Durante alguns anos, um mote ficou famoso entre a comunidade de torcedores da Inter nas redes sociais: #SuningOut. Bem, por uma das habituais peças pregadas pelo destino, a empresa chinesa que comandava a Beneamata desde junho de 2016 deixou de ter o controle sobre a agremiação só depois que a hashtag perdeu parte significativa de sua popularidade e que o presidente Steven Zhang passou até mesmo a ser querido pelos nerazzurri.
Pelas conquistas esportivas e pela melhora da situação financeira do clube, os diretores do grupo asiático até podem afirmar que fizeram um bom trabalho. Afinal, a Inter, que vinha acumulando prejuízos, passou a dar lucro ao mesmo tempo em que levantava troféus – e Zhang, com sete, se tornou o segundo presidente mais vitorioso da história nerazzurra, ao lado de Angelo Moratti e atrás de Massimo Moratti, seu filho. Entretanto, os chineses não podem se orgulhar do motivo de sua abrupta saída de cena: a penhora de suas ações, dadas como garantia da dívida com o fundo norte-americano Oaktree, que assumiu o controle societário da agremiação devido à falta de liquidez que resultou em calote.
Os investidores californianos ficaram com 99,6% das ações da Inter, somando a cota de 68,55% da Suning e a parcela de 31,05% do fundo de capitais LionRock, de Hong Kong, num arranjo que já estava desenhado quando a família Zhang tomou o empréstimo junto aos ianques, em 2021, e teve o gatilho acionado no momento da liquidação do débito. Assim, pouco após a euforia pela conquista do vigésimo scudetto e da segunda estrela, o ciclo do grupo chinês terminou de forma nebulosa. Curiosamente, o anúncio foi feito num 22 de maio, dia tão feliz para os interistas por conta da obtenção da tríplice coroa, em 2010.
Os primeiros anos de Suning
No dia 28 de junho de 2016, a torcida da Inter ficou esperançosa pelo anúncio da mudança no quadro societário da agremiação. Uma alteração que, pelo que prometia, podia acabar com os anos de escassos investimentos e péssimos resultados dentro de campo, que compunham o período mais melancólico da história nerazzurra. Naquele dia, ascendia ao posto de seu acionista majoritário o grupo chinês Suning, que atua em vários setores da economia – varejo, finanças, construção civil, incorporação, logística, entretenimento e mais.
O conglomerado, que já investia no futebol através do Jiangsu Suning, de seu país, adquiriu 68,55% das ações da Inter. Em resumo, comprou a parte de Erick Thohir, presidente nerazzurro desde novembro de 2013, ao passo que o indonésio ficou com 31%, assumindo a parcela de acionistas minoritários e, sobretudo, a de Massimo Moratti, que deixava o clube em definitivo, após 21 anos.
A entrada da Suning na Inter representava a maior participação de uma empresa chinesa na história do futebol europeu e o britânico Michael Bolingbroke, que era o principal executivo da agremiação naquele momento, chegou a falar de cinco a 10 anos de investimentos do grupo. A propósito, no início da gestão dos chineses, se imaginou que Zhang Jindong, presidente do grupo, teria participação ativa nas decisões – afinal, foi ele que fechou o negócio e trocou apertos de mão com Thohir e Moratti. Mas não foi o que ocorreu. O magnata apareceria pouquíssimo em Milão durante o seu reinado. Na verdade, escolheria Zhang Kangyang, seu filho, para representá-lo no conselho administrativo nerazzurro.
Zhang Kangyang? Bem, todos o conhecem como Steven fora da China. Nascido em 1991, em Nanquim, o jovem se formou em economia pela Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, e trabalhou em vários grandes bancos antes de assumir o posto de presidente da divisão internacional da Suning. De imediato, porém, o garotão não sentou no torno: ganhou apenas um assento no conselho administrativo, enquanto Thohir seguia efetivamente na presidência, ainda que sem poder decisório.
Como é possível perceber, a Inter era um monstrengo societário àquela altura. Thohir era o presidente de um clube cujo principal acionista era a família Zhang e que ainda tinha alguns integrantes do clã Moratti em cargos administrativos – como Milly, esposa de Massimo, numa diretoria. De fato, era um verdadeiro caos e isso, evidentemente levou à criação do mote #SuningOut por torcedores que já estavam cansados do fracasso nerazzurro, sobretudo em oposição à hegemonia da arquirrival Juventus, então pentacampeã consecutiva da Serie A.
