Jogos históricos

Ronaldo ‘derreteu’ um campo congelado em Moscou para levar a Inter à glória europeia, em 1998

A Inter viveu um ano especial em 1997-98, depois de investimentos falhos e resultados decepcionantes no início da segunda era Moratti – tocada por Massimo, filho de Angelo, presidente do período mais vencedor da história do clube até então, na década de 1960. A gestão, iniciada três temporadas antes, conquistou o seu primeiro título, e a terceira Copa Uefa nerazzurra em menos de um decênio, repetindo os triunfos de 1991 e 1994. No caminho para a glória, a Beneamata pode desfrutar um show brasileiro na gelada Moscou.

Em 1991 a Inter contava com a mão de ferro de Giovanni Trapattoni e a liderança do trio alemão formado por Lothar Matthäus, Jürgen Klinsmann e Andreas Brehme; em 1994, o caos societário da temporada nerazzurra foi compensado pelo talento dos atacantes Dennis Bergkamp e Rubén Sosa, além dos volantes Nicola Berti e Wim Jonk, decisivos nas finais. Já em 1998, quem mudou o time de patamar foi a maior contratação do futebol naquele momento: Ronaldo, que se tornaria “O Fenômeno” justamente pelo impacto em Milão.

Com Ronaldo no auge, a Inter chegou a uma Moscou gelada para encarar um bom time do Spartak (Arquivo/Inter)

Junto com o craque brasileiro, também chegaram à Inter, em 1997, Diego Simeone, Zé Elias, Álvaro Recoba, Luigi Sartor, Taribo West, Benoît Cauet e Francesco Moriero. Esses atletas reforçavam um elenco que já contava com figuras consagradas como Gianluca Pagliuca, Giuseppe Bergomi, Javier Zanetti, Youri Djorkaeff e Iván Zamorano. Sob o comando do carismático Luigi Simoni, que abraçou os veteranos e contou com a garra e determinação dos coadjuvantes, o time encaixou e a genialidade de Ronaldo floresceu.

Apesar disso, o caminho até a glória europeia foi tortuoso. Depois de passar pelos suíços dos Neuchâtel Xamax com um placar agregado de 4 a 0, a Inter viveu muito drama e precisou de algumas viradas emocionantes até as quartas de final. Na segunda etapa da competição, depois de perder em casa por 2 a 1 para o Lyon, a equipe nerazzurra se recuperou com uma vitória por 3 a 1 no Gerland. De volta à França nas oitavas, desta vez contra o Strasbourg, a Beneamata perdeu por 2 a 0, mas triunfou por 3 a 0 em San Siro.

Neve e muita lama: este era o estado do gramado do estádio Central do Dínamo, em Moscou (Arquivo/Inter)

Já nas quartas, aconteceu a vingança contra o Schalke 04, que derrotara a Inter na decisão da competição na temporada anterior. Depois de vencer em casa por 1 a 0, com gol de Ronaldo, o time italiano sofreu a derrota no tempo normal na Alemanha já nos acréscimos. Contudo, no primeiro ataque da prorrogação, West marcou e colocou os nerazzurri nas semifinais da Copa Uefa. A Beneamata enfrentaria o Spartak Moscou, campeão russo, que eliminara Sion (placar agregado de 6 a 1), Valladolid (4 a 1), Karlsruhe (1 a 0) e Ajax (4 a 1). Sem dúvidas, os alvirrubros tinham uma campanha muito respeitável.

Pelo lado da Inter, o avanço na Copa Uefa contrastava com a amarga perda do simbólico título de campeão do inverno da Serie A para a Juventus e a vexatória eliminação na Coppa Italia, para o Milan. Esses contratempos, no entanto, foram substituídos por uma arrancada a partir de março. Em nove jogos, foram oito vitórias, das quais sete seguidas, incluindo os triunfos que os nerazzurri conseguiriam sobre o Spartak Moscou nas semifinais europeias. O primeiro, por 2 a 1 em Milão, teve gol decisivo de Zé Elias no último minuto do tempo complementar.

Gramado impraticável e jogo físico do Spartak Moscou não foram suficientes para parar Ronaldo (Sport-Express)

Duas semanas depois, o jogo da volta aconteceu em uma Moscou muito fria, que atravessava temporada de intempéries. A Inter aterrissou na Rússia no domingo de Páscoa, 12 de abril de 1998, e tentou se ambientar ao clima da capital durante o curto período de treinamentos que sucedia a partida, marcada para terça, 14. Sob temperatura negativa, uma delegação superagasalhada, com direito a Ronaldo de ushanka, o tradicional gorro russo, conseguiu até fazer turismo na Praça Vermelha. As atividades esportivas, contudo, aconteceram apenas em quadras cobertas.

O motivo caía do céu. Por dois dias, Moscou foi atingida por uma nevasca que provocou muitos transtornos. O aeroporto da cidade ficou fechado e nem Moratti, presidente nerazzurro, e Giacinto Facchetti, diretor esportivo, conseguiram viajar – o primeiro ficou preso em Viena, na Áustria, o segundo, em Vilnius, na Lituânia; com atraso, somente o proprietário do clube pousaria na Rússia. Além disso, o gramado do estádio Central do Dínamo ficou coberto por cerca de 40 centímetros de neve e, durante toda a manhã de terça, o adiamento do jogo esteve no horizonte. Havia, ainda, muito gelo nas arquibancadas e sobre as estruturas de concreto da arena, o que oferecia perigo aos torcedores.

