Quando falamos de um time que ocupa a 11ª posição na jornada de número 10 do campeonato, sofrendo pressão e protestos severos da torcida, com o técnico fazendo gestos obscenos como resposta à principal organizada dentro de seu estádio, é de se admitir que provavelmente se trata de um caso latino-americano. Surpreendentemente – ou nem tanto para quem vive a realidade no dia a dia – isso aconteceu em novembro de 2023, em Turim, norte da Itália, durante um jogo do Torino.
Não ajudam uma eliminação precoce na Coppa Italia e uma janela de transferências bastante modesta para esta temporada, claro, mas a torcida do Torino está exausta. Mesmo que tente ter esperanças, o torcedor granata não tem mais a palavra “paciência” em seu vocabulário: bastam um revés aleatório e mais uma derrota no Derby della Mole, contra a Juventus, para fazer explodir um paiol que, nos últimos anos, tem demonstrado ser pouco seguro. E o mordomo não é o culpado. Neste caso, é o dono.
Urbano Cairo é um empresário nascido e criado em Milão, que hoje é proprietário de um canal de TV aberta, dos jornais Corriere della Sera, Gazzetta dello Sport, El Mundo e Marca, revistas e de uma grande editora de livros. Em suma, é dono de um colosso das comunicações, tal qual Silvio Berlusconi – de quem foi assistente pessoal no início da carreira no mundo corporativo.
Declarado torcedor do Milan, Cairo chegou a manifestar interesse em adquirir o Torino em 2000, juntamente com outros empresários. Mas foi em 2005, quando o Toro se encontrava falido e na Serie B que o magnata, convencido por Sergio Chiamparino, então prefeito de Turim, desembolsou módicos 10 mil euros para iniciar um processo de reconstrução do clube na condição de novo presidente.
Em seu primeiro ano no comando, Cairo angariou popularidade porque fez o time deixar o estádio Delle Alpi, erguido para a Copa do Mundo de 1990, e voltou a jogar no antigo Comunale, então rebatizado Olímpico. O movimento foi muito bem recebido pelos seus torcedores, já que a história grená passa pelo bairro de Santa Rita, onde a praça esportiva está localizada – e não apenas ela.
Entre 1926 e 1964, durante seu auge, o Torino havia mandado seus jogos no Filadelfia e, de 1964 até 1990, se deslocou por 600 metros ao vizinho Comunale, que também era a casa da Juventus. Após o Mundial, os dois times deixaram Santa Rita e se mudaram para a nova, distante e gélida arena, que não tinha alguma relação com suas respectivas histórias. Cairo não só fazia questão de voltar a jogar no estádio de Santa Rita como também queria reconstruir o Filadelfia, que caiu em desuso.
Seu movimento era fundado na reconexão do bairro reconhecidamente granata com seu time, que precisava do apoio incondicional da torcida. Ao mesmo tempo, os torcedores – que vinham sofrendo com resultados ruins e várias temporadas na segunda divisão desde 1995 – pediam organização, investimento e ambição para que o Torino voltasse a figurar entre os grandes do país e a disputar títulos, como foi praxe em parte considerável de sua história.
O que o torcedor do Torino começou recebendo depois da troca de dono não foi ideal. Apesar do acesso imediato à elite, em 2006, os passos subsequentes envolveram a luta contra o rebaixamento, que acabou acontecendo em 2009, e dois ou até três técnicos por temporada de 2005 até 2011, quando Gian Piero Ventura foi contratado para fazer o time voltar para a mais alta divisão do país. Ali, o projeto pareceu andar. Dois anos depois, o Toro se classificou para a Liga Europa, chegando até as oitavas de final em 2015, época também da primeira vitória sobre a Juventus depois de duas décadas completas de fracassos no Derby della Mole.
O calvário parecia terminar e o Torino estava de fato voltando a brigar pelo topo da tabela na Itália. Até que, em 2016, Ventura fez a infeliz escolha de deixar o Toro para assumir a seleção italiana – uma decisão funesta principalmente para o percurso da Nazionale. Pensando no potencial ofensivo do time, então com Andrea Belotti no comando do ataque, Cairo contratou o técnico Sinisa Mihajlovic, ao passo que alegava cultivar o sonhos de levar a equipe novamente às competições europeias.
O que aconteceu na prática, a partir daquela temporada, representou a tônica do que veio a se repetir nos últimos anos: discursos ambiciosos com janelas de mercado claramente focadas em fazer o time lucrar com venda de jogadores. E não tem nada de ruim nisso se você tem um projeto, uma identidade e uma lógica de crescimento em médio e longo prazo.
