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A Fiorentina cinematográfica de Mario e Vittorio Cecchi Gori sofreu ponto de virada pungente

“Esta é uma história simples, mas não é fácil contá-la. Como uma fábula, há dor e está cheia de admiração e felicidade.”

Se você assistiu ao clássico “A Vida é Bela”, de Roberto Benigni, com certeza reconhece essa frase. A história que se passa em um campo de concentração nazista emocionou milhões de salas de cinema pelo mundo e rendeu três estatuetas do Oscar. Mas, como se sabe, para um filme deste calibre sair do papel é preciso muito mais do que atores, diretores e cinegrafistas. A obra premiada foi distribuída por uma famosa produtora italiana que carregava um sobrenome que não é esquecido pela torcida da Fiorentina.

O Cecchi Gori Group foi fundado por Mario Cecchi Gori e era gerido com a ajuda de seu herdeiro, Vittorio Cecchi Gori. Além de pai, filho e sócios, ambos tinham outra coisa em comum: a Fiorentina. Na altura em que o filme foi lançado, o patriarca já havia morrido e seu filho, Vittorio, continuava o legado do pai tanto na produtora quanto na presidência da Viola – que, naquele 1997, não podia reclamar do seu elenco. Com toda essa imagem de sucesso, você pode estar se perguntando como os Cecchi Gori se tornaram tão odiados em Florença. Bom, assim como a frase que começa esse texto diz, essa é uma história simples, mas não é fácil contá-la.

Vittorio e Mario Cecchi Gori: a família fez fortuna no cinema e tentou escrever história feliz na Fiorentina (Umberto Pizzi)

Luz, câmera, ação

Nascido em Brescia, em 1920, Mario Cecchi Gori deu seus primeiros passos na profissão em que seria reconhecido por todo o mundo só na década de 1950 – até então, havia se formado em Letras pela Universidade de Florença e trabalhou como corretor da bolsa de valores. Em 1948, decidiu se mudar para Roma, onde teve o primeiro contato com os produtores cinematográficos Carlo Ponti e Luigi De Laurentiis, irmão mais velho de Dino De Laurentiis.

Cecchi Gori se tornou motorista de Dino e também do cineasta Vittorio De Sica. Por causa deles, Mario começou seus investimentos na Maxima Cinematográfica, já no fim da década. E foi com uma visão única de mercado, principalmente voltada aos comediantes polivalentes da época, que ele se estabeleceu como um dos maiores produtores do cinema italiano e internacional.

Ao longo de sua carreira, além de ter produzido obras dos já citado Benigni e De Sica, trabalhou com Ettore Scola, Ugo Tognazzi, Vittorio Gassman, Gabriele Salvatores, Carlo Verdone, Giuseppe Tornatore, Federico Fellini, Massimo Troisi, Milos Forman e Michael Redford. Em sua vida, Mario recebeu seis vezes o prêmio David di Donatello e cinco o Nastro d’argento – os mais importantes do cinema italiano. O filme “O Carteiro e o Poeta”, com seu trabalho, foi indicado a cinco Oscars – venceu um.

Foi a partir dos anos 1980 que a guinada nos negócios se uniu à chegada do outro personagem da família: o herdeiro, Vittorio. Nascido em Florença, em 1942, o filho se juntou ao pai em um momento importante. Com grandes sucessos de bilheterias, o nome da empresa que iniciou a década batizada de Capital Cinematográfica, ganhou em 1988 o nome internacional conhecido pelo planeta: o Cecchi Gori Group.

Vittorio trabalhou com o pai em todas as produções em andamento entre 1980 e 1993. Depois da morte do genitor, produziu alguns dos mesmos cineastas com os quais já trabalhara e adicionou alguns outros, como Michelangelo Antonioni, Wim Wenders, Roberto Faenza e Martin Scorsese. Além das indicações ao Oscar, também venceu três vezes o David di Donatello.

Os Cecchi Gori, aliás, iriam se radicar justamente na cidade em que se encontra a célebre escultura de David, feita em bronze por Donatello: Florença. E é essa parte que mais nos interessa em toda essa história.

