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Alviero Chiorri, um ‘extraterrestre’ no futebol italiano

Alviero Chiorri. Numa primeira leitura, talvez você não reconheça o jogador pelo nome. Não se avexe: muitos dos mais fieis amantes do futebol italiano em terras brasileiras sequer ouviram falar antes desse meia de características ofensivas. A história, contudo, poderia ser bem diferente, garantem vários ex-companheiros de campos e técnicos que o treinaram. Técnicos como Renzo Ulivieri, Marcello Lippi, Gian Piero Ventura e Fulvio Bernardini afirmaram que Chiorri tinha talento suficiente para ter sido um dos grandes de sua época.

Durante um período que englobou as décadas de 1970, 1980 e 1990, Chiorri conquistou o coração das torcidas de Sampdoria e Cremonese – além de qualquer apreciador de um futebol divertido, criativo e sem amarras. Porque Alviero, mais que um jogador, foi o arquétipo do homem livre, independente, rebelde e que, talvez até por isso, abriu mão de desenvolver qualidades futebolísticas que tinham potencial para dar um passo a mais no esporte. Ele enxergava o esporte mais como diversão do que qualquer outra coisa. Era uma espécie de gênio incompreendido.

Talvez o apelido de Marciano, com o qual ficou conhecido, resuma o modo como era visto. Um jovem com habilidades acima da média e com um comportamento fora do padrão, irreverente, para muitos incompreensível e, por vezes, subversivo. Os primeiros versos de Raul Seixas, na letra de “Maluco Beleza”, são uma boa forma de enxergar Alviero: “Enquanto você se esforça pra ser / Um sujeito normal e fazer tudo igual / Eu, do meu lado, aprendendo a ser louco / Um maluco total, na loucura real”. Em última medida, o meia romano foi também um homem da sua época.

Na década de 1970, a Itália passava pelos anos de chumbo, momento turbulento em sua política. O país via a radicalização de grupos de extrema esquerda contra o governo de coalizão nacional, composto por comunistas, liberais e democratas cristãos, que desenvolviam o nacionalismo industrial na Bota. Além de grupos da esquerda armada, participaram de conflitos violentos nas ruas grupos neofascistas e mafiosos.

Os resultados desse processo de radicalização foram cerca de 12 mil atentados, 15 mil presos e muitos assassinatos, inclusive de destacados líderes políticos que apoiavam o governo – como o democrata cristão Aldo Moro, primeiro-ministro em cinco governos, que foi sequestrado e assassinado pelo grupo de guerrilha comunista Brigada Vermelha. Eram tempos de contestação do sistema capitalista e da sua gerência na Itália. Ao seu modo, Chiorri também buscou romper padrões no seu espaço de atuação, o futebol.

Chiorri chegou cedo à Samp, onde teve lampejos de genialidade (Museo Sampdoria)

Os anos na Sampdoria

Chiorri nasceu em março de 1959, em Roma. Começou a jogar um futebol vistoso já na adolescência e logo se destacou nas categorias de base da Pro Roma, sendo contratado pela Sampdoria em 1975, com apenas 16 anos. A estreia de Il Marziano pelo time profissional da Samp ocorreu em junho de 1976, quando ele ainda tinha 17.

Alviero entrou em campo pela equipe adulta doriana em partida contra a Fiorentina, válida pela Coppa Italia de 1975-76. O duelo terminou empatado em 3 a 3 e a Sampdoria não avançou no torneio, mas a partir daquele jogo, Chiorri passou a ser reconhecido como um meia-esquerda driblador, veloz e de grande habilidade. Naquele embate, foi marcado pelo bom defensor violeta Moreno Roggi, que saiu de campo desmoralizado.

O canhoto usou e abusou dos dribles, dos gingados e fintas para cima de Roggi, tanto que, segundo lembra o meia-esquerda da Sampdoria, ouviu gritos vindos do ídolo da Viola, Giancarlo Antognoni, que pedia que terminassem logo com aquilo. “Eu era um menino maluco, naquele dia consegui tudo. A certa altura alguém vem atrás de mim: ‘pessoal, chega, acaba com isso’. Era Antognoni”, garante.

