Serie A

Tem coisas que só acontecem com o Torino

Alfredo Foni conseguiu tirar a Inter do jejum com o título nacional em 1952. A comemoração foi seguida por críticas: aquela equipe foi a primeira a obter real sucesso com o catenaccio – ou, ao menos, com uma variação dele. Os nerazzurri tinham a defesa, mas não conseguiam ser tão proeminentes no ataque como o famoso time de Helenio Herrera na década seguinte. De qualquer forma, a imprensa acusava a Inter de “acabar com o futebol” e “afastar o público dos estádios” por conta deste estilo de jogo. Esta visão exemplifica o quão impactante foi o Grande Torino e porque a tragédia de Superga foi um marco na história de um clube azarado, com histórias que poderiam compor um livro de realismo fantástico.

Precisar quem foi o pai do Futebol Total é complicado. Na Itália, há quem ache que o mentor foi Fulvio Bernardini nos anos 50; outros afirmam que foi Erno Erbstein. Em 1947-48, o Torino levou o scudetto num campeonato em que marcou 125 gols: a grande exibição daquela equipe provavelmente tenha sido um 7 a 0 contra a Roma, na capital, em que o Toro fez seis gols nos primeiros 19 minutos. Sem um líbero (popular entre as décadas de 1960 e 80) e com um ataque devastador, as críticas sobre aquela Inter eram justificáveis: ainda que o jogo migrasse por um caminho diferente, a conquista azul e negra aconteceu pouco tempo depois do desastre que culminou no fim de um time mítico, alçado ao Olimpo por méritos próprios e pela nostalgia.

Os jovens que partiram

Os jogadores que não retornaram com vida do amistoso em Portugal ficaram conhecidos como caduti. “Caídos”, em tradução literal, mas também como referência à catástrofe aérea, como se fossem anjos caídos. Jovens para sempre, uma vez que o atleta mais velho daquele time tinha 33 anos. A maioria deles tinha entre 23 e 26 anos, e o craque Valentino Mazzola tinha acabado de comemorar o 30º aniversário.

Luigi Meroni era o grande jogador do Torino entre 1965 e 67, sobretudo. O meia-direita ágil e técnico era comparado a George Best, também pelo estilo boêmio extracampo, que ambos tinham. O ápice da carreira dele talvez jamais tenha existido devido a uma fatalidade: com 24 anos, depois de ser expulso contra a Sampdoria, ele foi convencido pelo companheiro de time, o zagueiro Fabrizio Poletti, a fugir da concentração estabelecida pelo técnico Nereo Rocco. Ao atravessar a rua, foi atingido por um Fiat Coupé de raspão e, na sequência, atropelado por outro carro, que arrastou o jogador por 50 metros pelo asfalto. Quem estava ao volante do Lancia Appia era Attilio Romero, fã do Torino e de Meroni. Ironicamente, o motorista se tornaria presidente do Toro em 2000.

Outro ídolo, este por longevidade, também morreu jovem. O meio-campista Giorgio Ferrini era uma das peças-chaves do Torino durante toda a década de 1960. Ele se aposentou em 1975, foi reintegrado ao corpo técnico no ano seguinte como auxiliar de Luigi Radice, mas não sobreviveu a duas hemorragias cerebrais naquela temporada. Ele permanece como o líder de presenças com a camisa grená, com 566 jogos.

O funeral de Meroni parou Turim (La Stampa)

O azar europeu e o título no sufoco

O Torino voltou à Serie A logo no primeiro ano da década de 90 com a pretensão de permanecer na divisão de elite. O presidente Gian Mauro Borsano e o técnico Eugenio Fascetti continuavam não se dando bem – especialmente porque o cartola insistia que o treinador pensava o futebol de “modo defensivo e tímido”. Emiliano Mondonico foi contratado neste ambiente de tensão permanente: disputar o campeonato que tinha os melhores jogadores do mundo à frente e um clube que lutava para retomar a grandeza adormecida.

O novo comandante já conhecia o terreno – em 1968, o Toro contratou o então jogador junto à Cremonese num momento que a torcida chorava a perda de Meroni. Na primeira temporada como treinador, Mondonico começou a provar que não era somente um tampão: quinta posição final, uma colocação melhor que a do Napoli, campeão anterior, e a da rival Juventus.

Ao retornar ao cenário continental, os cabeceios de Enrico Annoni, os dribles de Gianluigi Lentini, as assistências de Enzo Scifo e os gols de Walter Casagrande empurraram o time contra Reykjavík, Boavista, AEK, B 1903 e Real Madrid de Emilio Butragueño e Hugo Sanchéz na Copa Uefa. Depois de um empate no Piemonte, a decisão contra o Ajax foi favorável aos holandeses, que viram os italianos acertarem a trave em três ocasiões (sendo duas de Casão). 

