A relação da Holanda com o Milan é antiga e rendeu frutos positivos. Afinal, entre os melhores e mais marcantes jogadores da história do clube rossonero estão os heróis Marco van Basten, Ruud Gullit e Frank Rijkaard. Graças à identificação com o time e às glórias, o trio foi eternizado e é lembrado com carinho até por torcedores que não acompanharam a sua odisseia.
Devido ao sucesso dos craques, o Diavolo tentou recriar uma colônia de atletas provenientes dos Países Baixos em meados da década de 1990, mas viu o tiro sair pela culatra. O grande exemplo do fracasso da empreitada foi o zagueiro Winston Bogarde, que amargou o banco de reservas e ainda se tornou um estorvo para Barcelona e Chelsea, outros clubes que também desenvolveram próspera ligação com neerlandeses.
O destaque dentro da Holanda
Bogarde decidiu seguir carreira no futebol inspirado pelo jogo entre Brasil e União Soviética, na Copa do Mundo de 1982. Nascido em Roterdã, em 1970, o garoto teve uma adolescência muito indisciplinada e só se encontrou, de certa forma, no esporte. No final da década de 1980, foi descoberto pelo SVV, clube da região metropolitana da cidade e militante na segunda divisão nacional.
O time era treinado por Dick Advocaat e conseguiu chegar à elite, mas tinha muitas dívidas e precisou negociar alguns atletas para saná-las – antes de se fundir a outra agremiação e se tornar Dordrecht ’90. Winston foi um dos sacrificados e, após deixar o SVV, passou por Excelsior e Sparta, ambos de Roterdã. Foi pela segunda dessas que o zagueiro canhoto teve a virada de chave em sua carreira.
Apesar de jogar na defesa, o neerlandês tinha boa presença na área e poder de explosão pelas pontas, oriundos do fato de ter sido ponta nas categorias de base – dessa forma, acabou sendo utilizado às vezes como lateral-esquerdo. Assim, Bogarde anotou 19 gols em 69 partidas e chamou a atenção dos dirigentes do Ajax, em 1994. Após quase quatro anos de Sparta, chegava o momento de alçar novos voos e encarar desafios na capital dos Países Baixos.
O Ajax era um dos melhores times da Europa e vivia anos gloriosos dentro e fora da Holanda. Sob o comando de Louis van Gaal, Bogarde precisaria dar seu melhor para se destacar em uma equipe vencedora, e que disputava as maiores competições da época. Apesar da pressão, era um momento importante de aprendizado, já que dividiria vestiário com jogadores como Rijkaard.
Sem muitas firulas, Bogarde era um “zagueiro zagueiro”, que contava mais com a sua força física – e não exatamente com a técnica, como os seus colegas de time. Logo em 1994-95, seu primeiro ano no Ajax, Winston ganhou a Liga dos Campeões, superando o Milan na final. No entanto, não teve o destaque que desejava e ficou no banco de reservas, como opção a Danny Blind e Frank De Boer.
Apesar de pouca minutagem na competição europeia, Bogarde foi acionado com frequência no campeonato nacional e participou de dois títulos da Eredivisie. Também ganhou chances na seleção holandesa e, devido ao corte de De Boer, foi titular na Euro 1996, marcada pela cisão no grupo laranja – um conflito com pano de fundo étnico e cultural, mas fincado em insatisfações pertinentes ao elenco do Ajax, base da convocação de Guus Hiddink.
A curta passagem pelo Milan
Em 1997, depois de 91 aparições pelo Ajax, Bogarde chegou com expectativas ao Milan. Na janela de transferências do verão anterior, o clube já havia ido ao gigante holandês para buscar o lateral-direito Michael Reiziger e o volante Edgar Davids, e completava a obra com as contratações de Winston e de Patrick Kluivert, ambas a custo zero.
Todos carregavam o peso da herança deixada pelos compatriotas Gullit, Rijkaard e Van Basten. Para a torcida rossonera, os novos “laranjas” representavam a continuidade dos tempos de ouro, ainda que fossem jovens em busca de consolidação, o que não era o caso do trio de craques que passara pelo Milan. No entanto, a realidade seria bem diferente – e dura.
Reiziger e Kluivert duraram apenas um ano em Milanello, enquanto Davids permaneceu por 18 meses. Bogarde, por sua vez, ficou menos tempo ainda no clube: fez apenas quatro jogos com a camisa rossonera e, em dezembro de 1997, foi repassado ao Barcelona.
Impressionar o técnico Fabio Capello era uma tarefa difícil. Como havia a concorrência de Paolo Maldini e Christian Ziege na lateral esquerda, restava a Bogarde atuar mesmo na zaga ou até improvisado no flanco direito, como o treinador chegou a testar. Don Fabio até tentou lapidar a joia holandesa da melhor forma possível, mas o beque se esforçou em falhar miseravelmente.
Em uma de suas primeiras partidas, num amistoso, Winston levou um cartão vermelho após uma falta dura. Não era o que se esperava do jogador que demonstrava talento para chegar ao gol e consistência defensiva durante seu período nos Países Baixos. Já com a temporada em andamento, Bogarde teve a sua inserção no time bem planejada por Capello: seria mantido no banco de início, para que pudesse se adaptar aos poucos, mas receberia chances no decorrer das pelejas.
Bogarde estreou na segunda rodada da Serie A, entrando reta final de um empate por 1 a 1 com a Lazio, em San Siro. Na semana seguinte, ganhou mais minutos e, após o intervalo, substituiu Ibrahim Ba no duelo com a Udinese. Sua função seria atuar na lateral esquerda, liberando Ziege para o meio-campo.
