Em 2002, parte considerável dos saxões envolvidos com futebol tinha um desejo: impedir que Milan e Inter fizessem a final da Copa Uefa e, pela primeira vez, disputassem o Derby della Madonnina numa decisão continental. O Feyenoord, da Holanda, tinha um motivo muito simples para deter os nerazzurri, já que a finalíssima estava marcada para o De Kuip, seu estádio, ao passo que o Borussia Dortmund, da Alemanha, estava incumbido de parar o Diavolo. O fato é que a dupla italiana não se classificou. Os rossoneri, em especial, foram atropelados por um brasileiro que, mais tarde, vestiria a camisa vermelha e preta.
Campeão italiano em 1999, o Milan viveu um período turbulento após a conquista do scudetto, com direito a muitas trocas de técnico. Os rossoneri tiveram que disputar a Copa Uefa devido ao sexto lugar na Serie A 2000-01 e iniciaram a temporada sob o comando do turco Fatih Terim, que não decolou. Depois da 10ª rodada do certame nacional, o emergente Carlo Ancelotti, ex-jogador do Diavolo nas décadas de 1980 e 1990, foi contratado para segurar as pontas. Carletto vinha de trabalhos positivos por Reggiana e Parma, mas não deixara saudades na Juventus.
Ainda sob as ordens de Terim, o time italiano superou as duas primeiras fases da Copa Uefa com tranquilidade: fez 6 a 0 no placar agregado sobre o BATE Barisov, de Belarus, e 3 a 0 sobre o CSKA Sofia, da Bulgária. Com Ancelotti, embora o nível dos adversários não tenha subido tanto, o Milan encontrou mais dificuldades, apesar de contar com jogadores como Paolo Maldini, Alessandro Costacurta, Roque Júnior, Serginho, Demetrio Albertini, Gennaro Gattuso, Andrea Pirlo, Rui Costa, Andriy Shevchenko e Filippo Inzaghi.
O Sporting do artilheiro Mário Jardel era qualificado e foi eliminado após um 3 a 1. Entretanto, os rossoneri viriam a se complicar na sequência: chegaram a perder em casa para o Roda, da Holanda, e precisaram dos pênaltis para superar o 1 a 1 na soma dos resultados, nas oitavas de final. Nas quartas, o Milan também foi derrotado pelo Hapoel Tel Aviv, de Israel, mas reagiu em San Siro e, com o 2 a 1 no agregado, avançou às semifinais.
O Milan enfrentaria um Borussia Dortmund que atravessava momento similar: após glórias até mesmo de relevo internacional, como o título da Champions League sobre a Juventus, em 1997, os aurinegros haviam se desorganizado e vinham tentando se reerguer em solo nacional. O seu técnico era o ex-volante Matthias Sammer, ídolo do clube e protagonista de curta passagem pela Inter.
O elenco do Dortmund tinha nomes que seriam muito importantes para o clube, como os checos Tomás Rosicky e Jan Koller ou os brasileiros Evanílson, Dedê, Ewerthon e Márcio Amoroso, muito conhecido dos italianos por seu sucesso na Udinese e por uma experiência tortuosa no Parma, devido a uma lesão. Além disso, vários outros jogadores do BVB haviam passado pela Itália: Jens Lehmann, Jürgen Kohler, Stefan Reuter, Jörg Heinrich e Sunday Oliseh eram eles.
Naquela temporada, o Borussia Dortmund vinha disputando a Bundesliga ponto a ponto com Bayern de Munique e Bayer Leverkusen – os aspirinas, vale destacar, seriam vice-campeões europeus, perdendo a decisão da Champions League para o Real Madrid de Zinédine Zidane. Em paralelo, o time de Sammer foi relegado à Copa Uefa justamente por não ter ido bem na principal competição de clubes do continente. Os borussianos ficaram em terceiro no Grupo B, à frente apenas do Shakhtar Donetsk e atrás de Liverpool e Boavista.
Na Copa Uefa, os alemães tiveram bastante dificuldade contra Kobenhavn (2 a 0 no agregado) e Lille – 1 a 1, com classificação garantida graças ao gol qualificado. Nas quartas, o Slovan Liberec foi presa fácil e o 4 a 0 levou o Dortmund a uma semifinal ante um Milan igualmente irregular no torneio. No caso dos rossoneri, por conta de várias lesões de jogadores importantes, a situação se estendia à Serie A: na competição nacional, ocupava a quinta posição e brigava ponto a ponto com Bologna (quarto) e Chievo (sexto) pela última vaga na Champions League. Ou seja, o título continental podia ser a tábua de salvação para o Diavolo.
