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Na Itália, Hansi Müller oscilou entre genialidade, problemas físicos e furor extracampo

A conquista do título mundial de 1982 pela Itália coincidiu com o momento em que a Serie A estava em evidência. O futebol italiano, que alcançou o esplendor em campos espanhóis, era a mais pomposa vitrine do esporte naquela época e atraía os jogadores das melhores seleções. Como, por exemplo, Hans-Peter Müller, ou simplesmente Hansi. O meia, que vestiu a camisa 10 da Alemanha Ocidental, foi um dos reforços da Inter naquela janela, juntamente com o brasileiro Juary. A dupla chegava para ajudar a Beneamata a fazer frente à Juventus, vencedora dos dois últimos scudetti.

Müller rumou ao futebol italiano quando já tinha 25 anos. Ou seja, construiu uma sólida carreira antes disso. Entre 1975 e 1982, o meia jogou pelo Stuttgart, clube de sua cidade natal. Criado na base dos suábios, Hansi surgiu como profissional no pior momento da história da agremiação: em 1975, os Roten haviam caído pela primeira vez para a segundona. Com a ajuda de um jovem Hansi, o Stuttgart se recuperou em 1976-77 e foi campeão da 2. Bundesliga com um ataque de 100 gols marcados e Ottmar Hitzfeld como artilheiro.

Hansi Müller atuou em alto nível por cinco anos na elite alemã ocidental, chamando atenção pela técnica no controle de jogo, com seu pé esquerdo apurado. O futebol refinado do meia ajudou o Stuttgart a se restabelecer como força no futebol do país: até 1982, a equipe da Suábia ficou quatro vezes entre os quatro melhores times da Bundesliga, chegando a conquistar o vice em 1978-79 e a atingir as semifinais da Copa Uefa na temporada seguinte.

No total, Hansi fez 216 partidas e 78 gols pelo time, chegando a ser seu artilheiro duas vezes, em 1978 e 1981. Feitos expressivos para um meia e que, logicamente, lhe renderam espaço na seleção. Müller foi titular da Alemanha Ocidental na Euro 1980, sediada pela Itália. O camisa 10 atuou nos quatro jogos da campanha da Nationalmannschaft, que foi campeã com vitória sobre a Bélgica. Dois anos depois, no Mundial da Espanha, ele e outros jogadores ficaram marcados mais pelos jogos de pôquer que disputavam na concentração do que pelo futebol apresentado.

Na época, a revista Placar destacou os bastidores da Alemanha Ocidental. “Ninguém escapou impune a semanas de ócio. O armador Hansi Müller, figura decorativa na última Copa por causa de um problema no joelho direito, perdeu cerca de Cr$ 3 milhões em noitadas de pôquer na concentração da seleção, nas quais tinha como parceiros habituais [Paul] Breitner, [Karl-Heinz] Rummenigge, [Eike] Immel, [Uwe] Reinders e [Klaus] Fischer. Destes, apenas Breitner era titular absoluto”. Apesar do erro quanto a Rummenigge, que era capitão e titular, a publicação fez um relato fiel sobre a situação de Hansi, que só jogou duas vezes na competição.

Depois de ser vice-campeão da Copa do Mundo, Hansi aterrissou em Milão. Naquele momento, a liga italiana ampliava a cota de atletas estrangeiros que cada clube da primeira divisão podia contratar. Com a possibilidade de assinar com até dois jogadores de fora da Itália, o número de forasteiros praticamente triplicou, saltando de 10 para 28 – divididos entres as 16 equipes da Serie A. Müller fez parte dessa leva junto a Michel Platini, Zbigniew Boniek e Dirceu, por exemplo.

O alemão, de início, causou boa impressão – sobretudo por, rapidamente, dominar o idioma local. Hansi vinha de uma família abastada e teve uma boa educação, além de ser naturalmente curioso. Tais características permitiram que Müller se adaptasse rapidamente e, em questão de semanas, já desse entrevistas em italiano fluente, com direito a incursões no dialeto milanês.

Corrente de ouro, cabelo “no grau” e perfume antes de entrar em campo: Müller não escondia sua vaidade (imago)

O meia teve uma rápida adaptação não apenas pelo domínio da língua. Seu estilo de vida, de perfil meio dândi e aparentemente esnobe, combinou com a boemia de Milão. O biotipo físico, mais similar ao dos habitantes da Lombardia do que ao estereótipo alemão, também ajudou.

