Era o começo de uma era de ouro no Milan. Endinheirado desde a aquisição por parte de Silvio Berlusconi, em 1986, e comandado pelo maior treinador da sua história, Arrigo Sacchi, o clube italiano inaugurara tempos gloriosos em solo nacional e estava prestes a se proclamar dominante em âmbito internacional. Para isso, teve de superar um fortíssimo Estrela Vermelha pela Copa dos Campeões, em 1988.
Depois de superar o Napoli de Diego Maradona e companhia com uma ultrapassagem sensacional para faturar o scudetto da temporada 1987-88, a equipe rossonera sonhava com o tricampeonato europeu. Sem vencer a Copa dos Campeões desde 1969, quando bateu o Ajax, no Santiago Bernabéu, por 4 a 1, o Diavolo esperava voltar ao topo do continente 20 anos depois.
A trajetória europeia começou com um triunfo tranquilo, na primeira fase, contra o Levski Sofia, da Bulgária. Nas oitavas de final, porém, o maior Milan de todos os tempos teve uma pedreira contra o Estrela Vermelha, que era treinado pelo veterano Branislav Stankovic e contava com craques da estirpe de Dejan Savicevic, Dragan Stojkovic e Robert Prosinecki – todos na fase inicial de suas carreiras.
O jogo de ida, em Milão, chegou a ser ameaçado por questões climáticas. No dia anterior ao duelo, uma onda de frio provocou uma forte neblina na Lombardia, preocupando a Uefa. Apesar disso, o tempo serenou e 71.316 mil pessoas puderam acompanharam o empate por 1 a 1 entre o campeão italiano e o campeão iugoslavo.
O Estrela Vermelha foi a campo com uma postura bastante defensiva e até faltosa, que obrigou o Milan a trabalhar muito com bolas alçadas à área – numa delas, Carlo Ancelotti cabeceou para boa defesa de Stevan Stojanovic. Ainda na etapa inicial, Roberto Donadoni aproveitou um erro da defesa iugoslava e cruzou para Pietro Paolo Virdis, artilheiro milanista na Serie A 1987-88, que perdeu a chance com o gol aberto.
No segundo tempo, o Estrela Vermelha entrou mais ligado. Após uma cobrança rápida de falta em contra-ataque, Stojkovic passou por Paolo Maldini e Franco Baresi; finalizou mal, mas surpreendeu Giovanni Galli e abriu o placar, aos 47 minutos. O gol funcionou como um choque para o Milan, que empatou o jogo enquanto a transmissão oficial da partida ainda exibia o replay do tento visitante.
O gol representou a redenção de Virdis. O italiano recebeu belo passe de Marco van Basten e finalizou com a parte externa do pé direito, naquele que considera um um dos momentos mais bonitos de sua carreira. O Diavolo seguiu pressionando em busca da virada, mas não passou de uma boa chance de Ruud Gullit e de um chute na trave de Donadoni. Sem outras alterações no placar, a peleja ficou empatada em 1 a 1.
Duas semanas depois, desta vez em Belgrado, capital da antiga Iugoslávia, Estrela Vermelha e Milan voltariam a se enfrentar, no dia 9 de novembro. A equipe da casa foi superior durante grande parte do confronto e, embora a partida estivesse empatada em 0 a 0, foi para o intervalo classificada por causa do gol anotado em Milão. Na volta dos times para o gramado, porém, surpresa: o campo do estádio Rajko Mitic, conhecido carinhosamente como Marakana, estava tomado por um denso nevoeiro. A cerração que dera uma trégua na Lombardia dava o ar da graça no Leste Europeu.
Como ainda havia alguma visibilidade, o árbitro Dieter Pauly, da Alemanha Ocidental, deu prosseguimento ao jogo. E, aos 50 minutos, Savicevic marcou um gol que quase ninguém viu com nitidez – a transmissão iugoslava precisou escurecer as imagens do replay para que os telespectadores pudessem tentar enxergar uns vultos e a bola estufando a parte superior da rede rossonera. Para piorar a vida do Milan, aos 55, Virdis foi expulso após incidente com Ilija Najdoski. Com a desvantagem no marcador e um jogador a menos, o Milan parecia entregue, “de joelhos” como afirmou Stojkovic em entrevista para a BBC, em 2013.
Só que a sorte estava do lado milanista. Após os acontecimentos, a visibilidade – que já era muito ruim –, piorou por causa dos sinalizadores que a torcida iugoslava utilizava para comemorar o gol e a expulsão. Stojkovic afirmou que não estava conseguindo ver a bola, por exemplo. O festejo, então, virou lamento quando o árbitro decidiu interromper a partida, aos 57 minutos. O confronto, que viria a ser jogado no dia seguinte, para desespero dos jogadores sérvios, começaria do zero. Um novo pontapé inicial, uma nova chance para o tri milanista.
Capitão do Estrela Vermelha, Stojkovic disse, ainda em entrevista à BBC, que toda a sua equipe ficou em choque ao ver que o técnico Branko Stankovic havia concordado com o pedido do Milan para que a partida fosse repetida no dia seguinte, menos de 24 horas após o primeiro confronto. Segundo o craque, a escolha do treinador favoreceria o Milan, mais bem preparado fisicamente e de plantel muito mais qualificado – com opções de banco como Gullit, descansado e pronto para brilhar.
