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Revolução, títulos e Julinho Botelho: Enrico Befani montou a melhor Fiorentina da história

No início da década de 1940, a Fiorentina conquistou o primeiro título de expressão em sua história. Contra o Genoa, no estádio Giovanni Berta (que depois foi renomeado para Artemio Franchi), a Viola venceu por 1 a 0 e ergueu o troféu da Coppa Italia. Aquele dia 15 de junho de 1940 simbolizou o primeiro aceno mais enfático da equipe de Florença para o futebol italiano, dominado, até então, por agremiações do norte do país. O triunfo não só valeu a taça como também representou a afirmação diante do clube mais antigo do país e nove vezes campeão nacional.

No entanto, os anos que sucederam esta conquista frearam o desenvolvimento da Fiorentina. Veio a Segunda Guerra Mundial, e a equipe perdeu sua continuidade. Na retomada do futebol, já na segunda metade da década de 1940, a Viola não conseguia dar um passo além. Estabilizada na primeira divisão, faltava, talvez, um olhar mais audacioso.

Eis que, então, surge Enrico Befani, um afortunado empresário que fez sua riqueza na indústria têxtil de Prato, cidade vizinha de Florença. Com ele na presidência, ao longo dos anos 1950, o clube se modernizou, se internacionalizou, rejuvenesceu e alcançou glórias inéditas. A mudança foi tão profunda que os esquadrões formados entre 1955 e 1960 são classificados, até hoje, como os melhores já vistos pelos lados da cidade símbolo do Renascimento.

Em menos de dez anos, a Fiorentina venceu seu primeiro scudetto, se tornou a primeira equipe italiana a jogar a final da Copa dos Campeões e também fez o país debutar como vencedor de um torneio reconhecido pela Uefa. Um clube que aliou pioneirismo e profissionalismo na figura de uma mesma pessoa. Por conta disso, a lembrança de Enrico Befani se mantém viva entre os torcedores da Viola. Como presidente, teve o mesmo sucesso da carreira empresarial, mas acabou saturado pela própria realidade que criou. Em 1961, uma década após assumir o clube, deixou o comando. Seu nome, no entanto, não deixou Florença, assim como a certeza por parte dos fãs de que sua gestão na Fiorentina foi a mais iluminada que a cidade já viu.

Befani, com cigarro aceso, sorri ao lado dos irmãos Umberto e Gianni Agnelli, da Juventus, e de Franchi, diretor violeta (Torrini Fotogiornalismo)

Chegada à presidência

Enrico Befani nasceu em 15 de novembro de 1910, em Prato, segunda maior cidade da Toscana. Aos 41 anos de idade, ele se tornou presidente da Fiorentina. A eleição ocorreu na véspera do Natal de 1951. Já na madrugada do dia 24, por volta de 2h30 da manhã, foi encerrada a contagem dos votos na sede do clube, na Via Dei Saponai, a rua dos saboeiros, no centro histórico de Florença, quase às margens do Rio Arno. Befani foi eleito o novo presidente do clube com 361 dos 378 votos. Cinco dias depois, na primeira reunião do novo conselho administrativo, o empresário foi nomeado por unanimidade.

Com isso, Befani assumiu a Fiorentina no lugar de Carlo Antonini, que ficou pouco mais de três anos no comando da instituição. Com a temporada já em andamento, o treinador Renzo Magli, contratado no fim da gestão anterior, foi mantido. E, mesmo com um início ruim, a Viola conseguiu fazer uma boa campanha – quarta colocação na Serie A, somente atrás de Juventus, Milan e Inter, as potências do norte. Esse foi o melhor resultado em âmbito nacional desde a temporada 1940-41, quando a equipe terminou em terceiro.

Um bom presságio? Fato é que, logo após assumir o comando do clube, Befani colocou a mão na massa. Em primeiro lugar, promoveu mudanças importantes, e inovadoras, em termos organizacionais: todo o quadro de diretores foi profissionalizado e, Artemio Franchi, lendário dirigente já vinculado com a história da Fiorentina, se tornou consultor do clube a pedido de Befani. Com a estrutura da empresa, enfim, organizada, e Franchi atuando pontualmente em contratações e decisões financeiras, o novo presidente partiu para a revolução técnica do time.

É verdade que ela demorou um pouco para gerar os frutos esperados. Durante a temporada 1952-53, a primeira completa de Befani na gerência da Viola, o empresário trocou o treinador – algo determinante para os resultados futuros da equipe. As coisas iam mal para Magli no início do campeonato, tal qual aconteceu com Luigi Ferrero, seu antecessor no cargo. Por conta disso, Befani contratou Fulvio Bernardini, que promoveu uma verdadeira revolução tática. Investindo no toque de bola, armou uma equipe veloz no ataque, mas que não deixava sua retaguarda desprotegida.