Para o confronto de ida, em Dortmund, o Milan poderia dispor de Inzaghi, recém-recuperado de uma lesão no quadril, mas nem Costacurta nem Shevchenko, com problemas físicos, tinham condições de jogo. Maldini, que ainda não estava 100% após romper os ligamentos do joelho, antecipou o seu retorno para não desfalcar o time. O BVB, por outro lado, só não pode contar com o versátil Lars Ricken. O lendário atleta aurinegro tinha uma contusão de baixa gravidade.
Faminto, o Borussia Dortmund foi para cima logo no início e encurralou o Milan com uma atuação de gala na etapa inicial. Aos 6 minutos, Ewerthon chegou a balançar as redes após um chute mascado de Rosicky, mas estava impedido e o gol foi anulado. Sem problemas: aos 7, o camisa 22 Amoroso deu um chapéu em Cosmin Contra, que utilizava o mesmo número, e foi derrubado na área. Na cobrança de pênalti, o atacante encheu o pé e não deu chances a Christian Abbiati.
A partida ficou equilibrada depois do gol dos alemães, embora o Milan encontrasse muita dificuldade de penetrar a defesa do Dortmund, muito fechada com Heinrich, Christian Wörns, Christoph Metzelder e Dedê. Pirlo, ainda escalado como trequartista naqueles tempos, não conseguia achar os melhores passes e a melhor oportunidade dos rossoneri surgiu num escanteio: Lehmann saiu mal de sua meta, mas José Mari cabeceou para fora. A resposta dos mandantes surgiu com Rosicky, que se infiltrou na área e até driblou Abbiati. Contudo, Martin Laursen cortou a sua conclusão antes da linha.
Para desequilibrar, contudo, o Dortmund contava com um Amoroso muito motivado a tentar uma vaga na lista da seleção brasileira para a Copa do Mundo de 2002 – por conta de uma lesão no tendão de Aquiles, ele não vestia a amarelinha desde 2000. Aos 33 minutos, o atacante assinou a pintura da noite no Westfalenstadion: chapelou Laursen na altura da meia-lua, matou a bola na coxa e finalizou sem deixá-la cair, vazando Abbiati. Na casa dos 39, o craque ainda completou, de peixinho, um belo cruzamento de Ewerthon e chegou a sua tripletta.
O placar extremamente desfavorável evidenciava a fragilidade defensiva daquele Milan nos jogos contra adversários mais qualificados. Não teria sido merecido se, aos 42 minutos, um cruzamento de Pirlo terminasse nas redes – a bola passou por todo mundo e bateu na trave de Lehmann. Quase perplexo no banco de reservas, Ancelotti precisaria fazer milagre no intervalo para recolocar a eliminatória nos trilhos.
Os rossoneri voltaram dos vestiários com Serginho no lugar de Albertini e atitude ofensiva, só que isso não foi suficiente para furar a muralha amarela erguida à frente de Lehmann. Depois, Ancelotti ainda colocou Rui Costa na vaga de Gattuso, expondo mais o seu time. Dois minutos após a troca, o Dortmund desferiu o golpe de misericórdia: Ewerthon deixou Maldini na saudade numa arrancada pelo flanco esquerdo, pegou a diagonal e tentou surpreender Abbiati com um biquinho na sua própria trave. O goleiro até resvalou com o pé, mas a sobra ficou com Heinrich, que surgiu no lado direito e só empurrou para o gol vazio.
O ritmo caiu bastante após o quarto gol e só uma ocasião criada dali até o apito final teve magnitude comparável às demais: aos 90, Serginho ficou cara a cara com Lehmann, mas arrematou para fora. Assim, o Milan deixava a Alemanha humilhado e tinha uma missão praticamente impossível de ser cumprida em San Siro. A Inter, em paralelo, havia perdido em casa para o Feyenoord, por 1 a 0. As chances de um Derby della Madonnina na decisão da Copa Uefa eram bem reduzidas àquela altura.
Para a volta, na Itália, o Milan perdeu Maldini, que teve uma pequena recaída no joelho e voltou ao estaleiro. Em contrapartida, Shevchenko voltou a ficar à disposição de Ancelotti, embora ainda estivesse recuperando sua melhor forma. O Dortmund, por sua vez, ganhou o reforço de Ricken.
Em San Siro, a história foi bem diferente do que a escrita em Dortmund, e pouquíssima gente viu isso in loco: pouco mais de 15 mil pessoas foram até San Siro, levando a crer que a confiança na reviravolta era pequena. Porém, no quase deserto Giuseppe Meazza, um Milan extremamente ofensivo se inspirou no gás mostrado pelos alemães na ida e abriu o placar logo aos 11 minutos. Sheva acionou Serginho, que passava em velocidade no corredor, e o brasileiro cruzou na medida para Inzaghi cabecear para as redes.