Essa combinação agradou a torcida interista, que foi ao êxtase com os primeiros jogos de Müller. Nas seis primeiras aparições, anotou três tentos (todos de falta, incluindo um golaço contra o Verona) e só não assinou o quarto porque, na época, qualquer desvio de adversários em uma finalização era considerado como gol contra.

O hype, contudo, passou rápido. Embora Müller ainda aparecesse vez ou outra com assistências, boas jogadas e assistências, a falta de disciplina tática fez com que seu futebol ruísse nos nerazzurri. Outro empecilho para Hansi foi o amigo Evaristo Beccalossi. Os dois compartilhavam características similares: eram clássicos trequartistas canhotos, ocupavam a mesma faixa do campo e se dedicavam quase que exclusivamente a criar jogadas ofensivas, com poucas atribuições de marcação e sem afeição por duelos corporais.

Por muito tempo, circulou uma lenda urbana que dava conta de que Müller e Beccalossi eram ferrenhos rivais. Isso porque, após um jogo, Becca saiu-se com essa: “Jogar com Hansi é pior do que brincar com uma cadeira, pois pelo menos a cadeira rebate a bola de volta para você”. O camisa 10 interista estava frustrado pois o alemão desperdiçou uma penca de oportunidades claras de gol e atuava como um autêntico “delegado”, prendendo a pelota.

A declaração de Beccalossi não foi tirada de contexto. Hansi segurava mesmo a bola. Num jogo contra o Avellino, inclusive, o atacante Alessandro Altobelli ficou tão irritado por não ter recebido um passe, quando estava em ótimas condições de marcar, que reagiu dando um tapa na cara do germânico. Rusgas que pareciam insuperáveis para aqueles que as viam de fora.

Em entrevista recente, Evaristo explicou como era seu relacionamento, sobretudo dentro de campo, com Müller. “Sua presença me obrigou a jogar vinte metros à frente, numa região em que não me sentia confortável. Tenho de ser honesto. Eu me irritava com sua personalidade e, esportivamente, eu o odiava”, assumiu.

A verdade, porém, é que, apesar das incompreensões no terreno de jogo, os dois eram grandes amigos. “Hansi sempre foi um garoto excepcional e nos entendíamos bem. Ele era um grande jogador e se esforçava muito, ficava [no CT] até depois dos treinamentos para tratar aquele maldito joelho. Tinha uma paciência e resistência que eu nunca teria. Até hoje agradeço a [Gabriele] Oriali e [Salvatore] Bagni, que corriam por mim em campo. Infelizmente, aquela minha frase [sobre ele] ficou famosa, mas até hoje nós mantemos contato”, disse Beccalossi.

Müller e Rummenigge encaram o St. Pauli, pouco antes de Hansi deixar a Inter, em 1984: alemães não atuaram juntos em partidas oficiais (Witters)

O meia italiano também confidenciou que frequentava muito a casa de Müller para escutar música e jogar cartas, juntamente a Oriali e Altobelli. O atacante, parceiro de longa data do trequartista, também tinha boa relação com Müller. Podia-se dizer que viviam entre tapas e beijos.

Enquanto defendeu os nerazzurri, Hansi trabalhou de maneira exemplar, o que contrastava com o perfil de jogador da época – ainda mais em uma Milão boêmia. Müller também pode ser considerado como uma espécie de “David Beckham dos anos 1980”. O alemão ocidental foi um jogador assumidamente vaidoso, desde a forma de se vestir ao trato do corpo. Ele usava correntes de ouro, se perfumava com colônia antes de entrar em campo e ainda tinha uma coleção de cremes, loções e bálsamos no seu armário do vestiário. Não foram poucas as vezes em que desfilou na cidade da moda, sempre como modelo de Giorgio Armani.

Müller atuou na Inter ao longo de duas temporadas. Na primeira, sob o comando de Rino Marchesi e na segunda, orientado por Luigi Radice. Gigi tentou extrair mais do alemão, mudando o seu posicionamento para o setor direito do meio-campo, mas os resultados também não foram os esperados. As seguidas lesões atrapalharam sua trajetória. Não porque o tiraram de campo, mas porque comprometeram sua regularidade: Hansi fez 68 partidas em duas temporadas, divididas igualmente entre 1982-83 e em 1983-84. Marcou sete gols no ano de debute e foi às redes seis vezes no seguinte.

Em números, sua passagem pela Inter não foi negativa. Porém, Müller foi taxado de “o alemão triste” da Inter, sobretudo em comparação aos outros germânicos que passaram pela equipe meneghina, como Lothar Matthäus, Andreas Brehme, Jürgen Klinsmann e Rummenigge, o primeiro deles. Kalle, inclusive, chegou justamente na janela em que seu compatriota trocava de clube.

