Controverso da cabeça aos pés, Andrei Kanchelskis foi uma estrela que brilhou por pouco tempo na Europa. Nascido na Ucrânia, filho de pai lituano e mãe ucraniana, mas russo em seus documentos, era um jogador difícil de ser compreendido. Meia, ala, ponta ou atacante? Destro ou canhoto? Andrei ou Andrey? Até mesmo a grafia de seu nome gerava debate. Assim como seu estilo de jogar, muito prático e objetivo. E que se mostrou (quase) perfeito para o futebol inglês.
As aventuras de Kanchelskis na Grã-Bretanha foram, de fato, espalhafatosas. Uma mistura de gols, títulos e aclamação por parte da torcida do Manchester United, com brigas, polêmicas e ameaças. O russo viveu uma relação de amor e ódio com Alex Ferguson, o homem que o levou para a Inglaterra, mas que também foi, segundo o próprio Andrei, o responsável por sua saída. No Everton, ele ainda manteve a chama do talento acesa. Encantou, mas não por um longo período. Em âmbito nacional, jamais jogou uma Copa do Mundo, mas por decisão sua. Um boicote que se tornou oportunidade perdida, na medida em que a trajetória do atleta foi perdendo gradativamente seu rumo.
Após a Inglaterra, nada mais foi igual na carreira do russo. Vieram as lesões e a falta de vontade. Em Florença, na sua única passagem pelo futebol italiano, uma decepção do tamanho do investimento pela Fiorentina. Cerca de 8 milhões de libras pagas… por apenas dois gols marcados. Não houve sintonia na Viola, e tampouco em qualquer outro time dali em diante. Com o passar dos anos, a estrela de Kanchelskis se apagou, deixando no ar aquela dúvida tão amarga sobre o que ele poderia ter sido se sua história tivesse sido escrita de maneira um pouco diferente.
O brilho no futebol inglês
Nascido em Kirovohrad, na antiga República Socialista Soviética da Ucrânia, em 23 de janeiro de 1969, Andrei Kanchelskis começou sua trajetória no futebol no pequeno Zirka Kirovohrad, de sua cidade natal, que hoje se chama Kropyvnytskyi, antes de ingressar no Dynamo Kyiv. No entanto, foi no Shakhtar Donetsk, o terceiro time na carreira, que o jovem se destacou. Sua presença na Copa do Mundo sub-20 de 1991 também ajudou a despertar a atenção de uma verdadeira lenda do esporte: Sir Alex Ferguson, que naquela época já comandava o Manchester United, da Inglaterra.
O escocês achou que valia a pena arriscar a contratação daquele promissor, porém desconhecido jogador, que sequer falava inglês. O United acatou a sugestão de seu técnico e fez a compra junto ao Shakhtar por um valor que corresponderia a 650 mil euros atuais, no dia 26 de março de 1991. Demorou um pouco, mas Kanchelskis, aos poucos, foi ganhando a confiança de Ferguson para atuar com regularidade na equipe de Manchester.
Embora o russo não fosse o preferido para atuar pela faixa direita do campo, tinha uma quantidade relevante de oportunidades. Sua temporada de estreia completa, em 1991-92, foi descrita pelo próprio comandante como “um grande sucesso”. Nela, Kanchelskis marcou seis vezes ao longo de 39 partidas, ajudando o United a vencer a Supercopa Uefa, contra o Estrela Vermelha, além da Copa da Liga Inglesa — em jogo contra o Nottingham Forest, no qual atuou 75 minutos.
Nos anos seguintes, não faltaram títulos ao ala, que, apesar de ter nascido no atual território da Ucrânia, optou por defender a Rússia após o fim da União Soviética. No total, Kanchelskis venceu sete troféus com os Red Devils, incluindo o bicampeonato da Premier League em 1993 e 1994. O problema, porém, foi que sua relação com Ferguson acabou se deteriorando. O comandante certa vez foi xingado pelo russo, mas tal atitude não passava de um trote dos companheiros, que mandaram Andrei falar um palavrão em inglês para o chefe. Sir Alex achou graça naquela ocasião, algo que não aconteceria em episódios posteriores.
A verdade é que a barreira da língua atrapalhou o desenvolvimento do russo no Manchester United. Ele usava um intérprete, que inclusive foi autorizado pelo treinador do United para permanecer no banco de reservas durante os jogos. Dentro de campo, a situação também se complicou para Kanchelskis, preterido por Ryan Giggs e Lee Sharpe, em grande fase. Com o tempo, o descontentamento do atleta se transformou em uma multa por recusa a jogar um torneio de menor expressão. Naturalmente, o forasteiro começou a ser deixado de fora de partidas importantes, já que naquele período do futebol inglês os times ainda tinham de obedecer um limite de jogadores escalados que haviam nascido em outros países.