Ronie teve vida complicada na etapa inicial, mas transformou o “campo de batatas” russo num terrão à brasileira (Reuters)

A Uefa, contudo, não adiou a partida. Não nevou no restante do dia e a diretoria do Spartak Moscou garantiu que poderia deixar o estádio pronto para a bola rolar. O clube buscou a ajuda do exército russo, que limpou a área e, em quatro horas de trabalho, jogou a neve para a beira do campo. Apesar dos esforços dos milicos, o terreno estava em condições deploráveis. A grama já não existia mais. Tudo era lama e serragem.

Apesar do “gramado” estar longe do ideal para a prática esportiva, os donos da casa pareceram confortáveis a partir do momento em que o árbitro Hugh Dallas apitou o início do jogo. A Inter, por sua vez, entrou em campo sem sequer fazer o reconhecimento do terreno. Isso ficou evidente nos primeiros 45 minutos de confronto.

Esperto, Ronaldo aproveitou sobra da defesa russa para abrir o placar para os nerazzurri (Arquivo/Inter)

O início do jogo foi de muita pressão do Spartak Moscou, que correu atrás da derrota sofrida na Itália. Depois de alguns sustos e intervenções de Pagliuca, os russos finalmente conseguiram superar o bloqueio nerazzurro aos 12 minutos, com Andrey Tikhonov, que deixou Zanetti na saudade e também contou com a colaboração do arqueiro interista. O gol acendeu de vez a partida, mesmo com o gramado cada vez pior a cada pisão e carrinho. Os alvirrubros, melhores em campo, não se importavam e cresciam: o brasileiro Robson, por exemplo, teve boa chance de marcar.

No final da etapa inicial, no entanto, a sorte dos visitantes começou a mudar. Depois de muita insistência de Simeone e jogada de Moriero pela direita, a bola levantada na área sobrou para Ronaldo, oportunista, deixar tudo igual e dar tranquilidade para o time da Inter na ida para o vestiário. No retorno, mais pressão dos anfitriões, desesperados atrás do prejuízo e em busca de pelo menos um gol para igualar o placar agregado e evitar a eliminação em casa.

O Fenômeno humilhou a defesa russa antes de marcar o segundo gol dos nerazzurri em Moscou (Arquivo/Inter)

A resposta de Simoni foi recuar ainda mais o time, ao colocar o zagueiro Salvatore Fresi no lugar do ponta Moriero, deixando a formação interista com quatro zagueiros de origem e mais dois laterais. Mas havia, claro, espaço para contragolpes, apostando na velocidade de Ronaldo, que já havia se ambientado ao terreno acidentado e parecia atuar numa pelada em campo de terra batida, como milhares espalhados pelas periferias brasileiras.

Aos 75 minutos, então, o Fenômeno resolveu mais uma vez o drama de sua equipe e, em uma das jogadas mais emblemáticas da sua carreira, anotou a doppietta para assegurar definitivamente a classificação milanesa. Após arremesso lateral de Sartor, o camisa 10 interista tirou dois marcadores e tabelou com Zamorano na entrada da área. Quando recebeu de volta, com apenas um toque tirou outros dois russos do lance e, ao seu melhor estilo, driblou o arqueiro Aleksandr Filimonov antes de finalmente fazer um gol antológico em um campo impossível. Ronie ainda teve a chance de guardar o terceiro com uma cavadinha, mas a bola raspou a trave. Com a missão cumprida, o brasileiro deu lugar para o prodígio Recoba.

Com a classificação assegurada para a decisão de Paris no dia 6 de maio, contra a Lazio, a Inter continuou sua caça à Juventus, apenas um ponto na frente na briga pela Serie A. Até o fatídico jogo do dia 26 de abril no Delle Alpi, em que os bianconeri encaminharam o scudetto após um dos lances mais polêmicos e discutidos do futebol italiano. Nada que tenha tirado o foco do time de Milão, que na semana seguinte confirmou o tricampeonato da Copa Uefa, com novo show de Ronaldo e companhia.

Spartak Moscou 1-2 Inter

Spartak Moscou: Filimonov; Gorlukovich, Ananko, Romaschenko, Khlestov, Evseev (Buznikin); Tikhonov, Alenichev, Titov, Tsymbalar; Robson. Técnico: Oleg Romantsev.
Inter: Pagliuca; Sartor, Colonnese, Bergomi, West; Moriero (Fresi), Cauet, Simeone, Zanetti; Zamorano (Kanu), Ronaldo (Recoba). Técnico: Luigi Simoni.
Gols: Tikhonov (12’); Ronaldo (45’ e 76’)
Árbitro: Hugh Dallas (Escócia)
Local e data: estádio Central do Dínamo, Moscou (Rússia), em 14 de abril de 1998

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