Pão com salame é um dos lanches mais simples e tradicionais da culinária italiana – e, também, dos mais gostosos. Fazer um sanduíche com o embutido de carne salgada costuma ser uma opção para quem quer matar a fome de forma rápida e eficaz. Por conta disso, a expressão “pane e salame”, quando aplicada ao contexto do futebol numa analogia, significa que a modalidade está sendo praticada sem sofisticação e espetáculo, mas de maneira funcional. Assim foi a Cremonese do presidente Domenico Luzzara.
Luzzara – ou Menico, como era carinhosamente chamado – foi o manda chuva da Cremonese por 35 anos. Durante mais de três décadas no comando do clube, viu funcionários, jogadores e torcedores da agremiação sediada numa cidade cuja população flutuava ente 70 e 80 mil habitantes se tornarem parte de sua família. E ele se transformou em um pai para todos.
Domenico Luzzara nasceu em Cremona, no primeiro dia de 1922. Com o passar dos anos, se tornou um relevante empresário local, mas nunca ligou para o futebol. Attilio, seu filho, ao contrário, amava o esporte a Cremonese. Tanto é que, várias vezes, insistiu para que o pai adquirisse a agremiação. “Não precisa entender nada. É só colocar o dinheiro e eu te explico o que fazer”, dizia. Em 1967, com a queda dos grigiorossi para a Serie D, Menico cedeu aos caprichos do herdeiro e assumiu o comando do clube no lugar de Luciano Grandi – que passou a ocupar um cargo na diretoria.
Logo nos primeiros meses de gestão, o clube retornou ao futebol profissional. No entanto, viveu uma gangorra e só se consolidou mesmo na Serie C a partir de 1971. Nesse percurso, durante a primavera de 1970, Attilio Luzzara morreu precocemente, em um acidente de carro. Para honrar o desejo de seu rebento, Domenico decidiu continuar à frente da agremiação. “Assim, sinto que meu filho permanece comigo”, declarou na época.
E assim foi: usando a dor da perda como combustível, Menico levou a Cremonese ao período mais glorioso de sua história. Salvo um breve período em 1972-73, em que se licenciou e deixou Grandi no comando, o empresário dirigiu a Cremonese até 1999 – o cartola manteve o controle societário até 2002, mas se afastou das decisões no triênio final. Nesses 35 anos, fez o time conquistar oito acessos e três troféus profissionais, além de três outros entre os juvenis. Foram seis campanhas na elite italiana.

Querido pela torcida, Menico costumava assistir alguns jogos da Cremonese nas tribunas do Zini (Ivano Frittoli)
Até 1981, a Cremo foi figurinha carimbada na terceirona – a disputou em quase todas as temporadas a partir de 1971, a não ser em 1977-78, quando passou brevemente pela Serie B. Nesse primeiro período, a gestão de Luzzara se destacou pelo longo e positivo trabalho do técnico Battista Rota, que durou seis anos, pelos gols do atacante Emiliano Mondonico e pela aquisição do veterano zagueiro Aristide Guarneri, filho de Cremona e que havia sido multicampeão pela Grande Inter.
O time grigiorosso também foi um bom entreposto par a valorização de bons jovens oriundos de outros clubes, como o goleiro Luciano Bodini, o meia Adelio Moro e os pontas Walter Novellino e Domenico Marocchino. Na década de 1970, a Cremonese ainda revelou estrelas como o lateral-esquerdo Antonio Cabrini e os volantes Cesare Prandelli, Luciano Miani e Fulvio Bonomi.
O período de apogeu do clube começou na década de 1980. Mais exatamente em 1981, quando do acesso para a Serie B garantido pelo time treinado por Guido Vincenzi – que tinha bandeiras dos grigiorossi, como o zagueiro Mario Montorfano, o lateral-direito Felice Garzilli e o meia-atacante Giancarlo Finardi, além dos jovens Romano Galvani, meia, e Gianluca Vialli, atacante.
Em 1984, após o amadurecimento de Vialli e a escolha de Mondonico – muito identificado com o clube – para o comando técnico, a Cremonese conquistou o acesso à elite, após 54 anos longe do mais alto escalão italiano. Eram os tempos, de fato, do futebol “pão e salame”. Mondo formou um time competente, que fazia o básico e lutava muito no acanhado estádio Giovanni Zini, onde costumava somar pontos e dar alegrias à pequena cidade da Lombardia.
Para a disputa da elite, Luzzara se desfez de Vialli – prometido ao amigo Paolo Mantovani, presidente da Sampdoria, que foi mais rápido do que Giampiero Boniperti, da Juventus, para fechar negócio. Em contrapartida, os tigres se reforçaram com o ponta brasileiro Juary, o zagueiro polonês Wladyslaw Zmuda e o habilidoso meia-atacante Alviero Chiorri. Não foi o suficiente, já que a Cremonese terminou com a lanterna da competição.
