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Michelangelo Rampulla marcou época como ídolo da Cremonese e eterno reserva da Juve

Tensão no ar. Os segundos correm nos acréscimos do segundo tempo e o seu time está perdendo. O goleiro, numa tentativa desesperada de conseguir um resultado crucial para que a equipe alcance seu objetivo no campeonato, vai para a área tentar marcar um gol. E consegue, fazendo o nervosismo da torcida e dos companheiros se transformar em êxtase, enquanto os adversários são instantaneamente tomados pela frustração. Esse roteiro é relativamente clichê, mas teve poucos intérpretes ao longo da história do futebol italiano. Michelangelo Rampulla, em 1991-92, foi o primeiro arqueiro a conseguir o feito de anotar um tento na competição sem que tenha precisado cobrar um pênalti para isso.

Rampulla nasceu em Patti, no paradisíaco litoral da Sicília. Seu pai era um comerciante do ramo alimentício e, como tantos sicilianos, um juventino fanático. Michelangelo cresceu sob forte influência paterna e, portanto, também se tornou torcedor da Velha Senhora. Sua carreira no futebol, porém, começou em uma agremiação bianconera bem mais modesta: a Pattese, time de sua cidade.

O jovem Michelangelo queria ser atacante, mas o pai havia lhe convencido a ser goleiro. Assim, o magrão de 1,87m foi aceito nas divisões de base da equipe de Patti, pelo qual estreou. Em 1979-80, foi titular numa histórica disputa de Serie D para os modestos sicilianos, que acabariam rebaixados. Porém, o bom desempenho chamou a atenção do Varese, que acabara de subir para a Serie B graças ao título da C1. Rampulla havia sido observado e convidado por um jovem diretor que futuramente ficaria conhecido: Giuseppe Marotta.

Sua estreia pelo Varese ocorreu na segunda rodada da Serie B 1980-81 – e numa fogueira. O titular Antonio Rigamonti havia se machucado e o reserva Enrico Nieri não vivia boa fase, o que levou Rampulla, um jovem terceiro goleiro de 18 anos recém-completos, a ser escalado contra o Milan, que disputava a segundona como punição por participação de jogadores no escândalo Totonero. Michelangelo fechou o gol no estádio Franco Ossola, segurou um empate em 0 a 0 e ganhou a titularidade do técnico Eugenio Fascetti.

Nos tempos de Cremonese, Rampulla conversa com Tacconi, a quem sucederia na Juventus (Ivano Frittoli)

Na temporada seguinte, os biancorossi foram ainda mais longe e, por um triz, não conseguiram o acesso para a elite. O Varese ficou com a quarta posição, dois pontos abaixo dos promovidos Sampdoria e Pisa, e teve a quarta melhor defesa do torneio, com 30 gols sofridos em 38 partidas. Rampulla atuou em todos eles e permaneceu na Lombardia para a Serie B seguinte, que acabou sendo menos brilhante para os varesinos. Para ele, no entanto, as atuações lhe renderam as primeiras convocações para a seleção sub-21 da Itália, então dirigida por Azeglio Vicini. Entre 1982 e 1984, representou os azzurrini em 10 ocasiões.

Depois de três anos e 96 partidas pelo Varese, Rampulla trocou de clube. Chegou a ser sondado pela Inter para substituir Ivano Bordon, mas acabou mesmo acertando com o Cesena, que tinha sido rebaixado da elite e disputaria a Serie B.

Os bianconeri tinham dois goleiros promissores oriundos da base – Sebastiano Rossi e Alberto Fontana –, mas o siciliano, mais velho, chegava para ser titular. Michelangelo manteve o posto e jogou 85 partidas em dois anos pelo clube romanholo, mas não teve o prazer de devolvê-lo à elite.

Após o biênio em Cesena, Rampulla iria para a agremiação em que fez história: a Cremonese do histórico presidente Domenico Luazzara. Depois de ter sido cotado para substituir o aposentado Luciano Castellini na meta do Napoli, o goleiro siciliano teve como destino outra equipe que acabara de ter sido rebaixada da Serie A. Seriam sete temporadas como titular dos grigiorossi.

