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Em boas mãos: há mais de sete décadas, os Dellacasa tratam os músculos dos atletas da Inter

A partir do momento em que a Inter retomou as suas atividades normalmente – e o seu nome original – após a queda do fascismo e o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, apenas um sobrenome se repetiu no quadro de funcionários do clube desde então: Dellacasa. Através de quatro profissionais, três gerações da mesma família ajudam a contar a história dos nerazzurri nas últimas sete décadas, graças a um grande trabalho nos bastidores.

Afinal de contas, nem só de empresários bilionários, conglomerados internacionais, treinadores excêntricos, dirigentes renomados ou grandes craques vive um clube de futebol. Há 76 anos, uma família tem na Inter o seu ganha-pão. Presentes em dois terços da história do clube de Milão, os Dellacasa saíram da bela Sanremo, no litoral da Ligúria, para cuidar dos músculos dos jogadores nerazzurri, em uma tradição iniciada com o avô e transmitida até os netos.

Tudo começou em 1945. O mundo do futebol era muito diferente naquela época, e ainda tínhamos o agravante de uma Itália destruída pela guerra e os fascistas. Pugilista amador e crupiê em cassinos da Riviera Lígure, Bartolomeo Dellacasa, conhecido como Tumela, nascera no mesmo ano de fundação da Inter, em 1908. E, de forma aleatória, um encontro com um dirigente nerazzurro selou o seu enlace com o clube de mesma idade. Os dois se conheceram em Stresa, nas margens do Lago Maggiore, se tornaram amigos e, a partir dessa relação, surgiu a oferta que tirou o massagista da Sanremese.

Bartolomeo, o Tumela, foi o primeiro dos Dellacasa a trabalharem para os nerazzurri (Arquivo/Inter)

A sua trajetória na profissão começou ainda antes da Segunda Guerra, nos anos 1930, quando acompanhou o clube da cidade nas suas únicas três temporadas na Serie B. Já em Milão, se tornou referência na área. Além das duas décadas trabalhando na Inter, Tumela também prestou serviços para a seleção. Na época, a Federação Italiana de Futebol – FIGC também convocava funcionários dos clubes para os compromissos internacionais da Nazionale.

Tumela morreu em 1968, quando acompanhava a equipe de esqui italiana nos Jogos Olímpicos de Inverno, em Grenoble, na França. Antes disso, já havia passado o bastão para o filho Giancarlo, que entrou no clube em 1960. Ainda um garoto seguindo os passos do pai, o jovem massagista se adaptou a duras penas ao mundo do futebol, durante os anos de rigidez de Helenio Herrera e os egos dos craques da Grande Inter.

Na década de 1960, Giancarlo Dellcasa cuidou dos músculos de craques como Peiró, Jair da Costa e Suárez (Arquivo/Inter)

Um grande contador de histórias, Giancarlo relatou, em entrevista à Gazzetta dello Sport, em 1997, que Herrera estava sempre bravo. “Os jogadores o amavam ou o odiavam. Ele os fazia treinar em qualquer lugar, seja no espaço sagrado em frente às igrejas ou nas garagens, quando nevava. Foi ele quem inventou a gabbia (uma espécie de campo reduzido em ambiente fechado utilizado no inverno para treinos específicos)”, disse.

Na temporada 1964-65, o segundo Dellacasa, já campeão italiano, europeu e mundial e seguindo os passos para repetir a dose, foi envolvido em uma situação pitoresca. A Inter perdia por 1 a 0 para o Vicenza quando o jovem massagista foi instruído por Herrera a chamar a atenção de Tarcisio Burgnich e Aristide Guarneri. Na visão do Mago, os zagueiros deveriam inverter a marcação. Depois de ser ignorado pela primeira vez, Dellacasa levou um singelo “vaffanculo” (“vai tomar no cu”) do capitão Armando Picchi, que, ao final do jogo, com a vitória de virada, explicou que a marcação estava certa. Herrera ficou calado.

Giancarlo começou a trabalhar para a Beneamata em 1960, e só parou no início dos anos 1990 (Arquivo/Inter)

O próprio Picchi, inclusive, chegou a convidar o massagista para ser seu subordinado na Juventus, quando assumiu o cargo de treinador na Velha Senhora, em 1970. “O agradeci, mas não poderia aceitar. O que pensaria Tumela de um filho bianconero?”, brincou Giancarlo.

Em outra entrevista mais recente, concedida ao Panorama em 2017, o segundo Dellacasa admitiu que fazia sanduíches para os jogadores escondido de Herrera, por conta da rígida dieta exigida pelo franco-argentino. “O meu quarto cheirava como uma salumeria”, recorda. Já no final de sua passagem pelo clube milanês, o próprio treinador revelou que sabia da situação, mas que confiava no massagista e por isso nunca o repreendeu.

Já com Massimo Dellacasa, a Inter passou por momento tenso com o brasileiro Ronaldo (Arquivo/Inter)

Se engana quem pensa que Ivano Bordon, Giuseppe Bergomi, Gabriele Oriali, Gianpiero Marini e Alessandro Altobelli foram os únicos interistas no tricampeonato mundial da Itália, em 1982. Como o pai, Giancarlo também foi convocado pela Nazionale diversas vezes. Na Copa do Mundo da Espanha, sob o comando de Enzo Bearzot, foi o massagista quem tranquilizou o garoto Bergomi, responsável por marcar Karl-Heinz Rummenigge, craque alemão e que jogaria na Inter anos mais tarde.

Também como Tumela, Giancarlo passou a contar com a ajuda de um dos filhos. A partir da década de 1980, o mais velho, Massimo, entrou para a equipe de massagistas do clube com apenas 21 anos de idade. Se o pai teve que responder a Herrera, o filho teve um comandante tão sisudo quanto: o “general” Eugenio Bersellini. O mais longevo na Inter, Massimo trabalhou na Pinetina ao longo de quatro decênios. O momento mais difícil? Quando Ronaldo se lesionou gravemente, em 2000, e, por um momento, todos se sentiram culpados pelo ocorrido – uma preocupação que se revelou infundada.

Irmão mais novo de Marco Dellacasa, Massimo também trabalha para os nerazzurri (Arquivo/Inter)

Sua última época com o time principal nerazzurro foi a de 2018-19, com Luciano Spalletti. Hoje com 61 anos, não trabalha mais no futebol profissional. Em setembro de 2015, na época afastado por conta de problemas cardíacos, acabou homenageado por Fredy Guarín, autor do gol da vitória no Derby della Madonnina, vencido pela Inter por 1 a 0. Foram 38 temporadas no clube, sempre compartilhadas com parentes.

Afinal de contas, o seu irmão mais novo, Marco, hoje com 57, também trabalha na Pinetina. Atual coordenador da área de fisioterapia do time principal e há 28 anos na Inter, Marco substituiu justamente o seu pai, aposentado em 1993, depois de 33 temporadas de serviços prestados à Beneamata. Segundo o caçula da família, o nome Dellacasa não está próximo de um fim na Beneamata: “provavelmente terá uma quarta geração”.

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