Direto da Itália

A tradição do ‘calciomercato’: da banheira para a história

Por três dias a grande sede futebolística de Milão não será o San Siro. Pelos mesmos três dias, procuradores esportivos, empresários e dirigentes é que deverão encher os olhos da torcida com suas atuações. O fechamento da janela de transferências vem aí e, com ela, uma tradição de décadas: o centro de transferências do calciomercato continua localizado em um hotel escolhido pelos cartolas. Tudo para facilitar os negócios nos últimos minutos.

Neste ano, o burburinho do mercado acontecerá no Meliá, hotel cinco estrelas que pertence a uma rede espanhola. Os arredores do local (que fica a cerca de 3 quilômetros do estádio Giuseppe Meazza) já recebiam alguns jornalistas e uma movimentação ainda tímida da imprensa na segunda (28), um dia antes do início das atividades. Quem ultrapassasse a porta giratória, no entanto, já poderia sentir a atmosfera ideal para o frenesi das transações sendo criada, com a montagem de vários backdrops para as inúmeras entrevistas que serão realizadas nestes dias.

Dirigentes, empresários e até jogadores se espalharão pelos quartos e boxes montados para a celebração dos contratos. Por sua vez, o bar vai armando seu arsenal de prosecco, para aqueles que irão comemorar os grandes negócios, e de uísque, para que as frustrações pelas transferências não efetivadas sejam amenizadas.

 

O início e as sedes

O ritual de concentrar as negociações do final de janela em uma dessas acomodações começou nos anos 1950 no tradicional hotel Gallia, próximo ao centro da cidade de Milão. Dá até pra ser mais específico e dizer que tudo começou na banheira de um dos quartos. Foi lá, há pouco mais de sessenta anos que o lendário Giuseppe Viani, antigo treinador do Palermo e inventor da posição de líbero, recebeu um abraço caloroso e pelado do então presidente do clube da Sicília, o príncipe Raimondo Lanza di Trabia. “Eu sou o dono de um homem!”, bradava o extravagante cartola, depois de fechar com mais um grande reforço naquele quarto 131.

Esta é só uma das histórias estapafúrdias que circundaram a criação do calciomercato e seus personagens. Para começar (bem nas origens mesmo), Lanza di Trabia era filho bastardo de um príncipe siciliano e de uma princesa vêneta, que só foi reconhecido pelos dois depois de intervenção da avó paterna junto ao primeiro-ministro Benito Mussolini. Crescido, se tornou um militar e diplomata afeito aos divertimentos do show bussiness: dândi e bon vivant, era frequentador da Cinecittà e se relacionou com muitas atrizes.

O príncipe manteve seu título de nobreza mesmo após o fim da monarquia na Itália, após a II Guerra Mundial, e no início dos anos 1950 se casou com Olga Villi, uma das atrizes que cortejava. Foi exatamente ela que motivou a frase proferida pelo príncipe a Viani. Lanza di Trabia, no afã de fazer o Palermo disputar títulos com a Juventus (nunca chegou nem perto), também cometia excentricidades: como quando presentou a esposa com a compra de um jogador, apenas para que ele os entretivesse fazendo embaixadinhas no jardim de sua mansão. O meia Gegé Fuin, com passagens por Verona e Lazio, foi o presentão.

Enquanto o príncipe era conhecido por fazer muitas tratativas com presidentes e empresários da época dentro da banheira ou totalmente nu sobre sua cama, Viani tinha estilo oposto. Muito parecido com John Wayne, Gipo também era durão e tinha o apelido de Lo Sceriffo – o xerife, em português. Além da semelhança com o astro dos faroestes, a alcunha lhe servia como uma luva pelo modo autoritário com o qual conduzia tratativas e passava instruções para seus jogadores. Viani era um caçador de talentos: ao contrário de seu patrão palermitano, preferia cavoucar a terra para achar gemas preciosas.

Quem seguia o mesmo expediente de Gipo Viani era Paolo Mazza, presidente da Spal. Observador nato, Mazza contratava jogadores jovens e/ou desconhecidos com o intuito de valorizá-los para que o clube de Ferrara lucrasse com futuras transações e pudesse se manter na elite. Era o próprio presidente quem fazia as vezes de diretor esportivo e, nas muitas viagens a Milão, se encontrava com cartolas de outros clubes e procuradores no local em que se hospedada. Onde? No Gallia, é claro.

