Ainda bem que Silvio existe: este foi o slogan mais famoso adotado pelas campanhas eleitorais de Silvio Berlusconi. Promotor de uma agenda populista, o empresário foi líder da direita italiana por décadas e teve o seu sucesso como homem público impulsionado pelo investimento em canais de televisão e pelo êxito no esporte. Nenhum dirigente foi tão vitorioso no futebol da Itália quanto o Cavaliere, que presidiu o Milan entre 1986 e 2017. Ao mesmo tempo, poucas figuras foram tão amadas e odiadas quanto o magnata, que faleceu aos 86 anos, na manhã de 12 de junho de 2023.
Em toda a história do futebol, apenas Santiago Bernabéu, do Real Madrid, conquistou mais troféus do que Berlusconi. Ao longo de mais de três décadas sob o comando do empresário e político lombardo, o Milan acumulou 29 taças: foram oito scudetti, sete Supercopas Italianas, cinco Champions League, cinco Supercopas Uefa, três Mundiais Interclubes e uma Coppa Italia. Em 2017, Silvio vendeu o clube ao chinês Li Yonghong em um momento muito menos positivo, mas já havia marcado época como cartola rossonero. No ano seguinte, assumiu o controle do Monza e também obteve um título – o da Serie C. Durante a curta gestão do Cavaliere, os biancorossi puderam estrear na elite e fazer bonito na categoria.
A ascensão de Berlusconi
Berlusconi nasceu e foi criado na pequena burguesia de Milão. Formou-se em direito e teve um breve período como cantor em cruzeiros, mas especializou-se mesmo no trabalho como agente imobiliário. O forte tino de Silvio para os negócios se fez notar quando ele surfou a onda do milagre econômico proporcionado pelo Plano Marshall e do aquecimento de setores da economia, como indústria e construção, durante os anos 1950, 1960 e início dos 1970. Dono da Edilnord, construtora que também operava em outras áreas do ramo imobiliário, sobreviveu à recessão que se seguiu para se tornar um dos jovens empresários mais respeitados e um dos homens mais ricos da Itália na década de 1980.
Pelas contribuições de suas empresas à República Italiana, recebeu do governo o título de Cavaliere, dado apenas a figuras destacadas na sociedade – daí vem o apelido que o acompanhou por toda a carreira. Os lucros no setor imobiliário levaram Berlusconi a diversificar sua receita, investindo em canais de TV e tornando-se um magnata das comunicações, com bilhões (de liras e, depois, euros) em ativos. Através do grupo Fininvest – não confundir com a extinta administradora de cartões brasileira –, Silvio fundou, em 1980, o Canale 5, o primeiro canal privado de transmissão nacional na Itália.
Para movimentar a recém-criada rede de televisão, Berlusconi desenvolveu, juntamente com os presidentes de Inter e Milan, uma iniciativa que lhe possibilitou, através da publicidade e do marketing, entrar no mundo do esporte. Em 1981, foi criado o Mundialito de clubes e o Canale 5 ficou com a responsabilidade de organizar e transmitir o torneio. A competição foi um sucesso e teve três edições – todas com a participação do Diavolo. Na primeira, Johan Cruyff jogou pelos rossoneri e, segundo Adriano Galliani, Silvio foi o avalista da participação do holandês, ao qual teria pagado do próprio bolso.
Na primeira metade dos anos 1980, porém, o time rossonero vivia um dos piores momentos de sua história. O clube ganhara apenas oito títulos entre 1969 e 1986, sendo somente um scudetto, no fim da década de 1970. Pior: chegou a ser rebaixado em 1980, por participação no Totonero, e novamente em 1982, dessa vez por mau rendimento no campo – duas das taças citadas acima foram da segundona.
Giussy Farina, antigo presidente do Lanerossi Vicenza, comprara o Milan pouco antes da primeira queda e conduziu o clube à derrocada financeira – como fizera no Vêneto. Mas, ao contrário do que houve com a equipe biancorossa, que teve sucesso nos campos, levou a torcida rossonera à loucura.
Em fevereiro de 1986, o cartola pôs a agremiação à venda e Berlusconi – que, anteriormente, duas vezes expressara ao presidente Ivanoe Fraizzoli o desejo de comprar a Inter – apareceu para tirá-la do limbo. O objetivo era o de devolver ao Diavolo a grandeza dos anos 1950 e 1960. O Cavaliere conseguiria mais: encheu o time de craques e transformou uma equipe já campeã europeia e multivencedora em nível nacional em uma máquina; no clube que, por muito tempo, se orgulhou de ser o dono da maior quantidade de troféus no planeta.