Inclusive, neste texto de quatro anos atrás, escrevemos que, de fato, parecia que o Torino estava sanando suas dívidas para construir um grande time. Em 2019, era o que indicavam o sétimo lugar no campeonato, mais uma ótima temporada de Belotti e contratações de peso, como as de Bremer, Simone Zaza, Roberto Soriano e Armando Izzo, para a disputa da Europa League daquela época.
Exatamente meses depois deste texto, Cairo desfez todo o trabalho feito e a estabilidade adquirida nos últimos anos. Patrocinou aquisições erráticas no mercado, muitas vezes por empréstimo ou a custo zero, demitiu técnicos no meio da temporada e passou a vender bons jogadores prontamente após bom desempenho anual. O time voltou a brigar contra o rebaixamento e só foi se estabilizar em zona intermediária da tabela quando passou a praticar um futebol extremamente reativo e defensivo com Ivan Juric, conhecido anteriormente por aplicar esse estilo de jogo no Verona.
A gota d’água se deu na janela de verão de 2022, quando Cairo vendeu Bremer para a Juventus, sua principal rival, por 41 milhões de euros – Perr Schuurs, adquirido do Ajax por 13 milhões, até foi um bom substituto – e não renovou com Belotti, capitão, ídolo e oitavo maior artilheiro da história do time, para ficar com o paraguaio Antonio Sanabria no comando de ataque.
É senso comum em Turim que o centroavante italiano foi embora não por questões econômicas, pois nunca discutiu um aumento substancial de salário, mas porque sentiu que não tinha um presidente que lhe assegurava que iria melhorar o elenco e muito menos um cartola que lhe apoiava como pessoa. Durante as tratativas por uma eventual renovação, Cairo sempre mencionava que estava oferecendo dinheiro até demais e que Belotti precisava se curar das lesões para merecer ainda mais do que o montante oferecido.
Além da performance errática nos últimos anos, que o fez ser chamado de presidente com o braço curto, dada a total falta de ambição e investimentos, Cairo é bastante cobrado pela falta de evolução nos projetos de infraestrutura do Toro. Estava previsto inicialmente que o estádio Filadelfia – um museu a céu aberto, com elementos da praça que deu vida ao Grande Torino, como arquibancadas antigas que foram mantidas ou até uma pintura no muro que indica o guichê da bilheteria que funcionava na década de 1940 – seria apenas a sede de um museu do time, com troféus, fotos e peças do elenco histórico que pereceu em acidente aéreo, em 1949. Não o centro de treinamento da equipe principal, função que exerce atualmente.
Existe também um terreno no sul de Turim, concedido pela prefeitura sete anos atrás, que deveria se tornar um CT de alto nível, com integração entre time principal e divisões de base, vários campos, academia e toda a estrutura que o futebol requer atualmente. A obra não saiu do papel até hoje, e o elenco profissional continua treinando no gramado de seu antigo estádio, enquanto os juvenis treinam a 100 km de distância da capital do Piemonte. Vale lembrar que a base do Torino é uma das melhores da Itália, com recordes de títulos nas categorias Primavera e Berretti.
Este escriba tem frequentado o bairro em que fica situado o estádio Olímpico Grande Torino e compareceu a diversos jogos do Toro entre maio e novembro de 2023. Quando o time estava competindo por vaga na Liga Europa no fim da temporada passada, a torcida cultivava paciência, entendimento e dava apoio aos jogadores. Porém, ao primeiro gol sofrido, iniciava críticas imediatas ao presidente, em contraste a alguns cantos de apoio a Juric. Como se fosse um lembrete: o culpado tem nome. E cadeira.
A janela do Torino neste verão europeu foi no mínimo questionável, principalmente por não ter resolvido o sério problema no gol, já que Vanja Milinkovic-Savic segue como titular e sem uma sombra. O cenário em outubro, ou seja, início de uma nova temporada, quando normalmente a torcida tende a ser mais leniente e mostrar que está ao lado do clube, não teve esse tom. Pelo contrário: o grau de hostilidade aumentava a cada jogo e, ainda por cima, lixeiras e postes do bairro Santa Rita foram adesivados com palavras fortíssimas e xingamentos endereçados a Cairo.
No jogo contra o Sassuolo, parecia que o ano havia acabado na 10ª rodada – e a queda na fase de 16 avos de final da Coppa Italia, em casa, contra o Frosinone, parecia servir como estopim para a revolta. Houve protesto antes da partida, com o setor da organizada deliberadamente esvaziado nos primeiros 15 minutos, e gritos contra todos: presidente, técnico e até jogadores sob críticas. Vaias fortíssimas foram direcionados para o goleiro Milinkovic-Savic e o fato mais impactante daquela noite é que muitos torcedores não comemoraram os gols do Torino.