Alviero não abria mão da sua subversão, que não se restringia aos gramados. Ele relembra outro momento em que desafiou os padrões do período, quando convocado pelo técnico Eugenio Bersellini para passar o retiro de verão em 1976 com o time profissional da Sampdoria. “Era uma daquelas apresentações oficiais onde você chega de uniforme, elegante e preciso. Eu apareci com três brincos, uma corrente de ouro, bermuda e sandálias. Fui direto da praia… não entendia que eu era um profissional. Eu tinha uma cabeça diferente. Eu só queria me divertir e fiz isso, dentro e fora do campo”. Ao ver a cena, Bersellini, o Sargento de Ferro, mandou logo o jovem ir se trocar.

Eram tempos difíceis para o clube genovês, que apostava na experiência de jogadores como o ótimo líbero Marcello Lippi e num elenco formado por jovens atletas. Em 1976-77, Alviero, então com 17 anos, estreou na Serie A, na primeira rodada, contra o Torino e viu seu time sair derrotado. Era o prenúncio de uma campanha desastrosa para os blucerchiati, que terminaram a temporada na 14ª posição e foram rebaixados.

Em um mar de dificuldade financeira e escassas contratações, a Sampdoria caiu para a Serie B e o jovem “marciano” foi junto. De origens metade proletárias e metade burguesas, o clube genovês pendia mais para o operariado nesse período e dependia muito dos jovens em seu elenco. Para o meia canhoto, a temporada havia sido de destaque, pela grande capacidade técnica e criativa apresentada e pelos dois gols em apenas oito jogos na primeira divisão.

Foi também em 1977 que Chiorri conquistou a Copa Viareggio, um dos mais importantes torneios juvenis da Europa. Sua genialidade foi tão facilmente observável que Alviero foi chamado para integrar a seleção italiana na Copa do Mundo Sub-20 de 1977, a primeira da história, que seria realizada na Tunísia. O “extraterrestre” não aceitou o convite. O motivo? Já tinha combinado de passar as férias com uns amigos na praia. O romano sabia que tal atitude dificultaria muito seu possível futuro na Nazionale, mas quem disse que o romano era de fazer muitos planos para o futuro?

Durante sua militância em Gênova, o jogador divertia a torcida, mas não conseguia ser regular (Arquivo/Sampdoria)

Em 1977-78, Bersellini foi para a Inter e quis levar junto o jovem meia, mas seus planos foram frustrados. Magnata do ramo do petróleo, Paolo Mantovani, dono da Pontoil, anunciou seu interesse em presidir a Sampdoria e investir muito dinheiro no clube: uma das condições para que isso acontecesse seria manter Chiorri no time, o que aconteceu. Para o canhoto, não seria ruim de forma alguma. Permaneceu perto de uma torcida que se apegou a ele, ajudou o time na recuperação na Serie B e ficou longe dos holofotes que não queria sobre si – algo que não conseguiria em um clube como a Inter. E claro, após as partidas, sempre saía para curtir a noite nos bares com os companheiros e ouvir boas bandas de rock locais.

Era com esse espaço de liberdade que o irreverente meia conseguia mostrar seu melhor futebol. Seus anos pela Sampdoria na Serie B, entre 1977 e 1981, foram os da consolidação de seus dribles, fintas, gols, assistências, cabeçadas, cobranças de falta e tantos outros recursos que possuía. Nessas quatro temporadas, guardou 27 gols e colecionou grandes atuações. As suas duas últimas campanhas (1979-80 e 1980-81) foram as maiores: anotou oito vezes em cada uma delas. Em 1981, inclusive, em jogo contra o recém-rebaixado Milan, chegou a aprontar para cima de Franco Baresi e Fulvio Collovati e ainda fez o gol da vitória dos blucerchiati sobre os rossoneri.

Depois das ótimas apresentações do canhoto, Mantovani – que comprara o clube em 1979 – decidiu emprestar Chiorri para o Bologna, para jogar a Serie A na temporada 1981-82, em uma tentativa de valorizar o jogador a nível nacional. Pelos rossoblù, Alviero não decolou, diferente do que esperava o presidente. O meia de propensões ofensivas chegou para jogar mais avançado e fazer um trio de frente poderoso no Bologna, ao lado de Marco Macina e Roberto Mancini, mas não foi o que aconteceu.