31 anos sob as rédeas do Cavaliere: o início e o fim no Milan
Berlusconi sempre soube como causar uma primeira impressão – cantor que foi, precisava desse dom. Sua apresentação como presidente do Milan foi impactante: aterrissou na arena cívica de Milão ao som da épica Cavalgada das Valquírias, sinfonia composta por Richard Wagner e que costuma ser utilizada, no cinema, como trilha sonora de invasões vikings. Silvio acertou em cheio, pois a música foi a verdadeira expressão do que viria a ser a sua presidência, com o “saque” da Itália, da Europa e do mundo.
Portando Galliani e Ariedo Braida a tiracolo, Berlusconi mostrou do que era capaz logo em 1987. Gestor ousado, deu espaço a um treinador que somente havia passado somente pelas séries C e B, mas em que via potencial suficiente para alçar o Milan às estrelas. Alvo de muita desconfiança no início, sua escolha calou a todos: Arrigo Sacchi transformou o Diavolo num esquadrão, referência para o esporte.
Fabio Capello veio depois e, bebendo da modernização do centro de treinamentos de Milanello e dos novos paradigmas estabelecidos por Sacchi, manteve a trajetória vencedora daquele Milan, que figura no grupo dos maiores times de toda a história do futebol. Entre os 15 treinadores da Era Berlusconi, não há como esquecer também Carlo Ancelotti, campeão italiano, europeu e mundial com os rossoneri. Alberto Zaccheroni e Massimiliano Allegri também levantaram taças.
O Cavaliere também levou dezenas craques para Milanello e aproveitou jogadores formados no setor juvenil rossonero, como Paolo Maldini, Franco Baresi, Alessandro Costacurta, Demetrio Albertini, Alberico Evani e Gianluigi Donnarumma. Logo nos primeiros anos na presidência, Berlusconi usou a forte base do Diavolo e a reforçou com as chegadas de Marco van Basten, Ruud Gullit, Frank Rijkaard, Roberto Donadoni e Daniele Massaro.
Depois, contratou jogadores como Dejan Savicevic, Zvonimir Boban, Roberto Baggio, Marcel Desailly, Marco Simone, George Weah, Oliver Bierhoff, Andriy Shevchenko, Filippo Inzaghi, Clarence Seedorf, Gennaro Gattuso, Alessandro Nesta, Andrea Pirlo, Rui Costa, Hernán Crespo, Gianluca Zambrotta e Zlatan Ibrahimovic… Poucos clubes podem se orgulhar de ter tido tantos craques no seu plantel em pouco tempo.
Foi com Silvio Berlusconi que o Milan começou a desenvolver relação especial com o Brasil – muito por causa de Galliani, que visita com frequência nosso país. Em sua gestão, o magnata contratou 25 jogadores brasileiros. Curiosamente, isso se deu somente a partir de 1996, quando o presidente já tinha mais de uma década de casa e decidiu “trocar” os holandeses pelos brasileiros. O Cavaliere levou a Milanello nomes como Leonardo, André Cruz, Dida, Serginho, Ronaldo, Ronaldinho, Robinho, Alexandre Pato, Thiago Silva, Cafu e Kaká.
A derrocada do Milan de Berlusconi coincidiu com o desgaste de sua vida política e os inúmeros escândalos, que envolveram corrupção, fantasias sexuais, declarações esdrúxulas e mais uma série de fatores – que destrincharemos logo mais. Antes disso, a sua influência fora um dos fatores que permitiram ao Diavolo evitar uma punição mais severa pelo envolvimento de dirigentes no Calciopoli, esquema de manipulação de resultados que assolou a Serie A na década de 2000.
Entretanto, o seu prestígio vivia um ponto de inflexão e não serviu para que ele conseguisse conservar o seu quarto mandato como primeiro-ministro. Silvio deixou o cargo pela última vez em 2011 e, depois disso, a sua crescente falta de credibilidade e a crise econômica na Itália foram fatores que contribuíram para o deterioramento das condições financeiras do Milan.