Apesar dos problemas extracampo, a torcida dos Red Devils tinha Kanchelskis como uma espécie de xodó. E, após uma temporada boa do russo em 1993-94, a pressão vinda das arquibancadas certamente influenciou para que fosse acordada uma renovação de contrato de mais quatro anos entre jogador e clube. Mas tal acordo acabou somente uma época depois.
Em 1994-95, Kanchelskis até começou bem, com 10 gols na primeira metade da Premier League e um hat-trick histórico contra o rival Manchester City. Mas seu temperamento difícil e, principalmente, seus empresários, continuavam dando dores de cabeça para Ferguson. Em certa ocasião, o agente do russo, Grigori Yesaulenko, presenteou o técnico com um pacote. Ao chegar em casa, Ferguson descobriu que dentro do envelope estavam 40 mil libras. Um “agrado” do empresário pelo novo contrato de Andrei, mas que foi entendido como suborno pelo próprio técnico, até na tentativa de forçar uma negociação do jogador. No fim, o comandante acabou por devolver a quantia por intermédio do Manchester United.
Depois disso, ao término da temporada, já não havia mais clima em Manchester para o talentoso jogador dos Red Devils. Acusando diretamente Ferguson de ser o pivô da separação, Kanchelskis deixou o clube após quatro anos e meio, 148 jogos e 34 gols para ser negociado com o Everton. O acordo, contudo, esteve longe de ser simples. As porcentagens e cifras envolvidas eram novamente gigantescas, e o empresário do atleta foi inclusive acusado de enganar o próprio United e o Shakhtar Donetsk, que ainda detinha direito a uma parte de uma futura venda de Andrei. No fim, os Toffees fecharam o acordo pelo valor de 5 milhões de libras.
Neste meio tempo, Kanchelskis organizou um boicote à seleção da Rússia e, por isso, não foi à Copa do Mundo de 1994, disputada nos Estados Unidos. Nem ele nem outros quatro atletas, que também aderiram ao protesto. Tudo porque a relação de Andrei com o técnico da equipe nacional, Pavel Sadyrin, também era conturbada. Enfim, uma chance gigante desperdiçada, mas que acabou beneficiando o United, que pode contar com o jogador “fresco” fisicamente no início da temporada de 1994-95.
Na temporada seguinte, pelo Everton, Kanchelskis conseguiu rapidamente o status de “ídolo cult”. Foi, de fato, um ano abençoado para o russo, que marcou 16 vezes em 32 jogos, com direito a dois gols em uma vitória contra o Liverpool, por 2 a 1, e mais uma tripletta na carreira, desta vez diante do Sheffield United. Ao fim da campanha, Andrei foi convocado para disputar a segunda Eurocopa da carreira – em 1992, havia sido titular da seleção da Comunidade dos Estados Independentes, que representou a dissolvida União Soviética no torneio. O ponta voltara a atuar pela Rússia já em 1994, após a demissão de Sadyrin, e fez uma boa Euro, apesar da queda dos vermelhos na fase de grupos. Na Itália, aliás, é lembrado por ter dado trabalho a Paolo Maldini na vitória dos azzurri por 2 a 1.
A fase iluminada, entretanto, durou somente uma temporada. Na seguinte, em 1996-97, o camisa 7 não conseguiu repetir nem de longe o desempenho inicial, balançando as redes em apenas quatro oportunidades — em 20 jogos na Premier League, durante a primeira metade do torneio. Dessa forma, assim como no Manchester United, sua saída se deu de maneira conturbada.
Mal colocado na tabela do Campeonato Inglês de 1996-97 (após ser o 6º melhor na edição anterior), o Everton enfrentava dificuldades financeiras e por isso precisou se desfazer do atacante antes mesmo do fim da campanha. Uma história, todavia, que tem contornos e hipóteses diferentes. Muitos dizem que Kanchelskis, na verdade, já estava sendo sondado pelo futebol italiano há algum tempo e, dessa forma, já estava “cavando” sua ida à Serie A.
