Um aspecto muito caro ao futebol é a transformação de jogadores em heróis ou vilões em questão de segundos. Além disso, é bastante comum que um atleta carregue eternamente as consequências de um episódio ou do resultado de uma partida. O volante Mario David, que se repaginaria como lateral-direito, foi um desses que ficaram marcados pela fugacidade dos acontecimentos dentro de campo e, frequentemente, teve os seus atributos esportivos esquecidos pela crônica.
Nascido em 1934 na cidade de Grado, localizada num arquipélago no nordeste da Itália, muito perto da fronteira com a Eslovênia, David sobreviveu aos horrores da Segunda Guerra Mundial e deu seus primeiros passos no futebol a poucos quilômetros de casa, na Pro Cervignano, equipe de Cervignano del Friuli, de sua própria região. Entretanto, sua carreira como jogador profissional começou bem longe dali: o volante atravessou o país rumo ao oeste e se fixou no Livorno, pelo qual assinou em 1950.
David permaneceu no Livorno por três temporadas, dos 16 aos 19 anos, e disputou as séries B e C pelos amaranto. Sua estreia ocorreu em fevereiro de 1951, aos 17, numa derrota por 4 a 1 para o Messina, e as suas chances se ampliaram na terceirona, após a queda do time da Toscana. Em 1953, o volante foi contratado pelo Vicenza – que na época tinha a alcunha de Lanerossi Vicenza, por ter sido adquirido pela famosa empresa do ramo têxtil.
Num primeiro momento, o Vicenza decidiu incorporar o jovem de 19 anos ao time principal ao mesmo tempo em que ele atuava também pelos juvenis. Com bom poder de marcação e razoável qualidade no toque de bola, além da habilidade em lançamentos, o que era muito útil para armar contra-ataques, David conquistou, em 1954 e 1955, duas edições da Copa Viareggio – as únicas do prestigioso torneio juvenil da história dos biancorossi. Ademais, participou da campanha do título dos berici na Serie B, que resultou no seu retorno à elite após uma ausência de sete temporadas.
Na Serie A, Mario se tornou um pilar vicentino. O versátil jogador foi peça fundamental para a tranquila manutenção do Lanerossi Vicenza na elite nas três temporadas seguintes e, de quebra, foi o terceiro principal artilheiro biancorosso em 1957-58, com nove gols marcados. Por conta de seu ótimo nível de atuações, David também entrou para a história do clube vêneto ao se tornar o primeiro atleta a ser convocado para a seleção italiana enquanto o defendia. Sua estreia se deu numa derrota por 3 a 2 para a Áustria, em março de 1958.
Destaque do Vicenza, David encerrou sua passagem pelo time com 114 aparições. No verão europeu de 1958, foi contratado pela Roma e conseguiu encontrar seu espaço na equipe logo na primeira temporada, na qual foi utilizado em 26 partidas, somando todas as competições. Aquele foi um ano de altos e baixos para a Loba, que chegou a brigar pelo scudetto com o Milan, mas viu tudo ir por água abaixo após uma sequência de 10 rodadas sem vitórias – encerrada graças a um 8 a 0 sobre o Napoli.
Para Mario, foi uma época de lesões no joelho. A articulação já havia lhe obrigado a ficar de molho em parte da reta final da temporada quando, no empate por 1 a 1 com o Union Saint-Gilloise, na eliminação dos giallorossi nas quartas da Copa das Feiras, uma entorse lhe tirou do restante da campanha. David se recuperou plenamente apenas em novembro de 1959 e, com gols sobre Napoli e Milan, ajudou a Roma a ter um desempenho mediano, que lhe rendeu somente a nona colocação da Serie A.