Formalmente afastado de cargos políticos e voltado para salvaguardar parte do que tinha construído, o ex-homem forte do país colocou a filha Barbara Berlusconi à frente do Milan e reduziu drasticamente os investimentos no clube. Os títulos da Liga dos Campeões e do Mundial de Clubes, em 2007, e o da Serie A, em 2011, foram as últimas grandes glórias dos rossoneri. Em 2016, a Supercopa Italiana foi a derradeira taça de sua gestão.
Quando o Milan ganhou esta Supercopa Italiana, o processo de deterioração da qualidade de seu elenco já havia sido iniciado, em concomitância às buscas de Silvio por um sócio ou um comprador. Tempos depois, com resultados pífios em campo, o plano se concretizou em 13 de abril de 2017: após 31 anos e 53 dias, a Era Berlusconi-Galliani chegava ao fim.
Apesar da baixa na reta final da gestão, não há como negar que os dirigentes tiveram um sucesso retumbante no período em que estiveram à frente do Milan. Entretanto, também não é possível omitir que Berlusconi não teve cuidado ao escolher para quem vender o ativo que valorizou por três décadas. Li Yonghong era um empresário de reputação praticamente desconhecida, que adquiriu o clube mediante um empréstimo tomado junto ao fundo Elliott, e sequer honrou os seus compromissos: pouco mais de um ano depois, foi removido da presidência por falta de pagamento e o Diavolo passou a ser comandado pela gestora de capitais.
Para o bem e para o mal, o Cavaliere deixou sua marca na sociedade italiana
Silvio Berlusconi pertence à categoria de figuras que despertam fascínio e asco em proporções similares. Para uns, era o nobre Cavaliere; para outros, o Caimano (o crocodilo, em português), por conta de seu reiterado sorriso na face, considerado pelo jornalista Franco Cordero como epítome de sua falsidade. O magnata, sem dúvidas, foi um personagem complexo e que marcou a sociedade italiana do século XX.
“Ele mudou a Itália. A preferia como era antes”. Estas foram as palavras do jornalista Maurizio Crosetti, que ajudou o craque Alessandro Del Piero a escrever “Giochiamo Ancora”, sua autobiografia. Gianfranco Miccichè, irmão de Guglielmo Miccichè, vice-presidente do Palermo entre 2004 e 2017, preferiu se abrigar no flanco oposto: “Quando um papa morre, outro toma o seu lugar. Com Berlusconi, não será assim”. A sentença impactante é um atestado de fidelidade do aliado a Silvio, que o lançou na política após entender que aquele seu funcionário da Publitalia tinha futuro. O diretor de uma filial da firma de comunicação se tornaria deputado de vários mandatos, ministro de um dos governos do Cavaliere e senador.
Apesar de ser amado ou odiado, Berlusconi era hábil, carismático e sedutor o suficiente para transitar entre áreas cinzentas e encontrar meios termos. Ele tinha amigos na esquerda, no centro, na direita e na extrema direita: podia ir ao estádio com Bettino Craxi, que foi premiê e líder do Partido Socialista Italiano (PSI), e Matteo Salvini, da Lega Nord. A competência para se moldar às situações resultou em sua ubiquidade. Quase tudo na Itália contemporânea tem a sua digital.
Craxi foi o vetor de sua aproximação com a política – e, não por acaso, era um dos homens poderosos da Itália na década de 1980. Naquela época, o PSI e a Democracia Cristã (DC) eram os partidos mais fortes do país e tinham uma aliança duradoura, que lhes garantia sólida governança. Silvio tinha ligações com expoentes democristãos, como Giulio Andreotti, mas era íntimo de Craxi, que também era de Milão. O líder socialista, que foi primeiro ministro de 1983 a 1987, chegou a ser padrinho de batismo de Barbara Berlusconi, filha mais velha do casamento do Cavaliere com a ex-atriz Veronica Lario – o segundo de seus matrimônios.
No início da década de 1990, todos os líderes da DC e do PSI foram afetados pelo escândalo Tangentopoli, também conhecido como Operação Mãos Limpas, e a política italiana foi virada de ponta-cabeça. O mar de propina e corrupção revelou ligações de parlamentares e empresários com a máfia e até com a loja maçônica Propaganda Due (P2), acusada de ser “um estado dentro do estado” e de orquestrar atentados. As grandes legendas foram dizimadas e a vida pública de diversas personalidades simplesmente acabou ali. Craxi, por exemplo, fugiu para a Tunísia em 1995 e morreu, na condição de foragido, no país africano.