A imprensa dizia que o alemão tinha “pé de ouro e joelho de cristal”. O rigor na análise do futebol de Hansi tinha uma razão bem específica – que falava francês. Afinal, Müller sequer iria à Inter se a negociação com Platini tivesse vingado. O craque estava praticamente certo com a Beneamata, mas a Juventus atravessou o negócio e levou o francês para Turim. O resto… bem, o resto é história.

Depois de dois anos de altos e baixos na Inter, enquanto Platini abrilhantava a Juve, Hansi deixou a Inter, mas permaneceu na Itália. Inclusive, nem precisou mudar de casa. Ao acertar com o Como, que subira da Serie B, o meia preservou sua residência nas redondezas de Appiano Gentile, onde está localizado o centro de treinamentos da Inter. Afinal, a cidadezinha fica na província comasca: está a 14 quilômetros da sede administrativa e a 36 de Milão.

Nos lariani, Müller estaria mais longe dos holofotes e não lidaria com a pressão que aflige àqueles que atuam num time grande. Na Inter, ela existia, sobretudo porque – no biênio em que o meia atuou pelos nerazzurri – a equipe ficara apenas entre as quatro primeiras colocadas da Serie A e não obtivera sucesso em outras competições. Em 1983, foi semifinalista da Coppa Italia e caiu nas quartas da Recopa.

O alemão também atuou pelo Como por uma temporada (Acervo/Hansi Müller)

Em Como, Hansi chamou atenção por sua personalidade e, inclusive, por sua sua cultura musical. O alemão chegou a comandar um programa de rádio local e até conseguia reproduzir a pronúncia dos nativos. Era sua segunda incursão radiofônica: em 1982, o jogador chegara a gravar um compacto com duas canções – cantadas em italiano – numa parceria com o músico romanholo Raoul Casadei.

A verdade é que, durante sua passagem pelo Como, Müller teve mais atividades extracampo do que com uma bola nos pés. Novamente, as lesões fizeram com que ele pouco jogasse: foram apenas 17 partidas e dois gols pelos azzurri. Uma pequena contribuição para sacramentar a permanência do time na Serie A.

Beirando os 30 anos, Hansi deu passos que indicavam que o final de sua carreira estava próximo. O alemão foi jogar no futebol austríaco: acertou com o Wacker Innsbruck, que fora o quarto colocado na Bundesliga do país alpino. Em 1986, o clube foi absorvido pela Swarosvki, líder na fabricação e no comércio de cristais, numa daquelas ironias que a vida proporciona.

Seu joelho frágil, porém, lhe deu uma trégua e lhe permitiu liderar o Swarowski Tirol por quatro anos. Nesse período, Müller fez 144 partidas e 38 gols, uma Copa da Áustria e dois títulos nacionais, além de dois vices na Supercopa e na copa.

Depois de pendurar as chuteiras, Hansi retornou a Stuttgart. Em 2005, o ex-jogador teve de lidar com falecimento de sua esposa, Claudia, mas encontrou força no clube que o formou. Müller trabalha como relações públicas do Stuttgart e atua ainda como consultor motivacional, através de cursos multilíngues. O ex-jogador também chegou a ter uma breve aventura na política como membro de um conselho comunal.

Pode-se dizer que, no futebol, Müller teve a oportunidade de ser maior do que foi. Conquistou grandes títulos e esteve em evidência, mas tinha qualidade para ter sido protagonista nos principais palcos do esporte por mais tempo. Seu joelho lhe trouxe algumas decepções e não permitiu que atuasse em alto nível toda a carreira, mas é inegável que a bola lhe abriu diversas portas e concedeu oportunidades de aprendizado. Essas, Hansi não desperdiçou: sem vaidade, experimentou o que quis e se tornou um cidadão do mundo.

Hans-Peter “Hansi” Müller
Nascimento: 27 de julho de 1957, em Stuttgart, Alemanha
Posição: meio-campista
Clubes: Stuttgart (1975-82), Inter (1982-84), Como (1984-85), Wacker Innsbruck (1985-86), Swarovski Tirol (1986-90)
Títulos: 2. Bundesliga (1977), Eurocopa (1980), Copa da Áustria (1988) e Bundesliga Austríaca (1989 e 1990)
Seleção alemã ocidental: 42 jogos e 5 gols

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