Roberto Mancini, treinador da equipe, foi demitido a duas semanas do início da temporada por conta de divergências com a diretoria, sobre as quais falaremos logo mais. Pior, foi substituído pelo holandês Frank De Boer, que não falava uma palavra sequer de italiano e não conhecia o futebol do país – a não ser como adversário, dos tempos de Ajax, Barcelona e Oranje. O ex-zagueiro vinha de bom trabalho pelo próprio Ajax e até ganhou da Juventus num Derby d’Italia, mas colecionou péssimos resultados. A convicção da chefia recém-implantada durou somente 11 rodadas.
Coube a Stefano Pioli, declarado torcedor interista, resolver a situação. E ele poderia tentar aproveitar melhor alguns dos caríssimos reforços adquiridos pela Suning, à revelia de Mancini: o brasileiro Gabriel Barbosa, que custou cerca de 30 milhões de euros, e o meia português João Mário, que, contratado por 45 mi, representava a segunda aquisição mais cara da história da Inter. Evidentemente, não deu certo. O treinador colecionou resultados como uma derrota para o modestíssimo Hapoel Be’er Sheva, de Israel, que significou na eliminação na fase de grupos da Liga Europa, e sequer completou a temporada. O interino Stefano Vecchi conduziu a equipe ao sétimo posto e a um ano sem participação em competições continentais.
A pressão sobre a diretoria era tão grande que turvou a visão da torcida. E poucos viram que, em 2017-18, a Inter começou a ganhar um rumo. Nos bastidores, a Suning indicou Alessandro Antonello, então diretor financeiro do clube, para o cargo de CEO. Na área esportiva, como superior do cartola Piero Ausilio, assumia o experiente e inventivo Walter Sabatini, capaz de fazer negócios da China e descobrir jogadores fora do radar. E, para conduzir a equipe, chegava Luciano Spalletti – que parte considerável dos torcedores enxergava, àquele momento, como “perdedor”.
Enquanto Sabatini fez aquisições importantes, como as de Milan Skriniar e Matías Vecino, assim como a de Alessandro Bastoni – que chegaria a Milão dois anos depois –, Spalletti arrumava a cozinha. E levaria, ao fim da temporada, a Inter de volta à Champions League. Era a senha para aumentar as receitas de um clube endividado, apesar do aporte financeiro da Suning, e um imperativo: os nerazzurri deveriam se classificar ao torneio sempre. Era disso que Antonello precisaria para equilibrar as contas e fazer com que a agremiação seguisse um acordo feito com a Uefa em 2015, no escopo das normas do Fair Play Financeiro da entidade. A palavra-chave era “sustentabilidade”.
Parecia que, finalmente, o monstrengo societário se dissolvia e, com sua matéria, uma sólida área de gestão começava a se moldar. De fato, foi o que ocorreu. Ao fim de 2017-18, após fechar as contratações de Stefan de Vrij e Lautaro Martínez, Sabatini decidiu se retirar da operação esportiva de todo o projeto Suning e, entre outubro de 2018 e janeiro de 2019, foi a vez de Thohir sair de cena: deixou o seu cargo e, em seguida, vendeu suas ações para o fundo de investimentos LionRock. Até mesmo Milly Moratti abdicaria de seu lugar na direção. Em contrapartida, Steven Zhang, prestes a completar 27 anos, se tornava o mais jovem presidente nerazzurro. E seu primeiro ato seria marcar um golaço: a admissão do diretor esportivo Giuseppe Marotta, recém-saído de uma Juventus heptacampeã nacional.
Com a chegada de Beppe, a Inter mostrava que tinha a ambição de ser mais competitiva. E Zhang deixou evidente que não iria interferir em suas decisões, delegando responsabilidades ao cartola. Afinal, ninguém sério contrata um dirigente de tal estatura, com um dos currículos mais recheados da história do futebol italiano, e certamente o melhor em circulação na Serie A, para meter o bedelho em seu trabalho. A Suning já concedia bastante autonomia a seus gestores, mas intensificaria este modus operandi dali em diante. Apenas daria diretrizes mínimas aos executivos: dentro delas, Antonello, nas finanças, e Marotta (juntamente a seu escudeiro Ausilio), no futebol, tocariam o projeto com carta branca.