Em 1960, o friulano trocou a Roma pelo Milan e a sua carreira também passaria por uma grande mudança: o volante, que até então era usado na função de mezzala, começou a ser testado como lateral-direito por Paolo Todeschini, então técnico dos rossoneri. Depois do vice-campeonato italiano naquela temporada, o treinador foi substituído pelo lendário Nereo Rocco, que consolidou David na posição. Na época, os laterais eram mais defensivos, praticamente zagueiros, mas o comandante conseguia explorar também a velocidade, a visão de jogo e a capacidade de armar contra-ataques de Mario.
Na temporada 1961-62, já consolidado na linha de defesa rossonera, David foi uma peça fundamental para que o Milan conquistasse seu oitavo scudetto, com três gols marcados. O desempenho, inclusive, lhe rendeu a convocação para a Copa do Mundo de 1962, onde viveu um dos episódios mais marcantes de toda a sua carreira: a Batalha de Santiago, um dos jogos mais violentos da história da competição.
A Itália estreou com empate com a Alemanha Ocidental naquela Copa e precisava pontuar no segundo compromisso para continuar com boas chances de avançar ao mata-mata. O problema é que o adversário era o Chile, dono da casa, que vinha engasgado com os azzurri por conta de reportagens publicadas na imprensa italiana. Esses textos, muitas vezes em tom preconceituoso, teciam várias críticas ao país sul-americano, que fora atingido por um fortíssimo terremoto anos antes. A expectativa era de jogo duro.
O time italiano que foi a campo contra os chilenos teve diversas mudanças em relação à estreia – inclusive a entrada de David, que viria a ser um dos principais personagens daquele jogo. Na época, as regras disciplinares do futebol ainda não previam a utilização de cartões amarelos e vermelhos como forma de advertência para os atletas, e isso levou a uma verdadeira troca de agressões entre os jogadores. O que existia, na época, era o poder do árbitro de excluir brigões da partida. O que ocorreria com Giorgio Ferrini logo aos 8, embora o azzurro tenha demorado sete minutos para deixar o gramado, apenas depois de a polícia escoltá-lo.
A temperatura, que já era alta, não abaixou durante o jogo – até porque o árbitro Ken Aston deixou a pancadaria correr solta e, agindo sem critério, não advertiu os sul-americanos, que também provocavam bastante. David, por sua vez, travou uma batalha pessoal com Leonel Sánchez: a luta começou com uma entrada dura do italiano, prontamente revidada com um soco pelo chileno. Como o apitador inglês não puniu o atacante do Chile, Mario decidiu fazer justiça com as próprias mãos ainda antes do final do primeiro tempo. Ou melhor, com os pés: numa disputa de bola pelo alto, o lateral acertou uma voadora no adversário e foi prontamente retirado de campo.
Com dois jogadores a menos, a Itália acabou sendo derrotada pelos donos da casa, o que complicou muito a sua situação – e, no fim das contas, a forte seleção azzurra viria mesmo a ser eliminada na fase de grupos. O impacto da Batalha de Santiago no futebol foi tão grande que ela serviu de motivação para que os cartões fossem introduzidos no esporte. Para além disso, a partida representou também a última aparição de David pela Nazionale.
Apesar de ter sido bastante criticado na Itália por conta dos episódios de Santiago, David manteve o seu posto no Milan e continuou a ser uma peça importante no time, que era campeão italiano. E, por conta disso, o Diavolo disputou a Copa dos Campeões – onde Mario viria a se redimir, ao menos com os fanáticos pela seleção que torciam para os rossoneri.
Presente em quase todas as partidas do Milan na competição, o lateral só não atuou no jogo de ida das quartas de final, contra o Galatasaray. Na decisão, em Wembley, o time italiano encarou o Benfica, bicampeão consecutivo do torneio, e saiu atrás, por conta do craque Eusébio. O brasileiro José Altafini garantiria a virada, e a jogada de seu segundo gol começaria nos pés de David, hábil ao afastar um escanteio na área rossonera. Assim, um clube do Belpaese chegou ao topo da Europa pela primeira vez na história.