Mario foi presidente do clube por apenas três anos; Vittorio, seu filho, ficou quase nove anos à frente da Viola (imago/Buzzi)

Das telonas para os gramados

Em clima de badalação e crescimento dos seus negócios que, em 1990, Mario Cecchi Gori decidiu investir no futebol. A família aproveitou a polêmica transferência de Roberto Baggio para a Juventus e o desgaste da administração da família Pontello para adquirir a Fiorentina. O produtor enxergava no clube uma nova vitrine para estampar seu nome.

Apesar de uma primeira temporada bem morna na gestão, em 1991-92 os Cecchi Gori mostraram sua cara como novos investidores. Em uma rodada de contratações, fecharam com Marco Branca, Pietro Maiellaro, Mazinho e, principalmente, Gabriel Batistuta.

O atacante da seleção argentina tinha acabado de fazer uma grande Copa América, chegava badalado do Boca Juniors e respondeu quase que instantaneamente – marcando 13 gols. Ainda assim, o técnico brasileiro Sebastião Lazaroni, contratado pela gestão anterior, não deslanchava: foi demitido durante a temporada e cedendo seu lugar a Luigi Radice. A Fiorentina fez apenas uma campanha modesta na Serie A, estacionando no 12º lugar.

Para a temporada seguinte, mais investimentos: chegaram Daniele Carnasciali e Gianluca Luppi na defesa, Stefan Effenberg e Fabrizio Di Mauro no meio-campo, além de Brian Laudrup e Francesco Baiano no ataque. Com muitas esperanças depositadas por parte da nova diretoria e da torcida, a temporada foi decepcionante. O ataque era brilhante, mas a defesa frágil levou a equipe à segunda divisão depois de 54 anos na elite do futebol italiano.

No primeiro momento de grande turbulência da gestão, Mario mostrou a solidez da sua aposta e conseguiu segurar grande parte do elenco – além de trazer Claudio Ranieri para iniciar a reconstrução do time. Com a base forte mantida da Serie A, Ranieri aproveitou para testar e apostar em garotos que corresponderam e cresceram no elenco, como o goleiro Francesco Toldo e os atacantes Giacomo Banchelli, Francesco Flachi e Anselmo Robbiati.

O movimento deu certo e a Fiorentina venceu sem dificuldades e com antecedência a Serie B – mas não antes do fim da presidência de Mario. Mesmo sendo considerado um grande responsável pela campanha sólida da equipe, ele mal conseguiu assisti-la, já que faleceu ainda em novembro de 1993, no início da temporada do acesso. Aos 73 anos, o patriarca morreu em Roma, vítima de insuficiência cardíaca.

Batistuta foi uma constante da gestão: a estrela do filme (Viola News)

Cecchi Gori II

Para ocupar o lugar de Mario, tanto nos negócios quanto na gestão do clube, assumiu Vittorio. O filho era braço direito do patriarca há tempos e foi o personagem fez o sobrenome ser mais conhecido do que já era.

A grande volta à Serie A acompanhou um momento decisivo para os negócios dos Cecchi Gori. Além de continuar e intensificar a participação do grupo em produções cinematográficas, Vittorio investiu na compra de redes de televisão e na fundação da Telepiù com ninguém menos que Silvio Berlusconi. E assim como seu sócio, que assumiu como primeiro-ministro da Itália, Vittorio iniciou sua vida política e ocupou o cargo de senador pelo distrito de Florença antes do início da temporada.

Com seu presidente, cineasta, empresário e senador, a Viola começou a temporada 1994-95 com uma das melhores notícias que podia receber: a chegada de Rui Costa, o ídolo português que faria companhia ao matador Batistuta. A Fiorentina ficou apenas na décima posição, mas performance da dupla e a volta à elite foram animadoras: a campanha exibiu uma das melhores fases de Batigol, que encerrou a Serie A com 26 gols.