Na casa dos 19, o Diavolo teve falta quase na linha da grande área e Pirlo foi o encarregado da cobrança. Lehmann rebateu para frente e Contra não desperdiçou a sobra, para o delírio de Adriano Galliani nas tribunas. Era possível reverter a goleada? Doce ilusão.
O clima gelado proporcionado pela ausência de um grande público em San Siro jogou contra o Milan, que não aproveitou o momento frutífero para deixar o Dortmund mais grogue. A bem da verdade, as duas únicas outras chances dos rossoneri na primeira etapa surgiram de imprecisões de Lehmann em arremates de média distância.
Paupérrimo, o segundo tempo teve a mesma toada. O Milan até reclamou de pênalti não marcado em Inzaghi na metade inicial daquela etapa. Porém, a primeira chance realmente clara só foi criada aos 83, quando Pirlo ficou cara a cara com Lehmann e finalizou em cima do arqueiro.
Nos acréscimos, o árbitro Gilles Veissière compensou a infração não assinalada anteriormente e marcou uma penalidade que só ele viu: Inzaghi foi, teoricamente, puxado por Metzelder. Serginho converteu a cobrança e o Milan partiu ao ataque em desespero, em busca da prorrogação. Entretanto, um contragolpe primoroso puxado por Evanílson jogou os italianos novamente na lona. O brasileiro fez um salseiro e só ajeitou para Ricken bater no contrapé de Abbiati e fechar a conta. A vitória por 3 a 1 foi insuficiente para os lombardos, mas a torcida aplaudiu os seus esforços.
Os torcedores do Milan puderam chorar as pitangas ao lado dos nerazzurri, visto que a Inter também caiu fora: dominada em Roterdã, perdia por 2 a 0 para o Feyenoord – 3 a 0 no placar agregado – e ensaiou reação no final, garantindo o empate por 2 a 2 e um 3 a 2 mais honroso na eliminatória. Na decisão, o time holandês levaria a melhor sobre o Dortmund graças a um eletrizante 3 a 2 e levantaria a sua segunda taça da Copa Uefa.
Na Serie A, o Milan conseguiu mais estabilidade nas últimas rodadas e ficou com a quarta vaga na Champions League. A Inter, por sua vez, foi afetada pela eliminação na Copa Uefa e viu a sua liderança se transformar num terceiro lugar no fatídico 5 de maio de 2002, quando perdeu para a Lazio e entregou o scudetto para a Juventus e o vice para a Roma.
Na Alemanha, o Dortmund se impôs na homóloga corrida a três da Bundesliga e foi campeão. Amoroso, artilheiro do certame, com 18 gols, entrou para a galeria de ídolos aurinegros – apesar de não ter obtido a convocação para a Copa de 2002. Em 2006, o brasileiro ainda aportaria na capital da Lombardia para vestir a camisa do Milan numa curta e infrutífera passagem em rossonero. Obviamente, o carrasco não recebeu o seu perdão.
Borussia Dortmund 4-0 Milan
Borussia Dortmund: Lehmann; Heinrich (Evanílson), Wörns, Metzelder, Dedê (Kohler); Oliseh, Reuter; Ewerthon (Reina), Rosicky, Amoroso; Koller. Técnico: Matthias Sammer.
Milan: Abbiati; Contra (Roque Júnior), Laursen, Maldini, Kaladze; Gattuso (Rui Costa), Albertini (Serginho), Ambrosini; Pirlo; Inzaghi, José Mari. Técnico: Carlo Ancelotti.
Gols: Amoroso (7′, 33’e 39′) e Heinrich (63′)
Árbitro: Graham Poll (Inglaterra)
Local e data: Westfalenstadion, Dortmund (Alemanha), em 4 de abril de 2002
Milan 3-1 Borussia Dortmund
Milan: Abbiati; Helveg, Chamot, Laursen, Kaladze; Contra (José Mari), Gattuso (Albertini), Serginho; Pirlo; Shevchenko (Simone), Inzaghi. Técnico: Carlo Ancelotti.
Borussia Dortmund: Lehmann; Heinrich (Evanílson), Wörns, Metzelder, Dedê; Oliseh, Reuter; Ewerthon (Ricken), Rosicky, Amoroso; Koller. Técnico: Matthias Sammer.
Gols: Inzaghi (11’), Contra (19′) e Serginho (90+2′); Ricken (90+4’)
Árbitro: Gilles Veissière (França)
Local e data: estádio Giuseppe Meazza, Milão (Itália), em 11 de abril de 2002