Árbitros Cartolas

Apesar das polêmicas, Luigi Agnolin foi um dos melhores árbitros italianos

Não é todo dia que torcedores fazem campanha pública para que um árbitro seja escolhido para atuar numa Copa do Mundo. Pois bem: isso ocorreu em 1990 com Luigi Agnolin, um dos maiores apitadores italianos da história. Conhecido pelo seu temperamento forte, o vêneto também é lembrado por ter batido de frente com mandatários da bola. Entre eles, Joseph Blatter, ex-presidente da Fifa.

Gigi nasceu entre os apitos, na cidade de Bassano del Grappa, no Vêneto. Filho da arte, herdou o talento e a competência de um dos melhores árbitros do futebol italiano nas décadas de 1940 e 1950 – Guido Agnolin, que chegou a ganhar o prêmio Giovanni Mauro como apitador de maior destaque da Serie A 1952-53. Tal qual disse em uma entrevista pouco antes de falecer, a arbitragem foi uma “escolha de vida”. Luigi começou bem cedo, ainda aos 18 anos, em torneios de juniores. Sua estreia, em 1961, aconteceu num clássico da província de Vicenza, entre Bassano e Marchesane. “Terminei a partida com a consciência de ter embarcado em um novo caminho, com tudo por descobrir”, disse.

Em 1968, Luigi iniciou sua trajetória profissional ao apitar o duelo entre Como e Monza, pela Serie B. A estreia na primeira divisão aconteceu anos mais tarde, em 1973, na partida entre Fiorentina e Cagliari. Não demorou para que Agnolin começasse a dirigir duelos de grande rivalidade, o que ocorreu a partir de 1973-74. Na temporada seguinte, por sua qualidade e seu estilo rígido, comandou os primeiros clássicos: em dezembro de 1974, foi o encarregado de um Dérbi de Roma e de um confronto entre Napoli e Juventus.

Gigi se tornou árbitro internacional em 1978 e, em 1979, apitou a primeira decisão de sua carreira, entre Fiorentina e Perugia, pela Copa Viareggio, tradicional torneio de jovens que acontece no litoral da Toscana – sob o comando do brasileiro Nenê, a equipe violeta faturou o título. A partir de então, a carreira de Agnolin decolou e ele passou a representar a Itália nas competições organizadas pela Uefa e pela Fifa. Nessa seara, dirigiu partidas de eliminatórias para a Copa do Mundo na África e na Oceania, além de ter sido um dos precursores do intercâmbio da arbitragem, ao conduzir o maior clássico egípcio, entre Al Ahly e Zamalek, em 1983.

Filho do ex-árbitro Guido Agnolin, Luigi teve ainda mais sucesso do que o pai na profissão (imago)

Quando apitava, o árbitro se impunha por seu jeito ágil e por não levar desaforo para casa. Era tido como inflexível e até heterodoxo, pois preferia deixar os cartões de lado e controlar as partidas com frases por vezes grosseiras, de modo a mostrar quem comandava as ações. Por isso, discussões com alguns jogadores ficaram célebres. O principal episódio ocorreu na temporada 1980-81, num clássico entre Juventus e Torino.

Em outubro de 1980, a Juventus perderia o Derby della Mole de virada, por 2 a 1, graças a uma doppietta de Francesco Graziani. Quando a Velha Senhora ainda vencia, Roberto Bettega reclamou fortemente de uma decisão de Agnolin, que respondeu com uma frase que poderia ser livremente traduzida da seguinte forma: “se você não parar de se lamentar assim, vou mandar você se foder”. Talvez o acontecimento passasse em brancas nuvens, mas a derrota acirrou os ânimos dos juventinos e, ao fim da peleja, o atacante se juntou a Giuseppe Furino, Claudio Gentile e Marco Tardelli para ofender o trio de arbitragem e tirar satisfações. Pietro Giuliano, diretor bianconero, chegou a se deslocar ao vestiário do juiz para cobrar explicações – e foi retirado do recinto por ordem de Gigi.