O salto proporcionado pelos delegados de Zhang
Em 2019, Spalletti voltou a classificar a Inter para a Champions League. Mas a ideia era dar um salto de qualidade. E não havia ninguém disponível no mercado de treinadores que fosse melhor do que Antonio Conte, amigo de Marotta e tricampeão italiano durante seus anos de parceria na Juventus. Sem hesitação, Zhang não se opôs a levar outro antigo arquirrival nerazzurro para o ninho da serpente. A lenda Javier Zanetti, vice-presidente da Beneamata desde 2014, cuidaria de aparar eventuais arestas e permitir que o ambiente fosse o mais tranquilo possível para o técnico atuar como catalisador dos planos da Suning.
No verão europeu de 2019, a Inter estava liberada de seu acordo com a Uefa, após cumprir os trâmites necessários, e também passava por um progressivo incremento de receitas, que geravam prejuízos menores em seus balanços anuais. Logo, pode gastar mais naquele mercado – tanto é que manteve dois técnicos em sua folha de pagamentos, já que Spalletti, ainda sob contrato, tirou um biênio sabático. A Beneamata também deu a Conte, seu sucessor, os reforços de peso que pediu, como Romelu Lukaku e Nicolò Barella, as duas maiores aquisições de sua história, e nomes como Alexis Sánchez e Diego Godín. Claro, a situação ainda era delicada e, por isso, Marotta e Ausilio deram vazão a fórmulas heterodoxas de pagamento, como empréstimos com obrigação de compra futura e parcelamentos, além da observação de atletas a custo zero. Ficariam reconhecidos por acertarem no alvo em ambos os quesitos.
Ao longo de 2019-20, a Inter se reforçaria com Christian Eriksen e Ashley Young, e competiria pelo título da Serie A com a Juventus. Até que a bola pararia de rolar devido à pandemia de covid-19 e Zhang, preso em solo chinês, só pudesse ver de longe o objetivo escapar, meses após a retomada do esporte. A Velha Senhora acabaria ganhando o scudetto e Conte, vice-campeão, se dedicaria à Liga Europa para tentar salvar o ano. Terminaria com outro segundo lugar, após a derrota na prorrogação da final, para o Sevilla.
A base para o ciclo vitorioso, porém, estava montada. E Conte, que permaneceu em 2020-21, ganhou reforços: Achraf Hakimi, um dos melhores laterais-direitos em circulação, e nomes cascudos, como Arturo Vidal, Matteo Darmian e o repatriado Ivan Perisic. Com a enorme sintonia entre Lukaku e Lautaro, a casa das máquinas sob comando de Marcelo Brozovic e outros fatores, a Inter voltaria a ser campeã italiana após 11 anos.
Assim como fizera anos antes, na Juventus, Conte exigiria a lua para permanecer em Milão. E a Suning, baqueada economicamente desde que a covid-19 embaralhou as cartas na China e levou investimentos estatais para longe do futebol, não podia fazer loucuras espaciais. Pouco após dissolver o Jiangsu, em fevereiro de 2021, a família Zhang pegou um empréstimo de 380 milhões de euros com o fundo norte-americano Oaktree, colocando como garantia o seu quinhão na Inter – 68,55% das ações, que lhe davam o controle societário da agremiação – e permitindo que os californianos indicassem dois nomes ao conselho administrativo nerazzurro. Diante desse cenário, que representava a impossibilidade de investir pesadamente em reforços, clube e treinador rescindiram o contrato dias após a conquista do scudetto.
Simone Inzaghi, sucessor de Conte, sempre trabalharia num cenário de mais dificuldades financeiras. E, no entanto, isso não lhe impediria de ganhar títulos em todos os anos de coincidência de gestões, mesmo sob desconfianças da torcida sobre o seu trabalho e, sobretudo, em relação ao futuro da sociedade sob a égide de Zhang.
Entre 2021 e 2024, imperou a falta de transparência sobre o real estado das finanças da Inter. Um cenário que, por exemplo, fez a torcida enlouquecer em 2022, devido ao chapéu da Juventus por Bremer, num momento em que era necessário encontrar um substituto para Skriniar, que sairia gratuitamente, e à impossibilidade do acerto com Paulo Dybala, que acabou na Roma. Nos dois casos, a Beneamata teve de congelar negociações avançadas porque precisava liberar espaço na folha de pagamento e fazer caixa antes de desemperrá-las. Os rivais, livres no mercado, foram mais rápidos.