Os resultados aparecem, inicialmente, no âmbito defensivo. De um time que levou 8 a 0 da Juventus na temporada 1952-53, a Viola se transformou na melhor defesa da Serie A no ano seguinte. Com Bernardini já adaptado ao clube e cidade, a Fiorentina foi terceira colocada em 1953-54. Faltou pouco para o título, visto que o time encerrou o primeiro turno na liderança. Apesar da queda na reta final, era nítida a evolução da equipe no cenário italiano.

A contratação do técnico Bernardini foi um dos movimentos mais importantes feitos por Befani (Brivido Sportivo)

Anos dourados

Claro que a melhora promovida por Bernardini se escorou em contratações realizadas por Befani. Entre elas, Armando Segato, Maurilio Prini, Gunnar Gren e Guido Gratton. A maioria das “novas caras” eram, de fato, jovens jogadores. O presidente queria rejuvenescer a Fiorentina. E, após dois anos, a melhora defensiva da equipe era notável. Faltava, porém, um pouco mais de poderio ofensivo para ser possível competir com as potências da Itália.

Isso mudaria a partir da temporada 1954-55. Primeiro, chegou em Florença o atacante Giuseppe Virgili. Aos 19 anos, oriundo da Udinese, ele foi o artilheiro da Viola com 15 gols marcados. Giuliano Sarti e Alberto Orzan foram outras aquisições importantes para essa temporada, que precederia o primeiro título nacional do clube. O salto final foi dado na metade de 1955, quando Befani e sua diretoria decidiram olhar para o mercado sul-americano com mais atenção. Foram contratados para o ataque Miguel Montuori, argentino, e Julinho Botelho, brasileiro.

Na verdade, Julinho foi a contratação mais cara da Fiorentina naquele ano. O paulistano tinha acabado de conquistar seu segundo Torneio Rio-São Paulo pela Portuguesa, quando foi vendido por um valor equivalente a 5,5 mil dólares – uma fortuna para a época. Tanto ele, quanto Montuori se encaixaram como uma luva no esquema ofensivo do técnico Bernardini. Virgilli foi, novamente, o artilheiro da equipe, mas as contribuições dos sul-americanos acabaram determinantes para a Fiorentina dar um passo além. Com seis rodadas de antecedência, Befani pode celebrar o primeiro scudetto da história do clube. O duelo que deu a taça à Viola ocorreu em 6 de maio de 1956, diante da Triestina, Julinho marcou o que podemos chamar de “gol do título” no empate por 1 a 1, que garantiu matematicamente a conquista.

A campanha poderia ter sido perfeita, não fosse uma derrota na última rodada, frente ao Genoa, que impediu a Fiorentina de ser campeã de maneira invicta. Nada que diminuísse o entusiasmo da torcida no Comunale de Florença: enfim, a Serie A havia sido vencida por um time toscano. Todo o trabalho de Befani ao longo dos anos anteriores, estruturando a parte administrativa e apostando em jovens talentos (de dentro e fora da Itália) fora recompensado.

E o “conto de fadas” em Florença não acabou logo após a primeira conquista. Nos anos seguintes, com a mesma base, além do comando de Bernardini, a Fiorentina atingiu resultados expressivos. No entanto, bateu na trave em sete oportunidades: quatro no Campeonato Italiano, duas na Coppa Italia e uma na recém-criada Copa dos Campeões. No torneio continental, a derrota para o Real Madrid, de Francisco Franco, no Estádio Santiago Bernabéu é, até hoje, motivo de desgosto.

Aos olhares do ditador espanhol, o juiz holandês Leopold Sylvain Horn marcou uma penalidade “problemática” a favor dos mandantes. Em primeiro lugar, havia impedimento na jogada – apontado pelo auxiliar e completamente ignorado pelo árbitro principal. Além disso, a suposta infração ocorreu, na verdade, fora da área. Diante de tal patacoada, Alfredo Di Stéfano não perdoou, converteu a cobrança de pênalti e abriu o caminho da vitória para o Real. No fim, o placar foi de 2 a 0, e o bicampeonato ficou com os madrilenhos.

Em âmbito nacional, a Fiorentina foi quatro vezes vice-campeã italiana, perdendo os títulos para Milan e Juventus. Em finais da Coppa Italia, que voltou a ser organizada somente na temporada 1957-58, a Viola foi derrotada por Lazio e, de novo, Juve. Tudo isso, sob os olhares de Befani, que continuou adotando uma política agressiva de contratações, ao mesmo tempo em que confiava o comando ao técnico Bernardini. Nesse meio tempo, a equipe ainda faturou um título da Copa Grasshopper, uma competição bastante sui generis, disputada ao longo de cinco anos (entre 1952 e 1957) e por apenas seis equipes. Tal fórmula jamais foi vista novamente, mas a Viola pode se vangloriar por ter vencido esse torneio um tanto quanto exótico.