A final em Amsterdã é um dos momentos dos momentos de sucesso e azar que o Toro viveu entre as décadas de 1970 e 1990. Por um lado, o Toro conseguiu vencer o scudetto em 1976 (graças aos atacantes Francesco Graziani e Paolino Pulici, os Gêmeos do Gol) e a Coppa Italia no ano anterior à final continental. Mas o sofrimento…

Começando pela competição eliminatória nacional: nos anos 1980, o granata foi vice-campeão quatro vezes, perdendo para Roma (duas vezes e nos pênaltis), Inter e Sampdoria. Quando chegou à decisão novamente, o título não foi fácil. Mesmo vencendo em casa por 3 a 0, levou 5 a 2 em Roma, com três gols de Giuseppe Giannini, todos em penalidades, e ainda viu o lendário meio-campista giallorosso acertar a trave no fim. O time com Graziani e Pulici, por sua vez, ainda batalhou até a rodada final pelo título da Serie A em 1977. O scudetto ficou com a Juventus, que teve um ponto a mais ao fim da temporada. Perder somente uma vez na campanha não foi o suficiente para o Torino.

A falência e as promessas

Em 1992, a Câmara autorizou a abertura de processos contra Borsano, candidato à prefeito de Turim àquela altura, por fraudes bancárias e contas falsas. Após vender o clube por pouco mais de 15 bilhões de liras (aproximadamente 8 milhões de euros) a Roberto Goveani, o ex-presidente ainda respondia, também, por apropriações indevidas. Entre 1994 e 2000, o Torino ainda foi vendido outras quatro vezes.

O pouco que sobrou do antigo Filadelfia, em 2009, antes da renovação completa

O acesso à Serie A depois de bater o Perugia nos play-offs em 2005 nunca aconteceu. Apesar da vitória no campo, a Liga proibiu a promoção, visto que a agremiação não tinha como oferecer garantias financeiras. Entre 1995 e 2005, o Toro foi um verdadeiro ioiô, e alternou bastante entre a primeira e a segunda divisão, um claro efeito da falta de dinheiro – o que piorou a partir de 2000, quando Francesco Cimminelli assumiu o clube e entregou a presidência a Attilio Romero, o mesmo cidadão que atropelou Meroni. Em 2003, após a enésima queda para a B, a torcida não aguentou mais: foi organizada uma marcha que reuniu cerca de 50 mil torcedores em Turim. A manifestação partiu das ruínas do histórico estádio Filadelfia, passou pelo memorial de Meroni e terminou na Basílica de Superga.

Em 2005, quando o clube faliu, um grupo de torcedores se reuniu, criou uma nova firma e, com apoio de uma empresa local, o Torino foi refundado. Já estava tudo certo para que Urbano Cairo, conhecido publisher lombardo e empresário do ramo editorial, assumisse o Torino. Uma entrevista coletiva chegou a ser marcada na mesma taverna em que o Toro fora fundado. Porém, um dos acionistas que ajudaram o Torino a pagar parte dos débitos, Luca Giovannone, apareceu com uma escritura que lhe garantia o controle acionário dos granata – 51%. E, prontamente, se recusou a vender o clube a Cairo.

Depois de uma longa negociação, que envolveu até o prefeito de Turim, Giovannone decidiu negociar… e logo voltou atrás. Após a fúria da torcida grená, ele fugiu da cidade e se escondeu em um hotel, mas mesmo assim foi cercado por torcedores, tendo de deixar o local escoltado pela polícia. Falando em problemas com a lei, a justiça italiana processou Romero por fraude e má gestão, responsabilizando-o por contribuição aos problemas financeiros do Torino. Além de ter participado, mesmo sem querer, da morte de uma das maiores estrelas do clube, ainda prejudicou a agremiação sendo um diretor irresponsável.

Depois de muito drama (senão não seria Torino), o desfecho foi favorável. Um acordo entre a Companhia Metropolitana de Água de Turim conseguiu inscrever a nova Società Civile Campo Torino na Serie B subsequente e meses depois o milionário Urbano Cairo conseguiu fechar a compra do clube, que recebeu a denominação Torino Football Club.

No último dia da temporada 2013-14, o Torino dependia apenas de si para garantir uma vaga na Liga Europa – seria a volta triunfante do clube a uma competição europeia em duas décadas. Alessio Cerci, contudo, errou um pênalti no último lance, o Toro perdeu para a Fiorentina e viu o Parma agarrar a vaga final – que acabou com o granata de qualquer forma, uma vez que os crociati, desta vez, foram excluídos pela Uefa por conta das dívidas que culminariam em bancarrota, meses depois.

Nos últimos anos, o Torino tentou encerrar um jejum de 20 anos sem bater a rival Juventus, mas levou um banho de água fria nos acréscimos. Quebrou a escrita, mas depois sofreu mais duas vezes com o gol no fim. Mai una gioia. Alegria de grená dura pouco.

Nem o antigo estádio Filadelfia, palco das histórias épicas de Mazzola, passou impune. O estado foi usado até 1963, quando o Torino passou a dividir o Comunale com a Juve. Em 1990, projetaram a reforma dele para 30 mil espectadores, pois “o retorno ao Filadelfia estava acima de qualquer problema ideológico”, dizia o presidente Borsano. Quatro anos depois, a negligência pesou: o estádio foi fechado após o clube anunciar que era perigoso demais para as pessoas assistirem aos treinamentos. Novas promessas foram realizadas em 1995, 1996, 1998, 2000 e 2004, mas os planos saíram do papel somente em 2015. Atualmente, o Filadelfia renovado serve como centro de treinamentos da equipe principal e estádio do time primavera.

Neste momento, o Torino vive um momento de paz, de absoluta pasmaceira, até. O próximo drama do Torino está sendo gerado em silêncio. Tal qual um Messias torto, ele virá. Pode ter certeza.

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