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O figuraça Silvio Lancellotti marcou as transmissões de futebol italiano no Brasil

É difícil achar um personagem tão popular nas transmissões de futebol italiano no Brasil quanto o figuraça Silvio Lancellotti. Contador de histórias profissional, o jornalista, escritor, gastrônomo e arquiteto cativou uma legião de fãs da Serie A nas manhãs de domingo, a partir dos anos 1980. Com seu estilo peculiar de comentar os jogos na Bandeirantes, ele se tornou um grande ícone para a comunidade do Italianão em solo brasileiro. É por isso que sua morte causou forte comoção entre os apaixonados pelo esporte praticado na Velha Bota.

Aos 78 anos, Lancellotti faleceu nesta terça-feira, dia 13 de setembro. No início do mês, ele havia sofrido uma parada cardíaca em casa e teve a atividade cerebral comprometida, o que tornou o quadro irreversível. Silvio deixa a esposa Vivian, os filhos Eduardo, Daniela, Giulia, Luísa e o enteado José Renato. Afastado da TV há 10 anos, mantinha uma coluna no portal R7, onde escrevia regularmente sobre futebol, sobretudo o italiano. Mas a carreira de Silvio foi muito além da escrita.

Nascido em 1944 no município de São Vicente, o paulista de origem siciliana se formou em arquitetura e até chegou a trabalhar na área. Porém, perdeu o brilho pela profissão, a ponto de migrar para o jornalismo e compor a primeira equipe da revista Veja, em 1968. Começou como redator, escrevendo para a editoria internacional. Depois, trabalhou na Istoé, da qual virou redator-chefe. No início dos anos 1970, rumou aos Estados Unidos para estudar comunicação na Universidade de Stanford e cobriu eventos marcantes: as mortes de Martin Luther King e Bobby Kennedy e a reeleição de Richard Nixon. A partir daí, sua carreira na imprensa decolou.

O paulista dirigiu a revista Vogue e chegou a dois dos maiores jornais do país, Folha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo, para escrever sobre esportes e gastronomia. Sua maneira peculiar de contar histórias o levou também à TV, na década de 1980. Emissoras como Gazeta e Manchete foram sua casa antes do sucesso nas transmissões de futebol italiano na Bandeirantes.

A Serie A foi a primeira liga europeia transmitida por uma rede de televisão brasileira. Na época, Luciano do Valle se impressionou pelo conhecimento de Lancellotti pelo futebol italiano, que seria atração do Show do Esporte, na Bandeirantes. O jornalista obtinha suas informações através das assinaturas da Gazzetta dello Sport, do Guerin Sportivo e de outras publicações esportivas da Velha Bota, que pouco circulavam por aqui naquela década, e foi convidado pelo locutor para comentar uma partida entre Milan e Juventus. Aprovado, Silvio viria a ganhar fama principalmente por causa da parceria com o narrador Silvio Luiz e com Giovanni Bruno, restaurateur que também participava das transmissões.

Lancellotti, no início de carreira, ao lado de Luís Nassif, na redação da Veja (Arquivo pessoal)

Amante de literatura e, curiosamente, dicionários, Lancellotti enriquecia a atração futebolística com pitacos sobre culinária, viagens e outros temas que envolviam os telespectadores. E, quase sempre, o fazia com um vocabulário rebuscado, repleto de expressões pouco usuais da língua portuguesa e palavras emprestadas do vernáculo da Velha Bota.

O jeitão único de Silvio comentar os jogos fez dele uma referência de futebol europeu à época e deixou um legado. O comentarista Antero Greco, dos canais ESPN, é da “escola Lancellotti”, por exemplo. Isso porque ele sempre insere dicas de gastronomia e de turismo pela Itália quando é designado para trabalhar nas transmissões de partidas da Serie A.

Lancellotti também ganhava a simpatia da boleirada. Não por acaso se tornou amigo de craques do futebol mundial, como Marco Tardelli, Franco Baresi e até mesmo Diego Armando Maradona. A relação com o Pibe d’Oro, aliás, teve início na Copa do Mundo de 1990. O paulistano ia de carro até Trigoria, em Roma, local de concentração da seleção argentina, todos os apenas para medir, com uma fita métrica, o inchaço do tornozelo do ídolo do Napoli.

No começo, Maradona achou estranho, mas depois levou na boa e se tornou amigo do curioso jornalista. Naquele Mundial, inclusive, Lancellotti ficou espantado com o fato de a cidade de Nápoles se mobilizar a favor da Argentina – por causa do camisa 10 – contra a própria seleção italiana, na semifinal do torneio. Contar histórias mirabolantes e tratar da relação de amizade com craques eram aspectos comuns de sua crônica. Se todos os relatos eram verdadeiros ou alguns se valiam de licença poética, jamais saberemos.

O estilo singular de Silvio o fez ser imitado em programas humorísticos. O grupo Hermes e Renato deu vida ao personagem Milton Bollotti (assista ao vídeo). Em entrevista à Folha, o jornalista admitiu que “morria de rir” com a paródia e que, inclusive, mostrou uma sequência de vídeos de Hermes e Renato a seus netos. Outra atração de humor que imitou Lancellotti foi o Casseta & Planeta, com o personagem Silvio Lanchonete – que associava o comentarista a seu lado gastronômico.

Lancellotti foi sinônimo de futebol italiano por mais de 40 anos (UOL)

Aliás, segundo a descrição de sua coluna no portal R7, do qual fez parte de 2012 até seu falecimento, o jornalista apresentou “cerca de 5 mil programas de culinária” em sua carreira. Chegou a ter, aliás, uma linha de panelas com seu nome. A gastronomia foi uma paixão que desenvolveu graças a seu pai, Edoardo, que lhe ensinou a cozinhar.

Multifacetado, Silvio Lancellotti somou, ainda, 21 livros publicados, oito coberturas de Copa do Mundo e seis dos Jogos Olímpicos. Um profissional de primeira linha, e em várias especialidades. Cabe salientar, ainda, que sua obra literária de maior sucesso, “Honra ou Vendetta”, foi transformada na novela “Poder Paralelo”, exibida pela Record entre 2009 e 2010.

A última aparição de Silvio como comentarista de televisão foi em maio de 2012, quando anunciou no ar, durante a final da Coppa Italia entre Juventus e Napoli, que deixaria a ESPN e estrearia uma nova coluna no R7. Para a tristeza do escritor, juventino declarado, a Vecchia Signora perdeu o título para o time napolitano, por 2 a 0, no Olímpico de Roma. Lancellotti também era apaixonado pelo Corinthians.

Nos últimos anos, Lancellotti vinha enfrentando dificuldades para se locomover, devido a um acidente automobilístico. Uma prótese no quadril e outra na perna esquerda complicavam ainda mais a situação. Devido à inatividade, ele desenvolveu neuropatia periférica, uma condição que afetava o seu sistema nervoso. Sua voz também estava rouca em função de cansaço nas cordas vocais.

Em conversa com o canal Futebol Maloca e Boteco, o jornalista se definiu da seguinte forma: “O Silvio Lancellotti, como dizia aquela canção, [é] um pobre jovem que gosta dos Beatles e dos Rolling Stones. E que nunca se decidiu se era Beatles ou Rolling Stones. Porque tem dias que eu sou Beatles, tem dias que eu sou Rolling Stones”. Tal qual as bandas britânicas, Lancellotti abriu muitas portas: será lembrado para sempre como o precursor das transmissões de futebol italiano no Brasil.

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