O brasileiro Julinho fez o scudetto ser costurado no peito da camisa violeta (Torrini Fotogiornalismo)

Despedida com título

Ao longo da gestão de Befani, a Fiorentina atingiu o topo em um momento em que não era favorita, ao vencer o scudetto de 1955-56. No entanto, nos anos seguintes, lidando com a pressão por já ter alcançado o topo, a equipe acabou ficando muitas vezes no “quase”. O que não diminui os resultados obtidos, tampouco o esquadrão formado em Florença nesta época. Era, de fato, um time muito bom, com um treinador inovador e uma gestão visionária. Não há o que se criticar, também, nas contratações, por vezes ousadas, mas quase sempre certeiras.

Contudo, após tantos anos convivendo com alegrias, frustrações e, principalmente, responsabilidades, Befani já estava desgastado. Em 1958, Julinho Botelho, com saudades do Brasil, deixou a equipe violeta para jogar no Palmeiras. No mesmo ano, o treinador Bernardini também foi embora, após cinco temporadas e meia. As despedidas não necessariamente comprometeram os resultados da Fiorentina, que soube se reconstruir rapidamente. Chegaram ao time o lendário atacante sueco Kurt Hamrin, além de Enrico Albertosi e Gianfranco Petris. Na temporada 1960-61, o mau desempenho no Italiano foi recompensado por ótimas campanhas nas Copas.

Em 1961, a equipe foi campeã duas vezes em um intervalo de 15 dias. Primeiro, em 27 de maio, Luigi Milan anotou uma doppietta e confirmou o título da Recopa para a Fiorentina diante do Glasgow Rangers. A edição de 1960-61 foi a primeira deste torneio, criado pela Uefa para englobar as equipes campeãs das copas nacionais. Apesar de não ter vencido a Coppa Italia no ano anterior, a Fiorentina foi chamada por ser vice-campeã do torneio – a Juventus, detentora do título e, teoricamente, da vaga, já estava envolvida na Copa dos Campeões. Com uma boa campanha, e a artilharia do sueco Hamrin, a Viola levantou o caneco e se tornou a primeira equipe italiana a vencer uma competição organizada pela entidade máxima do futebol europeu.

Este foi o último título de Befani à frente do clube. Apesar de haver muitas imprecisões nos registros, o troféu da Coppa Italia, conquistado dias depois, em 11 de junho, não deve ser creditado à gestão do empresário. O xará Enrico Longinotti, que assumiu o clube após Befani, ficou com as glórias pelo troféu obtido ante a Lazio, em revanche da decisão da temporada 1957-58.

Após uma década, Befani entregou a Fiorentina nas mãos de seu sucessor com uma lista de feitos históricos. Além dos títulos, um time-base bem competitivo, e que, posteriormente, venceria mais troféus durante os anos 1960. Mais importante do que isso, a organização e a visão de mercado introduzidas pelo dirigente mudaram os rumos do clube.

Carismático, conquistou a torcida e manteve boa relação com outros cartolas. Uma foto sua aos risos nas tribunas do estádio Comunale de Florença ao lado dos irmãos Umberto e Gianni Agnelli, acionistas da Fiat e donos da Juventus, não deixa de ser curiosa. Ali, precisamente em 1960, ainda não existia a fervorosa rivalidade entre Fiorentina e Vecchia Signora, inflamada décadas depois por causa de episódios como a transferência de Roberto Baggio a Turim.

A saída de Befani da presidência da Viola não foi motivada por uma única razão. Muitos dão conta de sua frustração em não conseguir aprovar algumas medidas no estatuto da Fiorentina frente aos acionistas do clube. Uma delas, inclusive, se referia à conversão da instituição em sociedade anônima. Após ser impedido de levar a ideia adiante, o presidente teria proferido a seguinte frase: “O que vocês negaram hoje, um dia serão forçados a aceitar sem discussão e sem poder se opor”. Ao final da temporada 1960-61, ele concluiu o processo e transferiu a propriedade violeta para Enrico Longinotti. Para encerrar, sua “profecia” sobre a mudança do clube para uma S/A acabaria se tornando realidade apenas alguns anos depois, em 1967.

Morte e condecoração

Enrico Befani, o responsável pelo primeiro scudetto da Fiorentina, não teve tempo de assistir ao segundo título nacional do time, em 1969. O empresário morreu no dia 29 de outubro de 1968, com apenas 57 anos de idade. Seu falecimento causou extrema comoção em Florença na época, mas as lembranças do presidente não deixaram de existir na cidade. Em 2018, o aniversário de 50 anos de sua morte lhe rendeu diversas homenagens.

Cinco anos antes, em 2013, ele foi incluído no Hall da Fama da Viola, uma iniciativa criada pelo clube em parceria com o Museu da Fiorentina, em 2012. A agremiação violeta foi a primeira na Itália a desenvolver um projeto como esse, com o intuito de homenagear jogadores, treinadores, executivos e até torcedores ilustres em sua história. Por sua década de esforços dedicados ao time, com direito a esquadrão lendário e títulos inéditos, Befani foi incluído na seleta lista logo no segundo ano de existência da premiação.

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