Em oito temporadas na Cremonese, o goleiro vestiu uniformes excêntricos, mas também ganhou a idolatria da torcida (Score)

No primeiro ano de Rampulla em Cremona, a equipe treinada por Emiliano Mondonico não deslanchou e não conseguiu brigar pelo retorno à elite. Com Bruno Mazzia, substituto de Mondo, a Cremo voltou aos eixos e fez uma boa campanha na Serie B: liderou o campeonato por grande parte da temporada, mas acabou ficando um ponto atrás de Pescara e Pisa, promovidos.

Os tigri dividiram a terceira posição com Lecce e Cesena e, incrivelmente, não subiram porque foram derrotados duas vezes no triangular de desempate – o Cesena, antigo time de Rampulla, levou a melhor. Apesar da decepção na segundona, a Cremonese fez a sua melhor campanha na Coppa Italia: caiu apenas para a Atalanta nas semifinais, depois de eliminar Verona e Inter nos pênaltis nas fases anteriores.

Em 1987-88, a Cremo novamente bateu na trave pelo acesso, mas na temporada seguinte os grigiorossi finalmente conseguiram o retorno à elite – não sem drama, já que precisaram bater a Reggina no spareggio para obterem a vaga. Dessa forma, aos 27 anos, Rampulla estrearia na Serie A. O goleiro voltou a ser sondado pela Inter, que precisava de um reserva para Walter Zenga, mas novamente as negociações não avançaram. Por ironia do destino, Michelangelo fez sua primeira partida na elite justo contra os nerazzurri e acabou expulso no final, depois de o time de Milão já ter construído a vitória por 2 a 1.

Naqueles anos, a Cremonese foi um time-ioiô da Itália. Em 1989-90, a equipe treinada por Tarcisio Burnich não conseguiu se sustentar na elite e foi rebaixada com a penúltima posição. No ano seguinte, já sob a batuta do excêntrico Gustavo Giagnoni, a agremiação grigiorossa garantiu o retorno imediato. Em 1991-92, então, Rampulla entraria para a história.

O histórico gol de Rampulla contra a Atalanta (Anteprima 24)

Em fevereiro de 1992, em meio à luta contra o rebaixamento, a Cremo foi até Bérgamo para um tenso duelo lombardo contra a Atalanta. Perdia até os acréscimos do segundo tempo por causa de um gol do brasileiro Careca Bianchezi, até que, no último lance do jogo, Rampulla foi até a área adversária e, de cabeça, completou para as redes uma cobrança de falta efetuada por Alviero Chiorri. Em toda a história, os únicos goleiros que haviam anotado pela Serie A eram Lucidio Sentimenti e Antonio Rigamonti, em cobranças de pênalti.

Com sua obra de arte, Michelangelo foi o primeiro jogador da posição e balançar as redes em um lance de bola rolando. Até hoje, apenas mais dois arqueiros conseguiram o feito: Massimo Taibi, da Reggina (em 2001, contra a Udinese), e Alberto Brignoli, do Benevento (em 2017, contra o Milan). O tento de Rampulla deu o empate à Cremonese, mas seus esforços foram insuficientes para que o time permanecesse na elite. A nova queda fez com que o siciliano deixasse Cremona após 279 partidas. Até hoje, é o quarto jogador com mais jogos pela agremiação.

O destino de Rampulla deixou seu pai extremamente orgulhoso: era a Juventus, time do coração da família. Com a saída de Stefano Tacconi, Giovanni Trapattoni escolheu Angelo Peruzzi como titular, mas confiou a Michelangelo o posto de sombra imponente ao jovem. Embora reserva, Rampulla foi utilizado com certa frequência em sua passagem por Turim e, por causas de lesões de Peruzzi, acabou se tornando muito importante.

No primeiro ano pela Velha Senhora, o goleiro foi titular logo na primeira rodada da Serie A, diante do Cagliari. Seu momento de maior destaque, porém, ocorreu nas semifinais da Copa Uefa contra o Paris Saint-Germain. Em sua estreia em competições europeias, não sentiu pressão e teve boas atuações tanto na partida de ida quanto na de volta (quando se impôs diante de George Weah), ajudando a colocar a equipe na final – que acabaria vencendo.

