Ruud Gullit e Marco van Basten; o Napoli de Diego Maradona; a Inter dos alemães Lothar Matthäus, Andreas Brehme e Jürgen Klinsmann; e a Juventus de Roberto Baggio e Salvatore Schillaci.
Tendo o vitorioso Dino Zoff como seu treinador, o alemão fez uma excelente temporada de estreia, sem ter muitos problemas de adaptação, e se tornou a principal peça da meia cancha biancoceleste. Na Serie A, Doll potencializou suas melhores características: os chutes longos e os passes-chave. “Eu me senti à vontade. Vivi 24 anos na Alemanha Oriental, por isso não estava acostumado com o calor e a paixão que encontrei na Itália. Os torcedores me paravam para autógrafos e fotografias. Fiquei impressionado com todo esse calor e a mentalidade italiana. E dentro de campo as coisas foram bem”, relembrou Thomas, na entrevista ao Corriere dello Sport.
Sua estreia aconteceu na segunda rodada da Serie A, contra o Parma, e logo já deixou seu cartão de visitas, dando uma assistência para Giovanni Stroppa, também adquirido naquela janela de mercado. No confronto seguinte, contra o Torino, Doll participou do lance do tento da vitória, mas foi contra o Ascoli que o alemão roubou a cena, quando marcou um golaço e deu uma assistência para Rubén Sosa. Concluiu a temporada em alta, com oito gols em 35 jogos, ajudando uma Lazio que frequentara a segundona no fim da década anterior a terminar a campanha tranquilamente, no meio da tabela.
Pelas suas atuações pelos aquilotti, Doll foi coroado com a convocação para a Euro de 1992. Thomas vestiu a camisa 10 da Alemanha, mas foi reserva da equipe treinada por Berti Vogt no torneio. O meia-atacante participou de quatro jogos, sendo três saindo do banco, e deu sua contribuição na campanha do vice-campeonato continental dos germânicos – a Dinamarca levantou a taça.
De volta à Lazio, Doll não conseguiu repetir o bom rendimento nos anos seguintes. Recuperado, Gascoigne finalmente passou a treinar com a equipe italiana e o alemão passou a viver sob a sombra de um baita meia – de modo que acabou perdendo espaço na capital. Nas duas temporadas seguintes, Thomas acumulou 2890 minutos em campo, menos do que em toda a sua campanha de estreia.
Em 1992-93, o meia-atacante até contribuiu com dois gols e três assistências, mas não incidiu na temporada posterior e, em janeiro de 1994, foi emprestado pela Lazio ao Eintracht Frankfurt. Em seu país, ganhou mais oportunidades em campo, mas em julho voltaria à capital italiana: pelos celestes, ainda disputou duas partidas da Coppa Italia e anotou uma doppietta numa goleada por 4 a 1 sobre o Modena, que garantiu a passagem dos romanos à fase seguinte com um placar agregado de 9 a 1.
Zdenek Zeman, novo técnico da Lazio, não se impressionou com o feito contra o time da terceira divisão e não concedeu mais espaço a Doll. Dessa forma, o meia foi repatriado em definitivo pelo Frankfurt em outubro daquele mesmo ano. Àquela altura, Thomas sofria com problemas físicos e, por isso, não conseguiu se firmar pelas águias de Hesse. Sua carreira começava a entrar em fase de declínio.
Suas lesões não o deixaram participar de mais do que 22 jogos em duas temporadas da Bundesliga. Mesmo assim, Doll havia deixado uma impressão muito positiva nos anos de Itália e, em 1996, recebeu uma chance de retornar ao país: transferiu-se ao Bari, que tinha caído para a Serie B.
Treinados pelo histórico Eugenio Fascetti, os biancorossi tinham um forte elenco para a disputa da segunda divisão: contavam com Alberto Fontana no gol; Luigi Sala e Luigi Garzya na defesa; Klas Ingesson e Sergio Volpi no meio; e, no ataque, além de Miguel Ángel Guerrero, dispunha dos jovens Francesco Flachi, Nicola Ventola e Marco Di Vaio. Experiente, Doll chegou para assumir a camisa 10 e a braçadeira de capitão. Por causa de seu condicionamento físico, não podia estar sempre em campo, mas foi decisivo: ao longo de 1800 minutos distribuídos em 31 aparições, marcou quatro vezes, forneceu duas assistências e devolveu os galletti à elite.
Em julho de 1997, Doll testou positivo num exame antidoping para benzbromarona, uma substância que serve para eliminar ácido úrico do organismo. O alemão cumpriu suspensão até dezembro e, liberado para jogar, foi utilizado por Fascetti como peça de rodízio do elenco do Bari. Após ajudar o time apuliano a terminar a Serie A na 11ª posição, pôs fim à sua trajetória no sul da Itália e retornou ao Hamburgo em 1998.
Na condição de reserva, Doll teve passagem bem discreta pelo Dino, aparecendo em apenas 46 partidas – na maior parte delas, entrando na etapa final. Thomas colocou um ponto final na sua carreira em 2001, aos 35 anos, e deu início a uma nova trajetória, como treinador da equipe sub-19 do Hamburgo. Em 2002, já havia sido alçado ao comando do segundo time dos rothosen.
Com bons resultados, o ex-meia foi promovido à equipe principal e a comandou na campanha do terceiro posto na Bundesliga em 2006 – a melhor do clube em 20 anos. Doll também teve curtas passagens por Borussia Dortmund, Gençlerbirligi e Al-Hilal até assinar com o Ferencváros. Na Hungria, obteve os seus maiores sucessos no posto de treinador: em cinco temporadas, conquistou o tri da copa nacional, além de um campeonato e uma Supercopa. Thomas ainda comandou Hannover 96 e APOEL até voltar a Budapeste, onde passou a morar.
Thomas Jens Uwe Doll
Nascimento: 9 de abril de 1966, em Malchin, Alemanha
Posição: meia-atacante
Clubes como jogador: Hansa Rostock (1983-86), Dynamo Berlin (1986-90), Hamburgo (1990-91 e 1998-2001), Lazio (1991-94 e 1994), Eintracht Frankfurt (1994 e 1994-96) e Bari (1996-98)
Títulos como jogador: Campeonato da Alemanha Oriental (1987 e 1988), Copa da Alemanha Oriental (1988 e 1989) e Supercopa da Alemanha Oriental (1989)
Clubes como treinador: Hamburgo II (2002-04), Hamburgo (2004-07), Dortmund (2007-08), Gençlerbirligi (2009-10), Al-Hilal (2011-12), Ferencváros (2013-18), Hannover 96 (2019) e APOEL (2019)
Títulos como treinador: Copa Intertoto (2005), Copa da Hungria (2015, 2016 e 2017), Copa da Liga Húngara (2015), Supercopa da Hungria (2015) e Campeonato Húngaro (2016)
Seleção alemã-oriental: 29 jogos e 7 gols
Seleção alemã: 18 jogos e 1 gol