Agnolin não se fez de rogado e reportou, com detalhes, todo o bafafá na súmula. Ao mesmo tempo, Giuliano e Bettega foram à imprensa para denunciarem a frase ofensiva proferida pelo árbitro. O caso foi para o júri desportivo e, pela situação, os bianconeri pegaram gancho de poucas partidas – duas, nos casos do atacante e de Gentile, e uma para Furino e Tardelli.

Gigi, por sua vez, também foi julgado e admitiu que a acusação dos juventinos procedia, o que lhe resultou numa punição de quatro meses. Agnolin não recorreu da decisão e, naquele mesmo ano, pode se igualar a seu pai, uma vez que recebeu o prêmio Giovanni Mauro referente à temporada anterior, 1979-80.

Conhecido por não levar desaforo para casa, Agnolin foi um dos mais respeitados árbitros italianos (imago/Kicker/Liedel)

Essa sucessão de eventos alimentou duas narrativas diferentes sobre o apitador: para os torcedores da Velha Senhora, o vêneto seria um árbitro “anti-Juve”; para os demais, um profissional tão capacitado que conseguiu ser agraciado com uma honraria do gênero mesmo após aborrecer o prestigiado Gianni Agnelli, dono da Juventus, da Fiat e de meia Itália. A chateação dos bianconeri com Agnolin foi diretamente proporcional à influência exercida nos bastidores para que o juiz não dirigisse partidas da equipe. E assim foi: Gigi passou quase três anos sem ser escalado para jogos da gigante.

Aliás, em 1983, mesmo ano em que voltou a dirigir compromissos da Juve, Agnolin teve um pequeno embate com a CAN, a comissão de arbitragem italiana. O motivo era esdrúxulo: havia deixado sua barba crescer. Ele chegou a ser repreendido por Alessandro D’Agostini, chefe da entidade à época, mas não se intimidou e manteve o visual por alguns meses. O ato até poderia ser visto como insolência, mas Gigi continuou a apitar jogos grandes, tal qual a final da Coppa Italia de 1984-85, terminada com triunfo da Sampdoria sobre o Milan, e até foi indicado pela FIGC, a federação nacional, como único representante da Velha Bota na Copa do Mundo de 1986.

No México, o vêneto brilhou: considerado como um dos melhores árbitros da competição, foi um dos dois únicos profissionais que apitaram três partidas, ao lado do brasileiro Romualdo Arppi Filho, que dirigiu a decisão entre Argentina e Alemanha Ocidental. Agnolin atuou no 6 a 0 da União Soviética sobre a Hungria, na fase de grupos; na vitória albiceleste no clássico sul-americano com o Uruguai, nas oitavas; e no triunfo alemão sobre a França, na semifinal.

Curiosamente, uma decisão de Agnolin acabou contribuindo para que Diego Armando Maradona não tenha dividido a artilharia com o inglês Gary Lineker – El Diez anotou cinco gols e ficou um atrás do britânico. No duelo entre Argentina e Uruguai, Jorge Valdano arrancou num contra-ataque e disparou um forte arremate, defendido por Fernando Álvez. No lance, o Pibe d’Oro, velho conhecido do árbitro, se enroscou com Nelson Gutiérrez e Miguel Bossio antes de completar para as redes, o que levou o italiano a anular o tento.

Na Copa de 1986, Agnolin apitou o clássico entre Argentina e Uruguai, pelas oitavas de final (imago/WEREK)

Nos anos seguintes, o árbitro coroou a sua carreira com uma penca de decisões. Foram quatro: a Supercopa Uefa de 1986, vencida pelo Steaua Bucareste sobre o Dynamo Kyiv; a da Recopa de 1987, concluída com triunfo do Ajax sobre o Lokomotive Leipzig; a volta da Coppa Italia de 1988, na qual o Torino bateu a Sampdoria, mas não conseguiu tirar o título dos blucerchiati; e, por fim, a da Copa dos Campeões da mesma temporada, que teve o PSV Eindhoven se sagrando vitorioso nos pênaltis ante o Benfica.