Pouco antes, naquele mesmo ano, David foi protagonista de outro episódio polêmico, desta vez na Serie A – concluída pelo Milan na terceira posição, atrás da Juventus, vice, e da Inter, campeã. No primeiro jogo do returno, os rossoneri visitaram o Venezia e venciam por 1 a 0 quando, aos 61 minutos, Mario foi ao chão com as mãos à cabeça, após ser atingido por uma garrafa. Depois de alguns minutos caído, o lateral se recompôs e voltou a jogar. Só que o Venezia empatou e, na sequência, chamado pelo diretor técnico Gipo Viani, o friulano foi para os vestiários.
Contam os milanistas que David levou dois pontos na cabeça, por conta do objeto atirado pela torcida do Venezia. Em campo, os lagunari se beneficiaram também da expulsão de Gino Pivatelli e, com dois jogadores a mais, viraram o jogo. Em vão: o Milan entrou com recurso à justiça desportiva para ficar com a vitória, devido à agressão sofrida por Mario, e ganhou a causa no tapetão. A “partida da garrafinha”, como ficou conhecida, teve o Diavolo como vencedor. Até hoje há quem questione a veracidade do dano sofrido pelo lateral.
Nos dois anos seguintes, o Milan teve resultados mais modestos: foi terceiro e segundo colocado da Serie A, além de vice-campeão mundial, com derrota para o Santos liderado por Pelé, e não foi muito longe nas copas. Em 1965, após 133 aparições e temporadas gloriosas com a camisa rossonera, David foi negociado com a Sampdoria.
Pela equipe de Gênova, o lateral não deslanchou: não conseguiu ajudar a Samp a evitar o rebaixamento e, aos 32 anos, disputou a sua última temporada na Serie A. Na sequência, se transferiu para o Alessandria e atuou em apenas três partidas da segundona. Em 1967, aos 33, o versátil defensor encerrou sua carreira como futebolista profissional.
Logo após sua aposentadoria dos gramados, David se dedicou à carreira de treinador. Depois de um período de aprendizado na Gradese, comandou Ancona – que na época se chamava Anconitana –, Alessandria e Casertana sem grande sucesso. Aliás, o ex-atleta jamais foi além da terceirona em sua trajetória à beira dos gramados. Seus melhores resultados viriam no decorrer da década de 1970: os títulos da Coppa Italia de Semiprofissionais de 1973-74, pelo Monza, e o da Serie D, em 1977, pelo Trento.
David também se aventurou como dirigente. Em 1981, foi diretor esportivo do Bologna numa experiência muito breve, que durou apenas alguns meses: o ex-defensor se demitiu, juntamente ao técnico Luigi Radice, por atritos com o presidente do clube, Tommaso Fabbretti. O friulano também desempenhou a mesma função em Treviso e Taranto, além de ter sido olheiro do Milan.
Depois de deixar completamente o futebol, David voltou para Grado, sua cidade natal, e se dedicou à vida pública: chegou até a ser vice-prefeito da cidadezinha de Friul-Veneza Júlia. Mario faleceu em julho de 2005, aos 71 anos, após lutar contra doenças no fígado e nos rins. Uma das poucas batalhas que perdeu, juntamente com a fatídica contenda de Santiago.
Mario David
Nascimento: 3 de janeiro de 1934, em Grado, Itália
Morte: 26 de julho de 2005, em Monfalcone, Itália
Posição: volante e lateral-direito
Clubes como jogador: Livorno (1950-53), Vicenza (1953-58), Roma (1958-60), Milan (1960-65), Sampdoria (1965-66) e Alessandria (1966-67)
Títulos como jogador: Serie B (1955), Serie A (1962) e Copa dos Campeões (1963)
Clubes como treinador: Ancona (1969-71), Alessandria (1971-72), Casertana (1972-73), Monza (1973-75) e Trento (1976 e 1977-79)
Títulos como treinador: Coppa Italia de Semiprofissionais (1974) e Serie D (1977)
Seleção italiana: 3 jogos