Internamente, as coisas funcionavam bem. Luzzara, ao lado dos diretores Giuseppe Miglioli e Erminio Favalli, fazia uma boa gestão – ainda que fosse contestado pelas vendas de atletas valorizados pelo clube. Quando questionado, era taxativo: “Pensam que gosto de vender [os jogadores]? Ou avançamos lentamente ou desaparecemos. Vocês [torcedores] devem escolher”. Acabava sendo compreendido pelos “filhos” de Cremona, com os quais costumava assistir às partidas. Não era incomum ver Menico nas arquibancadas do estádio Giovanni Zini ou bem próximo a elas, num banco vizinho às grades que separavam o público do gramado.
Nos anos posteriores, a Cremonese valorizou e negociou jogadores como o ponta Attilio Lombardo, os meias centrais Riccardo Maspero e Dario Marcolin, os goleiros Michelangelo Rampulla e Luigi Turci, o lateral-esquerdo Giuseppe Favalli (sobrinho de Erminio), o zagueiro Francesco Colonnese, os meias ofensivos Anders Limpar e Matjaz Florjancic e os atacantes Andrea Tentoni e Gustavo Dezotti – este último, enquanto vestia a camisa dos violini, foi vice-campeão mundial com a Argentina, em 1990. Outros, como o zagueiro Luigi Gualco, permaneceram para se tornarem bandeiras dos grigiorossi.
Sem dúvidas, a Cremo de Luzzara sabia observar o seu entorno e fazer caixa com as suas descobertas. A equipe revelava bem e o título da Coppa Italia Primavera, dedicada à categoria sub-19, em 1986-87, era prova disso. Na mesma temporada, o time de adultos chegou a eliminar Sampdoria, Verona e Inter (uma das gigantes de sua região), alcançando as semifinais da copa nacional. A propósito, os tigri costumavam fazer boas campanhas na Serie B e, eventualmente, conquistavam o acesso. Permanecer na elite é que era tarefa inglória. Tanto é que os grigiorossi amargaram rebaixamentos imediatos em 1990 e 1992.
Tudo mudou a partir de 1992-93, com a contratação do técnico Luigi Simoni, em substituição ao gabaritado Gustavo Giagnoni. Naquela temporada, com a Cremonese de volta à segundona, Simoni montou um elenco sólido e fez valer o seu epíteto de “rei dos acessos”. Ao mesmo tempo, transformou o clube grigiorosso e o presidente Luzzara em, de acordo com suas palavras, “um pedaço importante” de sua vida. Gigi conquistou a sexta promoção de sua carreira e foi além, pavimentando o caminho para ser treinador do time por quatro anos.
Além do vice-campeonato da Serie B, a Cremo de Simoni foi capaz de celebrar uma glória internacional: o time presidido por Menico faturou a Copa Anglo-Italiana ao bater o Derby County, no majestoso Wembley. Entre os heróis da dupla conquista estavam os já citados Turci, Gualco, Montorfano, Colonnese, Maspero, Florjancic, Dezotti e Tentoni. Sem esquecer do zagueiro Corrado Verdelli e do meia Marco Giandebiaggi, que tiveram anos positivos pelos tigri.
Gigi Simoni foi capaz de manter a Cremonese na elite até 1996 – ano em que o clube teve os seus derradeiros grandes momentos. Depois do 10º posto de 1993-94 e do 13º de 1994-95, a equipe não teve forças para ir além de uma terceira temporada na principal categoria do futebol nacional e amargou o descenso graças à penúltima posição. Nesse período, os violini ainda foram fundamentais para o desenvolvimento de Enrico Chiesa e abrigaram o atacante australiano John Aloisi, que faria carreira nas ligas da Inglaterra e da Espanha.
A queda, após um período frutífero na elite, terminou sendo brutal para a Cremonese, que caiu para a quarta divisão em apenas quatro anos. Doente e já sem vontade de seguir em frente com o projeto, Luzzara se afastou da direção em 1999, embora só tenha conseguido passar as suas ações adiante em 2002. O redimensionamento do clube fez com que suas receitas caíssem bastante, mas Menico deixou as contas em dia para o seu sucessor. Um herdeiro que, aliás, conhecia bem: era Gualco, ex-jogador grigiorosso. Simoni e Rampulla, aos quais também foi ligado, ainda chegaram a presidir a agremiação tempos depois.
Sem dúvida, a construção de fortes laços foi a maior característica do ex-presidente. As relações que Luzzara estabeleceu durante sua vida se tornaram eternas, principalmente aquelas diretamente emaranhadas com a Cremonese. Menico faleceu em 2006, aos 84 anos, e logo ganhou como homenagem o batismo da praça vizinha ao estádio Giovanni Zini com o seu nome. Dizem que, até os dias de hoje, o seu espírito vaga pelos corredores da sede do clube. Não para assustar, mas para guardar o que um dia já lhe pertenceu.