Berlusconi foi um dos vários investigados pela operação, mas o foco da magistratura estava voltado aos grandes dirigentes partidários. E, ali, Silvio deu o pulo do gato: com seu sorriso de crocodilo, fingiu que nada daquilo tinha a ver com ele e ingressou na política, em busca de aproveitar o vácuo de poder e tentar se proteger nas sombras da burocracia. Em suas palavras, “entrou em campo”. A metáfora futebolística não era acidental. Era, sim, uma clara alusão a sua experiência de sucesso no Milan. O nome do partido que criou, Forza Italia, era o mesmo do slogan utilizado pela Nazionale na vitoriosa campanha da Copa do Mundo de 1982.
O Cavaliere vinha planejando a sua entrada na política desde 1992 e, pouco a pouco, foi se tornando personagem habitual no debate de ideias corrente na sociedade italiana. No fim de janeiro de 1994, num anúncio de 9 minutos distribuído para todas as redes de televisão do país, o projeto se concretizou.
Berlusconi tinha laços profundos com Craxi – que não renegara – e outros figurões, inquéritos abertos, acusações de aliança com a máfia siciliana Cosa Nostra (no futuro, também suspeito de ter acordos com a calabresa ‘Ndrangheta) e documentação comprobatória de sua filiação à P2. Mas, mesmo tendo tanta penetração e trânsito em polos de poder, conseguiu se vender, com a ajuda de seu conglomerado midiático, como um representante da antipolítica ao se afastar dos vínculos com o PSI e a DC e adotar um discurso neoliberal na economia, que lhe levou a estabelecer alianças com partidos de extrema direita, como a separatista Lega Nord e o Movimento Social Italiano (MSI), herdeiro do Partido Nacional Fascista. Considerado precursor desse tipo de discurso populista, foi eleito como presidente do Conselho de Ministros em março de 1994. Seu governo foi o primeiro da república, iniciada em 1946, a dar espaço no mais alto escalão a expoentes de uma legenda neofascista.
O fato de o Milan estar em alta na época certamente era uma vantagem para Berlusconi, que dizia que queria fazer a Itália se assemelhar ao clube rossonero. Em abril, o Diavolo ganhou o scudetto; em maio, goleou o Barcelona de Cruyff e faturou mais uma taça da Champions League. O primeiro ministro Silvio estava no céu.
O ingresso na política permitiu a Berlusconi um acúmulo de poder sem precedentes na República Italiana, ainda que seu primeiro governo tenha durado apenas oito meses e, após a perda da maioria parlamentar, ele tenha passado mais de seis anos como líder da oposição até tornar a ser premiê, em 2001. Ao mesmo tempo, ele chegou a ser chefe do poder executivo e proprietário de empreendimentos nas mais diversas áreas – quase todos através da holding Fininvest.
No esporte, Berlusconi tinha o Milan; nos meios de comunicação, informação e entretenimento, controlava a Mediaset – e suas subsidiárias, como Publitalia, Medusa Films, RTI, Canale 5 e várias outras emissoras –, Il Giornale, o grupo editorial Mondadori e o Teatro Manzoni; no setor bancário e de seguros, o Mediolanum; no imobiliário, a incorporadora Dolcedrago. O seu império lhe alçou ao grupo das pessoas mais ricas e poderosas da Itália e do mundo.
Berlusconi fez de tudo para chegar ao poder e de tudo para se manter com ele. Um dos primeiros atos de seu governo de número um foi convidar os procuradores Antonio Di Pietro e Piercamillo Davigo, que conduziam a Mãos Limpas, para fazerem parte de sua gestão – depois da recusa de ambos, o Cavaliere negou ter agido nesse sentido.
No início do terceiro mês de seu mandato, o Caimano deixaria evidente que o papo de antipolítica era apenas um pretexto para se eleger e articularia pela aprovação de uma lei enviada ao parlamento por Alfredo Biondi, seu ministro da Justiça. O texto protegia a classe política de prisões preventivas em crimes de corrupção e a votação do decreto aconteceu às pressas, durante a partida entre Bulgária e Itália, válida pela semifinal da Copa do Mundo de 1994 – com dois gols de Roberto Baggio, a Nazionale fez 2 a 1 sobre os búlgaros, liderados por Hristo Stoichkov. A manobra foi criticada pelos opositores, que denunciaram a manipulação da opinião pública, distraída pela competição de futebol naquele momento. Uma fatia dos meios de comunicação, vale lembrar, era controlada por Berlusconi.