No entanto, o próprio Andrei nega que tenha perdido o foco nos Toffees e ainda ressalta que seu desejo era ter ficado na Inglaterra, local onde sua família e filhos já estavam adaptados há alguns anos — desde seu início de trajetória ainda no United. Seja qual fosse sua vontade, fato é que o russo deixou o Everton na janela de transferências de inverno, em janeiro de 1997, para se aventurar na Toscana.
Uma decepção na Fiorentina
Na madrugada do dia 29 para o dia 30 de janeiro de 1997, reuniram-se em Liverpool membros das diretorias de Everton e Fiorentina. Luciano Luna, Oreste Cinquini e o ex-jogador e lenda violeta, Giancarlo Antognoni, acertaram com representantes do time inglês a venda de Andrei Kanchelskis para o clube italiano. O treinador dos Toffees, Joe Royle, não compareceu à reunião realizada no subúrbio da cidade industrial, pois estava ocupado com a montagem de sua equipe para o confronto seguinte da Premier League, diante do Newcastle. O sinal verde do comandante para a transação, porém, já havia sido dado previamente.
Os termos para o negócio foram altos: Vittorio Cecchi Gori, presidente da Fiorentina, pagou 8 milhões de libras pelo ponta, o que representou um lucro de 3 milhões para o Everton. O maior valor por um jogador russo em todo o planeta e uma das contratações mais caras daquela temporada em todo o futebol europeu. Mas, naquele momento, o sacrifício financeiro parecia valer a pena, afinal, tratava-se de um atleta com ótimo desempenho recente pela Inglaterra.
Com metade da temporada ainda pela frente na Fiorentina, Kanchelskis seria uma nova e esperançosa opção pelas alas para Claudio Ranieri, em grande fase à frente do elenco violeta. Vale lembrar que, meses antes, os gigliati haviam faturado dois títulos. Primeiro, a Coppa Italia, em final contra a Atalanta. Pouco depois, a Supercopa Italiana, frente ao poderoso Milan, em pleno San Siro. Cerca de 1500 torcedores da Viola compareceram ao primeiro treino de Andrei, tamanha era a expectativa por seu desempenho com a malha roxa.
Também eram grandes também as expectativas para a continuidade de bons resultados da Fiorentina na temporada de 1996-97. Mas o casamento entre o ponta e a equipe de Florença jamais floresceu. A ida de Kanchelskis ao futebol italiano representou o começo do fim de sua carreira. Aos 28 anos de idade, ele teve problemas para conseguir sequência como titular da Viola. No geral, muitas pequenas lesões, que foram minando a condição física – e, por que não, psicológica – do russo. Ao todo, Andrei esteve indisponível em 28 partidas entre janeiro de 1997 e maio de 1998.
Ou seja, exatamente o mesmo número de partidas que ele disputou com a camisa Viola. Em 28 duelos, porém, o russo marcou somente dois gols. Contraste gigante com as estatísticas que ele conseguira na Inglaterra. Na primeira metade de 1997, aliás, ele passou zerado em nove confrontos. Foi balançar as redes apenas na segunda rodada da Serie A de 1997-98, em 14 de setembro de 1997. Na ocasião, contra o Bari, no Artemio Franchi, Kanchelskis selou a vitória por 3 a 1 da Fiorentina com chute de canhota. O camisa 17 (após ser o 32 na primeira temporada) recebeu de cara para a baliza e bateu por baixo do arqueiro, com categoria. Um de seus únicos momentos de destaque com o time violeta.
Pouco tempo depois, uma lesão no tornozelo tirou Kanchelskis de ação por mais um longo período. Ele ainda teria uma fratura no joelho, posteriormente, em função de um choque com o goleiro Gianluca Pagliuca. Os problemas físicos minaram seu desenvolvimento no time e, mesmo quando esteve apto para jogar, recebeu menos prestígio do então treinador Alberto Malesani, substituto de Ranieri em 1997-98.
Don Claudio havia deixado o comando do time após uma temporada de certa forma decepcionante, que culminou com a nona colocação na Serie A e uma eliminação para o Barcelona nas semifinais da Recopa Uefa. Não foram resultados desastrosos, mas apenas não corresponderam às expectativas de uma diretoria que havia sentido o gosto de títulos na época anterior. Enfim, Ranieri saiu da Fiorentina após 170 jogos ao longo de quatro anos. Para o seu lugar, foi chamado o excêntrico Malesani, entusiasta de um futebol ofensivo e dono de personalidade forte.