Junto desses nomes brilhando no elenco, já era possível vislumbrar o momento de glória que estava por vir nas temporadas seguintes. Em 1995-96 a resposta não veio na liga, mas a campanha deslumbrante na Coppa Italia fez jus ao timaço que marcou a geração violeta. Foram oito vitórias em oito jogos, 17 gols feitos e apenas três sofridos – além do título, é claro. A temporada e a passagem de Ranieri foram coroadas com a vitória também na Supercopa Italiana, na qual a equipe gigliata desbancou o Milan, vencedor da Serie A de 1996.

No ano seguinte, um novo comandante assumiu o banco da Viola e se tornou uma pedra no sapato de Cecchi Gori. Apesar de fazer sucesso com os torcedores e liderar o time para um quinto lugar na Serie A, Alberto Malesani tinha rusgas públicas com o presidente. A situação descambou de vez depois do anúncio de uma grande contratação no meio da temporada: Edmundo.

Em 1993, morte inesperada de Mario Cecchi Gori levou Vittorio à presidência da Fiorentina (Arquivo/Cinecittà)

Mesmo com o tamanho e da qualidade inquestionável do brasileiro, o atacante já chegou carregando a fama de indisciplinado – o que afastou ainda mais o treinador da diretoria, que preferiu entregar o comando de um dos melhores ataques que passaram por Florença aos cuidados de Giovanni Trapattoni. Em 1998, Vittorio ainda fechou com Tomás Repka, Moreno Torricelli, Guillermo Amor e Jörg Heinrich para fortalecer ainda mais o elenco.

Os altos investimentos deram certo – principalmente no primeiro momento. O trio formado por Batistuta, Edmundo e Rui Costa era avassalador e colocou a Fiorentina nas cabeças do futebol italiano. Porém, a lesão de Batigol e a fuga de Edmundo para curtir o carnaval desaceleraram a arrancada do time que, ainda assim, beliscou um terceiro lugar na Serie A, a classificação para a Champions League e um vice-campeonato na Coppa Italia.

A situação para a temporada seguinte e a postura de fortes contratações continuou a mesma. Apesar da venda de Edmundo ao Vasco, os reforços chegaram aos montes – Cecchi Gori queria mais. Para o desafio na Champions League depois de mais de 30 anos longe da competição, a Viola fechou com Predrag Mijatovic, Enrico Chiesa, Abel Balbo, Angelo Di Livio, Daniele Adani, Alessandro Pierini e Fabio Rossitto – um investimento pesado. A equipe correspondeu e fez bons jogos durante a fase de grupos, mas não conseguiu se classificar para o mata-mata da competição – além de cair de rendimento na Serie A, ficando em sétimo lugar.

As más notícias só se encerraram ao fim da temporada, com as saídas de Trapattoni e Batistuta para seleção italiana e Roma, respectivamente. E a dor de cabeça que iria incomodar Vittorio pelos próximos anos entrou em cena.

Diferentemente das temporadas anteriores, os investimentos no time principal foram reduzidos e, para a vaga deixada por Trap, foi contratado o técnico turco Fatih Terim, então campeão da Copa Uefa pelo Galatasaray. Assim como o que aconteceu com Malesani, Terim teve sucesso e respaldo da torcida, mas as discussões com Cecchi Gori desgastaram a relação dos dois. A gota d’água foi o anúncio de que o turco havia fechado com o Milan para a temporada seguinte. Para o seu cargo foi chamado interinamente Luciano Chiarugi e, na sequência, Roberto Mancini.

O troca-troca de técnicos prejudicou a campanha na liga, mas mesmo com a instabilidade no comando do time, a Fiorentina faturou mais uma Coppa Italia durante a gestão Cecchi Gori. A presidência do produtor cinematográfico era sinônimo de bonança e grandes contratações. Mas só até aquele momento.

Batistuta foi líder da Fiorentina em anos de bonança, mas, em 2000, teve de ser vendido por Vittorio Cecchi Gori (Ansa)

Vittorio, o pária

Como num ponto de virada inesperado num filme, a Fiorentina se viu diante de desafios que mudavam a sua trajetória. O início da temporada 2001-02 deu causas e consequências para toda essa realidade. O político e cineasta de sucesso parecia ter o respaldo para fazer suas transações, mas entre gastos e extravagâncias, Vittorio quebrou.