A já citada e destrinchada maleabilidade de Berlusconi se dava na base da troca de favores. O Caimano era conhecido por lançar pupilos, que rapidamente eram cobertos de benesses. Urbano Cairo, presidente do Torino, foi um deles.
Filho de um vendedor de móveis e de uma professora, Urbano procurou Silvio depois de se graduar em administração e lhe pediu um emprego, conseguindo se tornar auxiliar pessoal do empresário, ajudando-o em investimentos nos setores editorial e de mídia. A proximidade a Berlusconi lhe conferiu influência e abertura para um caminho próprio – que lhe rendeu, inclusive, uma condenação na Mãos Limpas, referente exatamente ao período em que era diretor da Fininvest. Posteriormente, Cairo viria a adquirir o Torino, o canal televisivo La 7 e o grupo RCS, controlador de Gazzetta dello Sport, Corriere della Sera, Marca, SportWeek e de outras publicações menores. No dia da morte do Cavaliere, as redações do seu conglomerado de mídia fizeram cobertura caprichada sobre o bilionário.
Berlusconi também costumava lavar as mãos de líderes políticos tão controversos quanto ele próprio. Silvio era amigo de Vladimir Putin, presidente da Rússia, Recep Tayyip Erdogan, mandatário da Turquia, e de Muammar al-Gaddafi, ditador da Líbia. O país africano é um dos maiores fornecedores de petróleo e gás natural para a Itália, enquanto petroleiras italianas também têm poços de extração em território líbio. Em meados da década de 2000, como forma de mostrar boa vontade na condução de um acordo entre as nações, o Cavaliere teria concordado em ajudar um dos filhos do soberano a desenvolver carreira como jogador da Serie A: Al-Saadi Gaddafi passaria, sem sucesso, por Perugia, Udinese e Sampdoria.
Confundir público e privado era algo quase patológico para Berlusconi. E isso, de certa forma, impulsionou a sua derrocada. Silvio protagonizou polêmicas por declarações e comportamentos inadequados, inúmeras gafes em encontros com lideranças, relações espúrias e conflitos de interesses, como, por exemplo, os que envolveram a promulgação de dezenas de leis em benefício próprio – algumas, como o chamado Decreto salva-calcio, ajudaram o Milan e outros clubes a parcelar suas dívidas e a diminuir o efeito dos prejuízos anuais em seus balanços. Foram, entretanto, os escândalos de natureza sexual, inclusive com o envolvimento de menores, que minaram a sua credibilidade.
Ambicioso e vaidoso, o Caimano nunca suportou a ideia de envelhecer. Ao longo da vida, acumulou procedimentos estéticos e casos extraconjugais: era conhecido por dar colares com pingentes de borboleta para seus affairs, que poderiam ser modelos, prostitutas com máscaras de Ronaldinho participantes de bunga-bungas e até belas mulheres que ele selecionava para serem candidatas por seus partidos, Forza Italia ou Il Popolo della Libertà, nas eleições. Berlusconi não fazia distinção. Até que saiu com Karima El Mahroug, a Ruby Rubacuori – sim, seu pseudônimo é traduzido como “rouba corações”. Uma marroquina menor de idade.
O caso erodiu o resto de sua popularidade e foi uma das crises que contribuíram para o fim de seu quarto mandato como premiê e de seu casamento com Veronica Lario – pouco adiantou fazer pinta de bom moço em aparições com seus cães, como o famoso poodle Dudù. Berlusconi chegou a ser condenado, em primeira instância, a sete anos de prisão por favorecimento à prostituição de menor, além de ter seus direitos políticos cassados. Ambas as sentenças foram revertidas após recursos.
A ascensão e a derrocada de Berlusconi foram retratadas em dois filmes aclamados pela crítica e dirigidos por artistas premiados. Em 2006, Nanni Moretti lançou Il Caimano, e, em 2018, Paolo Sorrentino, ganhador do Oscar, deu vida a Loro – distribuído no Brasil como “Silvio e os Outros”. As duas produções, entretanto, não captaram a última tentativa de sobrevida do Cavaliere na política, que até poderia ter relação com o suposto veto a Maurizio Sarri como técnico do Milan, por conta do apreço do treinador a ideias de esquerda.