Sim, exatamente, houve torcedores não se levantaram da cadeira para celebrar os gols de Vlasic e Sanabria, que garantiram a vitória por 2 a 1 sobre o Sassuolo, na 11ª rodada. Se ergueram apenas para criticar e gritar impropérios a Milinkovic-Savic ou Zapata, que havia perdido uma grande oportunidade. Pairava no ar uma hostilidade gigantesca, inclusive entre os próprios apoiadores do Torino, o que não é normal.
Ao final do jogo, Juric fez gestos obscenos à torcida, que não aplaudiu nem comemorou o resultado. Por outro lado, isso levou a equipe da casa a sair de campo rapidamente, sem os normais agradecimentos a seus apoiadores. Foi criada uma cena grotesca, na qual o único time no gramado do Olímpico era o Sassuolo, que perdeu e se dirigiu ao setor visitante da arquibancada para fazer o gesto que os jogadores grenás não se encarregaram de praticar.
Existem muitos protestos na Europa contra o preço de ingressos, por exemplo, mas o Torino está entre os clube que cobram menos nesse quesito. Há setores por apenas 10 euros, além de um programa de abbonamenti – equivalente ao sócio-torcedor no Brasil – que dá direito ao comprador de ir a todos os jogos caseiros do time no Campeonato Italiano por apenas 200 euros, um valor inferior até ao cobrado por equipes da Serie B.
Mesmo assim, os granata não só não conseguem encher o seu estádio, como ainda notam, ano após ano na gestão de Cairo, a drástica queda na aquisição dos carnês para a temporada. Na Serie A, o Torino tem o quarto menor número de sócios-torcedores. Não é raro que apoiadores do clube adotem o seguinte discurso para justificarem sua ausência no Olímpico: “desisti desse time depois de um milanista ter virado nosso presidente; volto quando ele for embora”. Certamente a relação da torcida está abalada, remendada e para alguns grenás, sequer existe a possibilidade de melhora em curto prazo.
O texto sobre a gestão do Torino, anteriormente publicado neste mesmo espaço, mostra muito bem como um bom trabalho administrativo não é suficiente no mundo do futebol – principalmente se liderado por um presidente que não confia no projeto, mas apenas o conduz por razões financeiras. Com a pandemia de covid-19, iniciada em 2020, as receitas de todos os clubes foram enormemente impactadas, mas isso não significa que planos devam ser completamente abandonados. Isto não aconteceu com equipes como a Atalanta, que chegou até as quartas de final da Liga dos Campeões, sendo eliminada pelo Paris Saint-Germain de Neymar, e continua obtendo ótimas colocações na Serie A.
A torcida do Toro não sabe por que Cairo abandonou o projeto, largou as lendas que tinham identificação com o time ou principalmente porque o presidente costuma falar e agir como se estivesse fazendo um favor aos grenás. Frases no tom de “vocês deveriam é me agradecer” e “escolhi o Torino porque minha mãe era torcedora do clube” são corriqueiras e deveriam chamar, inclusive, a atenção do torcedor brasileiro.
Agora que entramos na época de transformação de clubes em empresas, através das Sociedades Anônimas do Futebol, as chamadas SAFs, o que protege o torcedor de ter sua paixão comprada por um empresário que não poderia se importar menos com a opinião daqueles que sustentam, de fato, a agremiação? De se sentir sequestrado por um multimilionário que faz o que quiser com a equipe, utilizando-a como um passatempo? Vale ficar atento a isso, ainda que seja verdade que a politicagem do sistema associativo também produza seus raptos – que o diga, por exemplo, a torcida do Bahia, que lutou para despachar a família Guimarães do poder e estabelecer um ambiente democrático na tomada de decisões.
O que vimos dentro do estádio no jogo contra o Sassuolo é muito sério. Tamanha hostilidade literalmente a esta altura do campeonato indica que a paciência dos grenás com Cairo se esgotou – com razão. Uma torcida que ainda tem uma ferida enorme com a tragédia de 1949 não merecia conviver com um presidente que tem agido como se estivesse fazendo caridade e a engana sem escrúpulos, indo de encontro ao que defendeu e até pôs em prática anteriormente.
Em 2019, escrevemos o seguinte: “o Torino não muda de acordo com as necessidades do momento. Existe um projeto de médio prazo e vários elementos sustentam esta estrutura”. A pandemia desmascarou o suposto planejamento do Toro capitaneado por Cairo. Com ou sem lucro, nunca envolveu ou ao menos considerou o elemento mais importante disso tudo: o torcedor.