O time treinado por Tarcisio Burgnich não engrenou. O Marciano, apesar de estrear com gol no empate contra o Cagliari, sofreu uma lesão no púbis, em outubro, e teve o restante da sua temporada comprometido: só conseguiu jogar 13 dos 30 encontros da Serie A. Macina, por sua vez, não correspondeu às expectativas e anotou poucos tentos. Apenas Mancini conseguiu se destacar, marcando nove vezes. A campanha terminou com o Bologna rebaixado pela primeira vez em sua história e com uma possível convocação de Alviero para a seleção de 1982 sendo frustrada por conta da sua lesão.

Em 1982-83, Mantovani repatriou Chiorri e ainda levou Mancini para a Sampdoria, que havia retornado à Serie A. Jogando como ponta-esquerda e formando o ataque junto ao lado de Mancio e Trevor Francis, o Marciano atuou em 24 das 30 partidas na Serie A, mas, apesar das boas apresentações, marcou apenas um gol – o centroavante inglês balançou a rede sete vezes e Mancini, quatro.

O próprio técnico Ulivieri começou a preterir o extraterrestre. Até que, na temporada 1983-84, o meia canhoto amargou o banco na maioria dos jogos na Serie A: foi utilizado apenas em nove ocasiões. Para o projeto de Mantovani, que almejava tornar a Sampdoria campeã nacional, era necessário contratar mais jogadores que decidissem partidas e garantissem resultados para o clube genovês.

Portanto, no verão de 1984, o presidente contratou o jovem talento Gianluca Vialli, que se tornaria um dos grandes ídolos dorianos. Parte do pagamento para a Cremonese incluía Chiorri, utilizado como moeda de troca. Na ocasião da transferência, Mantovani chegou a afirmar que Alviero foi a maior desilusão da vida dele.

Após passagem pela Sampdoria, Chiorri foi ídolo na Cremonese (Ivano Frittoli)

Os anos na Cremonese

As ásperas palavras do presidente da Samp não atingiram Chiorri. Para quem encara o futebol como divertimento, não existem expectativas não correspondidas. E, na Cremonese, qualquer uma delas certamente foi superada. Lá, Alviero se tornou ídolo da torcida e, se não conquistou títulos, viveu momentos marcantes na história do clube, pelo qual encerraria sua carreira, oito anos depois.

A temporada de 1984-85 não foi boa, mais uma vez por conta de uma lesão que tirou o jogador de toda a segunda metade da Serie A – que terminou com a equipe rebaixada para a segunda divisão. Inclusive, esta é uma marca negativa na trajetória do Marciano: experimentou rebaixamentos em todos os três clubes que defendeu.

Apesar disso, caiu nas graças da torcida nos anos entre 1985 e 1988, quando conseguiu jogar regularmente, disputando a Serie B. Nesse ínterim, colecionou belas partidas pelos grigiorossi, marcando 18 gols e ajudando a equipe a conquistar o acesso à primeira divisão na Serie B de 1988-89. Ao mesmo tempo, esta também foi uma campanha complicada para Chiorri, porque ele desenvolveu um complicado quadro de depressão. O jogador passou dias sem conseguir levantar da cama, sem ter gosto de jogar e tendo alucinações. Para ajudar a controlar a doença, precisou tomar fortes medicamentos, que aumentaram o seu peso.

Em entrevista ao Corriere dello Sport, Chiorri afirmou que não até hoje não conhece o motivo dessa depressão. “Talvez o peso de ter suportado um mundo que não era meu por muitos anos. A inveja, a pressão, a comparação com os outros. Eu não me divertia mais. Eu não me encontrei mais”, afirmou. Palavras de um sujeito que optava por uma vida simples, mas que estava em um ambiente de cobranças, fortes expectativas e competição com outros jogadores. Tudo o que Alviero não desejava atrair para si.

Em Cremona, o Marciano alternou anos nas séries A e B (Ivano Frittoli)

Depois de quatro meses de tratamento, o Marciano conseguiu voltar aos gramados, e em partida decisiva: o playoff de promoção para a Serie A, no dia 25 de junho de 1989, contra a Reggina. A partida terminou sem gols e ele já tinha sido colocado em campo pelo técnico Bruno Mazzia aos 69 minutos do segundo tempo. Nos pênaltis, as lembranças dos momentos difíceis de depressão pesaram na mente do jogador, que desperdiçou a sua cobrança. Logo na sequência, o goleiro Michelangelo Rampulla disse, em seu ouvido, que não se preocupasse: garantiu que iria defender os pênaltis. Pegou dois. Assim, os grigiorossi subiram de divisão e aquela partida representou uma libertação para Chiorri: ele a descreveu como um renascimento.