A gestão fraudulenta e corrupta fez com que o dono vendesse Toldo para a Inter e Rui Costa para o Milan antes do início da campanha – em uma tentativa desesperada de diminuir o rombo feito no clube, que não fora sanado nem com a saída de Batistuta. O impacto das vendas refletiu em uma das temporadas mais desastrosas da Fiorentina: com quatro trocas de técnicos, apenas cinco vitórias, a lanterna da Serie A e o rebaixamento decretado à segunda divisão.

Durante todo esse período, pairou a sombra de processos movidos por jogadores por atrasos salariais e da fiscalização dos órgãos de controle tributário. Cecchi Gori, com a intenção de vender a agremiação, deixara a presidência em 9 de julho de 2001, embora ainda mantivesse o controle societário. Nenhuma oferta chegou. Naquele mesmo ano, Vittorio tentou se candidatar a deputado pela comuna de Acireale, na Sicília, mas não foi eleito. No curso do processo eleitoral, o empresário foi acusado de ter tentado comprar votos de torcedores do time que leva o nome da cidade e militava na Serie C2 – foi absolvido em 2009.

O auge da desgraça da Fiorentina aconteceu durante a preparação da equipe para a disputa da Serie B. Assim como contamos nesse texto dedicado às falências icônicas do futebol italiano, Vittorio entrou para a história. Sem pagar alguns jogadores por meses, após a revisão das contas do clube, a Viola não tinha dinheiro sequer para se inscrever no campeonato. A realidade financeira provocada pelo dono ao tentar sustentar suas empresas levou a Fiorentina à falência e à formação de uma nova associação, que precisou dar os seus passos a partir da quarta categoria e, então, recuperar o prestígio da sociedade violeta.

O rombo nas empresas e no próprio clube era tão grande que tornou Cecchi Gori um criminoso e sua prisão um marco na história italiana. A batida policial em sua mansão, localizada no Palazzo Borghese, em Roma, ocorrida em julho de 2001, culminou em uma apreensão de cocaína em um dos cofres da casa. Quando Vittorio foi perguntado sobre a origem da droga, que estava na cara dos investigadores, ele simplesmente respondeu: “É açafrão”.

Vittorio Cecchi Gori foi do céu ao inferno: frequentar as arquibancadas do Franchi ficou fora de cogitação (imago)

Desde então Vittorio, foi condenado e apelou a diversas instâncias de tribunais superiores que investigaram todas as transações que o fizeram destruir um império. Mesmo assim, todas as sentenças foram iguais: culpado por fraude no processo de bancarrota da Fiorentina e por lavagem de dinheiro.

Enquanto a Fiorentina renascia, Cecchi Gori viu seu patrimônio diminuir a cada condenação – o obrigando a leiloar e vender imóveis que juntos valiam centenas de milhões de euros. Foram pelo menos três condenações, todas por falência e crimes ligados a fraudes cometidas por outras empresas que administrava.

A última delas, feita em fevereiro de 2020, pela suprema corte italiana, sentenciou o produtor cinematográfico a cumprir oito anos e cinco meses de prisão. Porém, como Vittorio estava hospitalizado devido a uma isquemia cerebral que chegou a deixá-lo em coma, ele cumpriu parte da pena no hospital. Depois, pela idade avançada, foi concedido a Cecchi Gori o regime de prisão domiciliar.

Antes do problema de saúde, ainda em 2017, ele cedeu uma entrevista ao programa La Confessione. Quando foi perguntado sobre a Fiorentina, ele respondeu: “Não sou mais apaixonado pelo futebol, prefiro falar de cinema”. O torcedor violeta, por sua vez, prefere não falar de Cecchi Gori.

O nome Cecchi Gori sempre estará ligado à história da esquadra de Florença. Apesar do legado negativo que a família cinematográfica – ou melhor, Vittorio – deixou em sua passagem por lá, não dá para negar que o roteiro escrito por pai e filho terminou em muitas lágrimas, mas arrancou sorrisos nunca vistos em quem é apaixonado pela Viola.

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