A partida estava empatada em 1 a 1 e assim permaneceu até os 85 minutos, quando Bogarde foi decisivo. Se, no primeiro tempo, o zagueiro Valerio Bertotto havia dado um presentaço para Kluivert inaugurar o placar para o Milan, o defensor resolveu ser ainda mais generoso do que o adversário: recebeu de Massimo Taibi e, sem qualquer pressão, tentou devolver a bola ao goleiro. No entanto, errou o recuo, e por muito. Oliver Bierhoff aproveitou, anotou sua doppietta e definiu o placar.
Como se não bastasse o erro crasso, que resultou em gol e derrota, Bogarde ainda deu uma amostra de seu temperamento arredio. Quando repórteres tentaram lhe fazer perguntas sobre a falha, o zagueiro reagiu com gestos obscenos. A reação explosiva do atleta não repercutiu bem, obviamente. Para preservá-lo, Capello lhe manteve no banco ao longo das três semanas seguintes.
O futebol italiano é conhecido por ser uma escola de zagueiros, mas Bogarde não tinha muito interesse de aprender nada. O defensor ainda recebeu outras chances de ser moldado por Capello, mas não alcançou o rendimento esperado nos jogos contra Lecce e Sampdoria – neste último, pela Coppa Italia, foi titular e acabou sacado no intervalo. Winston não gostava da neblina constante e do frio de Milão, de modo que não se empenhava para continuar a viver na cidade.
Winston estava longe de mostrar o desempenho dos tempos de Ajax e ficou claro para a diretoria que ele não conseguiria vingar no Milan. Assim, depois de apenas quatro jogos, em dezembro de 1997, o holandês foi negociado por 7 bilhões de velhas liras com o Barcelona. Ao menos, rendeu ao Diavolo um bom lucro – o que lhe exclui da lista de piores negócios da história rossonera.
A reta final de carreira
No Barça, Bogarde se reencontraria com Van Gaal e Reiziger, e ainda teria a companhia de outros compatriotas, como o goleiro Ruud Hesp. No primeiro ano na Catalunha, conseguiu certo destaque, diferentemente do seu momento na equipe italiana, e foi convocado para a Copa do Mundo de 1998. Winston atuou em duas partidas da fase de grupos e só não foi escalado no lugar do suspenso Arthur Numan, na semifinal, contra o Brasil, porque sofreu séria lesão no queixo.
Bogarde foi perturbado por lesões durante o restante de sua passagem pelo Barcelona e, em 2000, rumou ao Chelsea, clube em que teve a companhia dos compatriotas Ed De Goey, Mario Melchiot e Jimmy Floyd Hasselbaink. De início, foi treinado pelo italiano Gianluca Vialli, que pediu a sua contratação, mas o ex-atacante terminou demitido pouco tempo depois. Claudio Ranieri, seu substituto, já não tinha o mesmo apreço pelo holandês e o descartou do projeto.
Desde a troca no comando, o Chelsea fez de tudo para Bogarde rescindir o contrato: barrou-o do grupo principal, mandou-o treinar com o time B. O intuito era se livrar do alto salário que pagava 40 mil libras por semana. Mas Winston cumpriu integralmente o contrato, que durou até 2004. Terminou atuando apenas 12 vezes ao longo de quatro temporadas.
Como não havia clube que pagasse o que ele queria, o holandês ficou no Chelsea sem reclamar, mesmo sem entrar em campo. Questionado sobre a falta de ambição, ele desdenhou: “Por que eu deveria jogar 15 milhões de euros fora? No momento em que assinei, era meu contrato, meu dinheiro”, afirmou. Já perto de se aposentar, Bogarde desdenhou de novo. “O dinheiro manda nesse mundo, então, quando você recebe uma oferta de milhões, tem de aceitar. Poucas pessoas ganharão tanto algum dia na vida delas. Sou um desses poucos privilegiados. Posso até ser uma das piores transações da história da Premier League, mas não ligo”.
Em 2004, após o fim de seu contrato com o Chelsea, Bogarde encerrou a sua carreira e abriu uma gravadora de álbuns musicais – além de ter lançado uma autobiografia. Apesar de ter recebido tantos milhões, em 2011 chegou a ter sua casa penhorada por conta de dívidas não pagas. Outra questão que evidenciou as contradições da vida do ex-atleta foi a reprovação nas primeiras tentativas de obter o diploma de treinador.
Eventualmente, o eterno flop do Milan conseguiu ser aprovado no curso de técnico de futebol e se tornou auxiliar no Ajax – primeiro, do time B; depois, do principal. Além disso, sua família segue representada dentro dos campos: Winston é tio dos jogadores profissionais Melayro e Lamare Bogarde, e ainda de Danilho Doekhi.
Colaborou Felipe dos Santos Souza, do Espreme a Laranja.
Winston Lloyd Bogarde
Nascimento: 22 de outubro de 1970, em Roterdã, Países Baixos
Posição: zagueiro e lateral-esquerdo
Clubes: SVV (1988-90), Excelsior Rotterdam (1990), Sparta Rotterdam (1991-94), Ajax (1994-97), Milan (1997), Barcelona (1998-2000) e Chelsea (2000-04)
Títulos: Eredivisie (1995 e 1996), Liga dos Campeões (1995), Supercopa da Holanda (1995), Supercopa Uefa (1995 e 1997), Mundial Interclubes (1995), La Liga (1998 e 1999) e Copa do Rei (1998)
Seleção holandesa: 20 jogos