Chiorri jogou boa parte da Serie A de 1989-90, marcou dois gols e deu duas assistências, mas o time foi novamente rebaixado. Na segundona, novamente foi titular na maioria dos jogos e ajudou a equipe a voltar para a primeira divisão. Em 1991-92, foi reserva de Gustavo Dezotti e de Matjaz Florijancic e entrou em campo apenas 15 vezes na temporada em que encerrou a carreira – com mais um descenso, inclusive. A despedida ocorreu em jogo contra sua querida Sampdoria, o qual relembra com grande emoção, já que foi bem recebido pela torcida blucerchiata, que entoou cânticos e reservou aplausos para seu ex-jogador.

As sucessivas subidas e descidas da Cremonese podem ser uma metáfora do que foi a carreira do Marciano, composta de momentos em que era visto com grande potencial e períodos em que sua mentalidade e seu estilo de vida não lhe permitiam ir muito além. Para a torcida grigiorossa, no entanto, os altos tiveram mais valor e as oito temporadas de Alviero na equipe, marcadas pelos dois acessos conquistados, falaram mais alto.

As próprias características da personalidade de Chiorri, que em outros clubes de maior expressão seriam mal vistas, foram incorporadas à figura do herói dos acessos de 1988-89 e 1990-91. Amante das noitadas, legítimo frequentador de barzinhos e mulherengo de primeira linha, Alviero até hoje é visto pela torcida da Cremonese como um gênio das massas. Gente da gente, embora com um talento que parecia ter vindo de outro planeta.

Aos 33 anos, depois de um período complicado, Chiorri se aposentou e decidiu levar vida tranquila longe da Itália (imago)

A aposentadoria

Após a aposentadoria, Chiorri foi respirar os ares de um dos países mais rebeldes e românticos, no sentido revolucionário, daquela época: Cuba. Haveria um lugar melhor para um subversivo do que uma pequena ilha que se libertou do controle autoritário da maior potência imperialista do século XX? Em Havana, o italiano se conectou com o estilo de vida que sempre quis.

Alviero chegou ao país caribenho em 1994 e morreu de amores pelo lugar: teve, inclusive, dois filhos em relacionamentos com duas mulheres cubanas, que se somaram ao primogênito nascido em Gênova, na época de seu primeiro casamento. Em Cuba, conseguiu distância do mundo do futebol italiano e atraiu as atenções por outros motivos que não a fama. Gaba-se de ser muito conhecido no histórico bar Floridita, o qual frequentou por muito tempo nas noites de Havana, mas não abandonou os gramados totalmente.

O ex-jogador ainda acompanhava os jogos da Sampdoria na década de 1990, costumava viajar para a Itália para ver os familiares e continuou a jogar – por diversão, como sempre. Em entrevista à Gazzetta dello Sport, contou jogar com frequência pelo Tricolor, time de italianos que vivem em Cuba, pelo qual disputou um torneio de veteranos de mais de 40 anos. Em 2007, o uniforme do time foi a camisa azul da Nazionale, mandada para ele por Lippi, ex-companheiro de Sampdoria e recém-campeão mundial.

Entre as frases elogiosas sobre o talento de Chiorri – e sobre o quanto ele não o utilizou competitivamente – talvez a que mais defina o ex-jogador seja a de Ulivieri, seu treinador em tempos de Sampdoria. “Ele englobava tudo nas suas jogadas, era brilhante. [Roberto] Baggio e [Roberto] Mancini também, mas ele um pouco mais. Dentro desse jogador estava o poeta, o artista e também o escultor”, afirmou. E o próprio meia canhoto parece concordar, sem arrependimentos: “Se eu tivesse a cabeça de [Francesco] Totti e [Alessandro] Del Piero não teria sido Alviero Chiorri”. E, para o bem do universo futebolístico e de suas boas histórias, aquele marciano não abraçou a normalidade.

Alviero Chiorri
Nascimento: 2 de março de 1959, em Roma, Itália
Posição: meia-atacante
Clubes: Sampdoria (1976-81 e 1982-84), Bologna (1981-82) e Cremonese (1984-92)
Títulos: Copa Viareggio (1977)

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