Mazza estava apenas sendo prático ao marcar uma série de encontros num mesmo local para fechar negócios e enganava o tempo – afinal, estava à frente dele. Assim, o mandatário da Spal driblava as precárias formas de comunicação e transporte da época e evitava intermináveis trocas de telegramas e caríssimas chamadas internacionais, agilizando a conclusão das transferências e a homologação de documentos. O esporte no Belpaese já era globalizado, devido aos sul-americanos de origem italiana (os oriundi), mas no fim dos anos 1940 e início dos 1950 uma horda de escandinavos liderou a maré de novos jogadores estrangeiros que chegavam à Serie A. Portanto, o pioneirismo do dirigente muito importante para o futebol da Itália naquela época.

A extravagante aliança entre Lanza di Trabia e Viani e o pragmatismo de Mazza renderam muitas contratações importantes para Palermo e Spal, respectivamente. Após o pioneirismo do trio, o hotel Gallia virou lenda e logo se tornaria a sede do calciomercato por muitos anos. O saguão fervilhava, com pessoas andando para todos os lados. As três principais marcas do evento atual ainda não existiam: celulares, computadores modernos e euros (a moeda na época era a lira); mas mesmo assim, as máquinas de escrever portáteis cumpriam bem o papel e negociações astronômicas eram firmadas, entre garrafas de champagne.

Por incrível que pareça, a direção do hotel não gostava do movimento no lobby. O motivo? Muitos dos dirigentes e empresários que apareciam para fazer negócios não reservavam suítes e somente atrapalhavam o trânsito de outros hóspedes. Em 1969, o presidente do Gallia chegou a enviar uma carta para os clubes comunicando que não permitiria a entrada qualquer pessoa que não fosse freguês do hotel. Seu apelo não foi atendido e a multidão de homens do futebol foi submetida a tortura: as cadeiras e poltronas foram retiradas do saguão e o ar condicionado foi desligado, em pleno verão europeu. No ano seguinte, é claro, a sede acabou mudando de lugar.

O tempo passou e a rede de hotéis Hilton virou o shopping center da bola na Itália. Depois vieram muitas outras sedes, como os hotéis dos grupos Starhotels Business Palace e AtaHotel Executive; sempre mantendo a localização de luxo. Depois de a última sede fechar as portas, o Meliá recebe a atual edição do calciomercato.

Ao longo dos anos, a tensão do fechamento da janela de transferências começou a ser transmitida ao vivo por jornalistas da Itália e de todo o mundo, que montam seus postos avançados dentro dos hotéis. Uma vez que o QG está montado e se adentra a loucura e o espaço de troca desenfreada de informações sobre uma penca de jogadores, não há muito que passe batido: atletas são oferecidos a várias equipes em questão de horas, negociações melam por detalhes e até mesmo por problemas na infraestrutura.

Em 2013, o super agente Mino Raiola xingou até a vovozinha no ar, em entrevista a Gianluca Di Marzio. Ele assumiu que um de seus representados, o suíço Kasami poderia não acertar com o Pescara por uma série de contratempos. Primeiro, os elevadores não funcionaram, atrasando a firma dos documentos, que acabaram ficando para os segundos finais da janela. Na hora do registro, a internet ficou lenta e… de fato, a negociação não foi concretizada.

Para driblar estes constrangimentos, vale tudo e recursos analógicos podem até ser mais efetivos na hora do desespero. Quem não lembra de quando, para não perder a hora, o emissário do Genoa, Federico Pastorello, arremessou o contrato de Diego Milito por cima da parede de PVC que delimitava o escritório temporário da liga? O argentino foi regularizado e todos sabem o que aconteceu: sucesso monumental no Marassi em 2008-09 e, depois, na Inter. São apenas algumas das muitas histórias malucas que perpassam os corredores e os lobbies dos hotéis nestes dias de encerramento do mercado.

Com todo esse histórico, hoje se inicia a corrida pelos bons negócios e já tem muito dirigente indo para a banheira, esperando aquele gol salvador aos 45 do segundo tempo. Será que ele vem?

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2 comentários

  • Hahahahaha essa história de Milito é sensacional! Parece bastante o mercado informal de abadá no carnaval de Salvador quando o bloco está prestes a sair! A parte baiana da diretoria do Calciopédia deve saber do que tô falando hehehehe =P

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