Com as mesmas escalações, à exceção de Virdis, expulso no dia anterior, e Ancelotti, que cumpria suspensão por ter levado o segundo cartão amarelo, Milan e Estrela Vermelha se enfrentaram, na tarde de 10 de novembro de 1988, num dia parcialmente nublado, sem qualquer sinal de que a santa neblina rossonera pudesse reaparecer. Por outro lado, o Diavolo tinha uma leve pressão nacional nas costas. Na noite anterior, todos os outros times italianos envolvidos em disputas europeias haviam se classificado para as fases seguintes dos torneios que disputavam: a Sampdoria, na Recopa, e Inter, Juventus, Napoli e Roma na Copa Uefa.
Diferentemente do segundo confronto, o terceiro começou com o Milan amassando o Estrela Vermelha. Logo nos primeiros minutos, um chute de Alberico Evani foi desviado e, na hora de tentar cortar a bola, Goran Vasilijevic pegou na orelha da bola: a redonda acabou cruzando a linha do gol em cerca de 1 metro antes de o próprio defensor iugoslavo cortar, mas a arbitragem não validou o tento.
No decorrer do primeiro tempo, finalizações de Frank Rijkaard e do garoto Graziano Mannari, substituto de Virdis, levaram perigo a Stojanovic. O gol rossonero sairia aos 35 minutos, quando Evani levantou na área e Van Basten, com cabeçada fulminante, não deu chances ao goleiro iugoslavo. Porém, assim como foi na partida de Milão, o troco seria imediato.
O Estrela Vermelha empatou aos 39, com o melhor que o futebol dos Bálcãs pode produzir. Em contra-ataque rápido, com ligação direta, Savicevic recebeu de costas para o gol, na intermediária, e já girou lançando Stojkovic em profundidade, em espaço nas costas da defesa rubro-negra: o camisa 10 nem dominou e chegou chutando forte, fazendo a bola explodir no travessão e morrer no fundo das redes. Um golaço antológico.
Ainda no primeiro tempo, uma jogada daria o tom do nervosismo que a partida ganhou após o 1 a 1: Vasilijevic pulou de forma imprudente sobre Donadoni e, no choque, fraturou-lhe o maxilar. O italiano foi direto para o hospital e deu lugar a Gullit, que entrou muito bem no jogo e foi o grande nome rossonero na segunda etapa, obrigando Stojanovic a fazer duas excelentes defesas. No Estrela Vermelha, quem deu trabalho foi Prosinecki, que se recuperava de uma lesão que o afastou do confronto de ida e só esteve apto para jogar a partir dos 74 minutos de peleja.
O empate se manteve no tempo normal e, na prorrogação, um Milan mais inteiro fisicamente não conseguiu vazar Stojanovic – embora Mannari tenha tido duas ótimas oportunidades para isso. A partida seguiu para as penalidades e o Milan levou a melhor: não desperdiçou nenhuma cobrança e superou os iugoslavos, que erraram duas. O grande nome da disputa foi Galli, que defendeu o chute central do craque Savicevic e foi no canto direito para espalmar a finalização de Mitar Mrkela. Rijkaard converteu a penalidade decisiva e levou o Diavolo para as quartas de final da principal competição europeia.
Salvo pela neblina e pela controversa decisão de não continuar a partida de onde ela parou, mas de reiniciá-la, o Milan avançou para conquistar a Europa. Nas fases seguintes, o time de Sacchi conseguiu passar por Werder Bremen (por 1 a 0 no placar agregado) e Real Madrid (6 a 2 no agregado, com direito a um mágico 5 a 0 em San Siro), chegando à final contra o Steaua Bucareste de Dan Petrescu e Gheorghe Hagi.
No fim das contas, a neblina que impediu que iugoslavos e italianos assistissem à derrota milanista, proporcionou ao mundo o amadurecimento de um dos maiores times de todos os tempos, que se sagraria campeão europeu após vencer os romenos por 4 a 0 – e ainda abocanharia mais outro título europeu e dois Mundiais Interclubes sob as ordens de Sacchi. A natureza sempre sabe o que faz.
Milan 1-1 Estrela Vermelha (ida)
Milan: Galli; Mussi, Tassotti, Baresi, Maldini; Colombo, Ancelotti, Rijkaard, Donadoni; Van Basten, Virdis (Gullit). Técnico: Arrigo Sacchi.
Estrela Vermelha: Stojanovic; Radovanovic, Najdoski, Juric, Ivanovic, Vasilijevic; Sabanadzovic (Djurovic), Savicevic (Mrkela), Besic; Stojkovic; Bursac (Mrkela). Técnico: Branislav Stankovic.
Gols: Virdis (48′); Stojkovic (47′)
Árbitro: Siegfried Kirschen (Alemanha Oriental)
Local e data: estádio San Siro, Milão (Itália), em 26 de outubro de 1988
Estrela Vermelha 1-1 Milan; 2-4 nos pênaltis (volta)
Estrela Vermelha: Stojanovic; Radovanovic, Najdoski, Juric, Ivanovic, Vasilijevic; Sabanadzovic, Savicevic, Djurovic (Prosinecki); Stojkovic; Bursac (Mrkela). Técnico: Branislav Stankovic.
Milan: Galli; Tassotti, Costacurta, Baresi, Maldini; Colombo, Donadoni (Gullit), Rijkaard, Evani; Van Basten, Mannari (Cappellini). Técnico: Arrigo Sacchi.
Gols: Stojkovic (39′); Van Basten (35′)
Pênaltis convertidos: Stojkovic e Prosinecki; Baresi, Van Basten, Evani e Rijkaard
Pênaltis perdidos: Savicevic e Mrkela
Árbitro: Dieter Pauly (Alemanha Ocidental)
Local e data: Rajko Mitic, Belgrado (antiga Iugoslávia), em 10 de novembro de 1988