Rampulla salta num treino em Turim (Juventus/LaPresse)

Em 1995, Michelangelo voltou a ser utilizado num momento decisivo. Nas finais da Coppa Italia, contra o Parma, Rampulla não sofreu gol e contribuiu para que a Juve levasse o título pelo placar agregado de 3 a 0. Na Supercopa Italiana, novamente contra os crociati, voltou a entrar em campo. Algo que foi recorrente também nos anos seguintes, e até mesmo em partidas de Liga dos Campeões, devido aos problemas físicos de Peruzzi. Em 1998, foi decisivo na competição continental ao defender um pênalti e evitar um vexame da Juve diante do Rosenborg.

A partir de 1999, com a saída de Peruzzi e a definição de Edwin van der Sar (entre 1999 e 2001) e do ídolo Gianluigi Buffon (de 2001 em diante) como titulares, Rampulla teve sua utilização bastante reduzida. Para se ter uma ideia, 90 dos 99 jogos feitos pelo siciliano em uma década de Juve ocorreram enquanto dividia os vestiários com o Cinghialone.

Michelangelo se aposentou em 2002, com quase 40 anos, e até hoje é considerado um dos maiores goleiros reservas da história do clube e é bastante querido pela torcida. Pudera: conquistou 12 títulos, entre os quais quatro scudetti, uma Champions League, uma Copa Uefa e um Mundial Interclubes.

Rampulla continuou na Juventus e ocupou diversas funções relacionadas à preparação dos goleiros do clube até 2010. Depois disso, teve uma rápida experiência como treinador do Derthona, na Serie D, e em 2012 embarcou para a China para fazer parte da comissão técnica de Marcello Lippi, no Guangzhou Evergrande – e, em sequência, na seleção chinesa, onde está até hoje.

Fabrizio Ravanelli, Didier Deschamps e Rampulla comemoram o título da UCL de 1995-96 (Wikipedia)

Entre junho e outubro de 2016, Rampulla também ocupou, em paralelo a seu emprego na Ásia, o cargo de presidente interino da Cremonese. Naquele momento, ajudou a agremiação a se reorganizar e dar início à recuperação de uma crise que durou quase 20 anos – período em que chegou a disputar a quarta divisão. Quando Michelangelo substituiu Luigi Simoni no cargo, a Cremo completava uma década na terceira divisão. Recuperado, o clube se restabeleceu na Serie B.

Até hoje Rampulla é reconhecido por ter sido um goleiro bastante habilidoso no jogo com os pés, que se destacava por isso numa época em que a esmagadora maioria dos goleiros somente usavam as mãos. Às vezes até se arriscava por isso, mas em geral se saía bem no papel de líbero ou de partícipe da construção de jogadas. O siciliano também foi um dos primeiros a mostrar que times de ponta precisavam ter dois grandes goleiros em seu plantel.

Apesar de ter tantas qualidades, porém, muitos mencionam Rampulla apenas pelo seu feito histórico: o gol contra a Atalanta. Por isso, o tento nem sempre é considerado como uma memória positiva para o goleiro. “Às vezes me arrependo de ter conseguido marcar aquele gol. Porque todos lembram do gol que marquei, mas se esquecem de todos os que consegui evitar”, declarou certa vez em entrevista à Rai. Nós nos recordamos, Michelangelo.

Michelangelo Rampulla
Nascimento: 10 de agosto de 1962, em Patti, Itália
Clubes: Pattese (1979-1980), Varese (1980-1983), Cesena (1983-1985), Cremonese (1985-1992) e Juventus (1992-2002)
Títulos: Copa Uefa (1993), Coppa Italia (1995), Serie A (1995, 1997, 1998 e 2002), Supercopa Italiana (1995 e 1997), Champions League (1996), Supercopa Uefa (1996), Mundial Interclubes (1996) e Copa Intertoto (1999)
Clubes como treinador: Derthona (2011)

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2 comentários

  • Que coincidência , ontem mesmo estava procurando defesas dele no You Tube , muito bom goleiro que passou pela Juve na época que eu adorava o Peruzzi , Vialli e Ravanelli, e essa camisa azul eu tinha uma , era muito linda, e Taibi tb merece um texto rs .

  • Toda vez que escuto o nome Cremonese, me lembro de Rampulla e desse gol em 91/92. Me lembro de falar em um jornal durante o almoço e de onde estava quando ouvi. Foi a primeira vez que vi um gol de goleiro com bola rolando. Antes disso, nem sabia que valia gol de goleiro…rss…

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