O premiê mais longevo da Itália, que governou o país por 3.339 dias, distribuídos em quatro mandatos – de 1994 a 1995, de 2001 a 2006, com uma reformulação do executivo em 2005, e de 2008 a 2011 –, tentou se cacifar à presidência da república, que tem eleição indireta, realizada pelos parlamentares. O cargo de chefe de estado, que exige reputação ilibada, era a última ambição do Cavaliere, que queria fechar a vida com chave de ouro. Não conseguiu: vendo que o popular Sergio Mattarella teria caminho fácil à reeleição, desistiu da candidatura. O siciliano garantiu um novo mandato com mais de 75% dos votos.
Dessa forma, o então senador Berlusconi teve de se contentar com o papel de coadjuvante no campo conservador. O homem que fora responsável por alçar integrantes do MSI pela primeira vez ao governo, em 1994, guinou novamente à extrema direita e se tornou fiador da aliança que permitiu a ascensão ao poder de Giorgia Meloni, ex-militante da legenda neofascista e atualmente no partido Fratelli d’Italia.
Ato final: o volante do Monza
Durante o período em que tentou reconstruir a sua carreira política, Berlusconi passou a investir no Monza: em 2018, pouco mais de um ano de encerrar a sua história no Milan, Silvio comprou o clube, que estava na terceira divisão, e deu a presidência a Paolo, seu irmão. O Cavaliere ainda levou consigo o fiel escudeiro Galliani, que assumiu o posto de diretor executivo biancorosso.
Com Berlusconi, o tradicional Monza ganhou ambição – e não só. O time lombardo faturou o título da terceirona, em 2020, e 115 anos depois de sua fundação, subiu pela primeira vez à Serie A. Na elite, o bilionário não deixou a política de lado e, no intuito de mandar uma mensagem aos eleitores, deu prioridade à contratação de bons atletas italianos. Garantiu, por exemplo, o retorno do meia Matteo Pessina, campeão da Eurocopa.
O Monza teve o elenco mais italiano da edição 2022-23 da Serie A e, sem dúvidas, as escolhas de Berlusconi e Galliani deram certo. Na 11ª posição, os lombardos se juntaram ao Parma de 1990-91 e ao Chievo de 2000-01 no grupo dos debutantes de melhor aproveitamento da história da competição.
Durante a campanha, o bilionário chegou a causar polêmica com suas frases polêmicas. No jantar de Natal do Monza, em 2022, Berlusconi prometeu “um ônibus cheio de prostitutas” aos jogadores em caso de vitórias contra times grandes – os biancorossi terminariam a competição com um triunfo sobre a Inter e dois sobre a Juventus. Por essas e por muitas outras, o site Escort Advisor, especializado em anúncios de garotas de programa, fez homenagem póstuma ao cartola.
Nessa época, Berlusconi já lutava contra a leucemia crônica. O agravamento da doença lhe obrigou a passar um mês e meio internado, entre abril e maio de 2023. Em 9 de junho, o quadro do magnata se agravou e, na manhã do dia 12, ele faleceu no hospital São Rafael, em Milão. Silvio deixou duas ex-cônjuges (Carla Elvira Lucia Dall’Oglio e Veronica Lario), cinco filhos (Maria Elvira, conhecida como Marina, Pier Silvio, Barbara, Eleonora e Luigi), uma namorada (Marta Fascina), muitos amigos, numerosos fãs, demasiados detratores e incontáveis amantes.
A morte de Berlusconi marcou o fim de uma era no esporte e na política da Itália. De imediato, parlamentares da Câmara de Vereadores de Monza fizeram uma moção ao município para que o estádio Brianteo seja rebatizado em homenagem ao dirigente.
Por outro lado, certas coisas nunca mudam. Falecido, Silvio deixou o controle do partido Forza Italia com a bela Marta Fascina, de 33 anos, que trabalhou em Il Giornale e na assessoria de imprensa do Milan antes de conhecê-lo, através de Galliani, e se tornar deputada pela Campânia e namorada pela Lombardia. Poucas situações poderiam ser tão berlusconianas quanto esta.