Com ele, a Fiorentina jogava para frente. Marcava muitos gols, mas também era frágil defensivamente. Variando os esquemas táticos, o treinador costumava escalar Gabriel Batistuta, Luís Oliveira e Anselmo Robbiati no setor de ataque — posteriormente, contando com a chegada de Edmundo. Na linha de trás, Rui Costa regia o meio-campo, que também tinha a presença de Kanchelskis. O russo, contudo, não conseguiu se firmar como titular inquestionável.
Ao fim daquela temporada, Andrei colecionou algumas partidas no banco de reservas, sequer sendo chamado para entrar no decorrer do jogo e contribuir com suas acelerações. Enfim, o camisa 17 voltou a encontrar as redes na despedida da Serie A, diante do Milan. Naquela que foi sua última aparição pela Fiorentina, o russo marcou o segundo gol na vitória por 2 a 0, em Florença. Dessa vez, com o pé direito.
Um gol de canhota, outro com a perna destra. Os dois tentos de Kanchelskis em sua curta passagem pela Viola mostraram a capacidade de finalização do ala com qualquer um dos pés. Atributo, inclusive, aperfeiçoado pelo próprio, ao perceber, ainda na juventude, que os defensores “davam” o lado esquerdo do campo para evitar as arrancadas pela ponta-direita. Como sobrevivência, ele aprendeu a finalizar de canhota. E o fazia muito bem.
Mas foi apenas isso. Naquela época, a Fiorentina até melhorou, terminando a Serie A com a quinta colocação. O treinador Malesani, embora adorado pela torcida, não foi bancado pela diretoria por mais uma temporada, e Kanchelskis também deixou Florença. Sua carreira jamais seria a mesma dali em diante. O talentoso jogador russo rodou por mais sete times, se firmando em apenas um deles: o Rangers, da Escócia. Por lá, conquistou sete títulos ao longo de quatro anos.
Depois, Andrei teve curtas passagens por Manchester City, Al Hilal, Dynamo Moscou, Saturn Ramenskoye e Krylia Sovetov, até se aposentar em 2006, aos 37 anos, deixando uma carreira de brilhos e lacunas. De magia e de polêmicas. Kanchelskis poderia ter sido muito mais do que foi. Na Itália, pela Fiorentina, jamais pareceu ter a motivação suficiente para seguir sendo um atleta de ponta. Somado a isso, as lesões minaram o desempenho de um jogador que, por incrível que pareça, não se meteu em confusão durante a estadia em Florença. Talvez porque ele nem quisesse, de fato, estar ali.
Como o próprio russo afirmou anos depois, em uma nova versão dos acontecimentos, seu desejo em 1997 era, na verdade, permanecer no Everton. A transferência para a Bota, portanto, interrompeu uma sequência brilhante do jogador na Inglaterra. Vitorioso no Manchester United, ídolo no time azul de Liverpool. Extremamente adaptado, Kanchelskis parecia ter entendido o futebol britânico como poucos. Um jogo de velocidade, imposição física e eficiência nas finalizações. A pergunta que agora fica é o que mais ele poderia ter conquistado se, simplesmente, tivesse permanecido por lá…
Andrei Kanchelskis
Nascimento: 23 de janeiro de 1969, em Kirovohrad, União Soviética (atualmente Kropyvnytskyi, Ucrânia)
Posição: meio-campista e atacante
Clubes como jogador: Zirka Kirovohrad (1986-87), Dynamo Kyiv (1988-90), Shakhtar Donetsk (1990-91), Manchester United (1991-95), Everton (1995-97), Fiorentina (1997-98), Rangers (1998-2001 e 2001-02), Manchester City (2001), Southampton (2002-03), Al Hilal (2003), Dynamo Moscou (2004), Saturn Ramenskoye (2004-05) e Krylia Sovetov (2006)
Títulos: Europeu Sub-21 (1990), Supercopa Uefa (1991), Copa da Liga Inglesa (1992), Premier League (1993 e 1994), Supercopa da Inglaterra (1993 e 1994), FA Cup (1994), Supercopa Uefa (1994), Campeonato Escocês (1999 e 2000), Copa da Escócia (1999, 2000 e 2002), Copa da Liga Escocesa (1999 e 2002)
Clubes como técnico: Torpedo-ZIL Moscou (2010), Ufa (2011-12), Jurmala (2014), Solyaris Moscou (2016) e Navbahor Namangan (2018-19 e 2019-20)
Seleção soviética: 23 jogos e 3 gols (6 partidas pela Comunidade dos Estados Independentes)
Seleção russa: 36 jogos e 4 gols