Agnolin ainda apitou a primeira Copa do Mundo de Futsal, em 1989, e pode se gabar de ter dirigido os maiores clássicos do país: o de Turim (oito vezes), o de Milão (sete), o de Roma (cinco), o de Gênova (quatro), o da Apúlia (duas) e o dos Apeninos (uma), além de outros duelos importantes, como o Derby d’Italia (cinco) e aqueles entre Juventus e Milan (quatro) e entre Juve e Napoli (três). Por fim, o último confronto direto entre Milan e Napoli pelo scudetto de 1989-90, ficou sob seu comando. Os rossoneri ganharam por 3 a 0, mas o título terminou com os azzurri.

A temporada 1989-90, aliás, marcaria a sua aposentadoria. Se as coisas seguissem o caminho natural, o árbitro de 47 anos sequer concluiria a sua carreira com 226 jogos dirigidos na Serie A e uma despedida na última rodada do campeonato, numa vitória da Udinese sobre a Inter, por 4 a 3. Pelas normas da época, ainda poderia apitar em 1990-91, mas a sua competência e sua credibilidade, mais uma vez, atuariam como dor e delícia para si próprio.

A princípio, a Copa do Mundo de 1990 não teria a presença de Agnolin. Um fato irônico, pois a competição ocorreria justamente em solo italiano, e certamente não havia profissional mais qualificado e experiente em circulação na Velha Bota. O motivo para a exclusão era simples: por sua personalidade forte, o árbitro não costumava se dobrar aos poderosos e isso em nada agradava a Antonio Matarrese, vice-presidente da Fifa, principal cartola da FIGC e deputado da república. Tullio Lanese, quatro anos mais novo, era o preferido do dirigente.

Depois de ganhar prestígio como o principal árbitro italiano dos anos 1980, Gigi se projetou mundialmente (imago)

Foi o clamor popular que colocou Gigi no Mundial. O árbitro era considerado inabalável e, por isso, capaz de irritar todas as torcidas do país e do exterior: não cedia a pressões e, em geral, estava mesmo correto nas decisões que tomava em campo. No fim das contas, os torcedores enxergavam em Agnolin um profissional rigoroso, honesto e intolerante com comportamentos antidesportivos. Seria um papelão deixá-lo de fora da Copa na própria Itália e Matarrese teve de dar o braço a torcer.

Apesar disso, a participação de Gigi seria brevíssima – e foi sabotada pelos manda chuvas do futebol. Ele trilou o apito em apenas um jogo, no confronto entre Iugoslávia e Colômbia, pela fase de grupos, e foi criticado publicamente por Blatter, então secretário-geral da Fifa, por uma suposta falta não marcada. A avaliação, além de grosseira, não fazia muito sentido e gerou reação imediata da torcida italiana, que passou a defender o árbitro com faixas nos estádios.

Blatter estava simplesmente fazendo uma tabelinha com Matarrese, que tinha interesse de minar a credibilidade de Agnolin e tirá-lo da competição o mais cedo possível. E assim foi: depois das oitavas de final, com a anuência do chefão da FIGC, Gigi foi dispensado da Copa do Mundo. Chateado, decidiu se aposentar em seguida.

Ao pendurar o apito, Agnolin se despediu com uma carta afetuosa e até conciliadora. Foi político, característica que raramente costumava exercer, no intuito de ser apontado como dirigente da Associação Italiana de Arbitragem (AIA) e se tornar o responsável pelos profissionais da área na Serie C. Contudo, nos bastidores, todos sabiam das rusgas entre ele e Matarrese. O mandatário da FIGC até se forçava a emitir declarações polidas sobre o desafeto, mas volta e meia proferia frases enigmáticas, que evidenciavam fissuras na relação.