Se as transações fracassadas chamavam atenção, ao menos não fizeram falta. Marotta e Ausilio se equilibravam na corda bamba, fechando contratações a custo zero ou quase isso, mas tentando não enfraquecer o elenco. Chegariam, então, Hakan Çalhanoglu, Federico Dimarco, Edin Dzeko, Francesco Acerbi, Henrikh Mkhitaryan, André Onana, Yann Sommer, Marcus Thuram e outros – como Piotr Zielinski e Mehdi Taremi, reforços para 2024-25, já num pós-Suning.
O objetivo era simples: não gastar muito e lucrar. Fazer um time competitivo para a Champions League, capaz de ganhar prêmios tanto no torneio continental quanto na Serie A, sem afastar o público dos estádios, além de poder incrementar as receitas com o lucro sobre a venda de ativos que custaram pouco – Onana é o melhor exemplo disso. Esse modelo de negócios permitiria que Antonello colhesse superávits. Foi o que ocorreu. Em 2023, os nerazzurri apresentaram um balanço com mais receitas do que despesas e, de quebra, vários bons resultados esportivos na trajetória. Inzaghi foi campeão italiano, faturando o vigésimo scudetto, ganhou duas edições da Coppa Italia e três Supercopas Italianas. Além disso, foi vice do certame de pontos corridos nacional e, claro, da Champions League.
Em maio de 2024, Zhang teria seus últimos anos como presidente da Inter. Quase todos eles, virtuais, já que sua última visita à Itália foi em julho de 2023 – o que levantou diversas especulações sobre seu status judicial. Primeiro, o manda chuva gravou um vídeo comemorando a segunda estrela e farreou em transmissões ao vivo no Instagram, ao lado de jogadores do elenco nerazzurro com os quais desenvolveu proximidade muito por conta de sua idade (32, no momento). Depois, emitiu um comunicado duro, evidenciando o embate com o fundo californiano Oaktree, às vésperas do vencimento da quitação do empréstimo tomado.
Na nota publicada no site oficial da Inter, Steven Zhang falou sobre o seu legado, ciente de que os norte-americanos não aceitariam refinanciar o empréstimo e que a busca por outras linhas de crédito para cobrir este rombo havia naufragado. Parecia acuado, entretanto. Não aparentava ser o mesmo presidente que faturou sete troféus ou o que conduziu a equipe do 41º ao sétimo lugar no ranking da Uefa. Nem aquele que delegou funções e permitiu que o clube modernizasse sua comunicação, sua estrutura interna e se aproximasse da torcida, recordista em média de público nos estádios, com mais de 70 mil a cada jogo em San Siro, por anos a fio. Ou ainda o que valorizou os ativos da sociedade, a fez ganhar nova cotação no mercado e a deixou numa situação financeira equilibrada. Sim, porque o problema de caixa, no momento da troca de comando, não era da agremiação. Era da Suning.
Aquele Zhang era o Steven distante, quase como Jindong, seu pai. Era um dirigente que via, a milhares de quilômetros de distância, totalmente impotente, o clube adquirido por sua família ser tomado pelo credor. Tal qual Li Yonghong, seu compatriota, que foi dono do Milan por pouco mais de um ano, mesmo sem ter condições financeiras para tal – e que, por isso, foi destituído, em 2018, pelo fundo Elliott.
Os primos da capital da Lombardia acabaram passando por situações idênticas. Seus proprietários chineses não honraram as dívidas contraídas e foram sacados do comando por fundos de investimentos sediados nos Estados Unidos, como se o império respondesse aos emergentes do gigante asiático.
Porém, é preciso salientar as diferenças fundamentais nos intercursos desses processos. Enquanto Li não construiu absolutamente nada de relevante no Milan, a Suning teve muitos méritos na Inter, apesar da frequente campanha por sua depuração – tanto é que o fundo Oaktree dará continuidade ao que tem sido feito pelos nerazzurri, mantendo cargos e modelo de negócios. O grande grupo chinês só não teve, de fato, o capital necessário para devolver os 380 milhões de euros que tomou emprestado e, ao não quitar a dívida, avaliada em 395 mi, por causa dos juros, viu a sua gestão acabar de forma insólita, através do prazo estipulado numa cláusula de um contrato assinado três anos antes: às 17 horas do dia 21 de maio de 2024, pelo horário de Milão.