Em 1986, o árbitro italiano também apitou a semifinal entre França e Alemanha Ocidental (STAFF/AFP/Getty)

Agnolin permaneceu na chefia dos apitadores da Serie C entre 1990 e 1992, quando não teve o mandato renovado e se demitiu por conta das insanáveis diferenças com Matarrese. No período em que trabalhou na AIA, teve sua indicação à comissão de arbitragem da Uefa negada pelo presidente da FIGC, que preferiu dar o posto a Paolo Casarin. Vêneto, tal qual Gigi, o ex-juiz não teve carreira comparável à do conterrâneo: gozou de menor prestígio durante seus anos em campo, mas sua habilidade política lhe permitiu comandar os colegas na primeira e na segunda divisões e, posteriormente, lhe transportou ao palco internacional.

Após se demitir e cancelar a filiação à entidade, que mantinha havia 31 anos, Luigi não se conteve e soltou o verbo: já na condição de ex-árbitro, acusou Matarrese de não se preocupar com o trabalho dos apitadores e de ter o único interesse de lucrar com o cargo, o qual utilizaria como trampolim.

“Garanto que não é fácil atuar na FIGC, tendo a seu lado gente irracional e que tenta interromper uma tarefa com a arrogância do poder”, disse ao jornal La Repubblica na época. “Pergunto-me se Matarrese teria um objetivo válido e sério para invalidar o trabalho de toda a comissão. Ele é muito bom em criar distrações e tem uma notável e improdutiva proatividade. Seu comportamento não está em harmonia com os ditames do estatuto: ou o presidente é incapaz de realizar suas atribuições ou é possível que tenha objetivos ocultos, em contraste com as normas da entidade”, completou Agnolin.

Este era o autêntico Gigi, firme em seus ideais. Por isso, não era querido pelos poderosos, que sabiam que não podiam manipulá-lo, nem pelos carreiristas, cujas fraquezas ele fazia questão de evidenciar. Não à toa, teve brevíssima carreira como gestor de arbitragem, sempre às margens do sistema: muitos de seus colegas não simpatizavam com seu estilo.

Durante sua atuação no futebol, o ex-árbitro entrou em rota de colisão com dirigentes poderosos, como Matarrese e Blatter (imago/Kicker/Liedel)

Por outro lado, sua personalidade – além de agradar a torcida – serviu de exemplo para apitadores iniciantes. Um de seus pupilos foi simplesmente Pierluigi Collina, que comandou a final da Copa do Mundo de 2002. “Gigi foi um exemplo e uma inspiração para todos nós, experientes e jovens árbitros. Sempre olhei para ele como um modelo”, afirmou. “Ele foi um homem de grande personalidade e carisma em campo. Sempre se mostrou decidido e firme”, completou o atual presidente da arbitragem da Fifa, considerado um dos melhores da história em sua função.

Afastado do mundo da arbitragem, Agnolin se reposicionou no mercado e atuou como dirigente de Roma (1994), Venezia (1999-2000), Verona (2000-01), Perugia (2011-13), Siena (2014-15) e Olhanense (2013-14 e 2016-18) – Gigi, inclusive, chegou a ser presidente do clube português, cuja administração era italiana. Por um breve período de tempo, também trabalhou como responsável pelo setor juvenil e amador da FIGC, que já não estava mais sob a batuta de Matarrese. Além disso, em 1996, tentou se eleger senador da república por uma coalizão de centro-direita, mas não teve sucesso.

Nesse ínterim, Agnolin voltou a atuar de maneira extraordinária na função de comissário da AIA – porque os tempos eram anômalos e exigiram decisões incomuns. Em 2006, a explosão do escândalo Calciopoli comprometeu a credibilidade da arbitragem italiana e foi necessário que uma figura ilibada, alheia a todo o caos administrativo, ascendesse à chefia para juntar os cacos. Contudo, sua gestão extremamente cristalina não agradou a todos e o seu mandato não foi renovado.

Em 2012, Gigi foi homenageado com um lugar no hall da fama do futebol italiano, num gesto que ratificou o quanto ele havia modificado o estilo de arbitragem na Velha Bota e se tornado uma referência para novos apitadores. Agnolin faleceu em setembro de 2018, aos 75 anos, e também recebeu um tributo póstumo da comuna de Bassano del Grappa, sua cidade natal. Muito ligado a sua terra, o ex-árbitro deixou um centro esportivo como legado para a região.

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