Encarar a seleção dona da casa numa Copa do Mundo jamais será uma tarefa trivial – mesmo para uma gigante do futebol. Em 1954, a Itália, então bicampeã da competição, foi sorteada no mesmo grupo da anfitriã Suíça e enfrentou os helvéticos em dois jogos, por conta do formato mais pitoresco que o torneio já teve. Foi superada em ambas as partidas e acabou eliminada precocemente. Porém, graças à vil contribuição de um árbitro brasileiro, os azzurri tiveram muitos motivos para reclamar do desfecho do primeiro confronto.
Na Copa de 1954, a Itália caiu no Grupo 4, o único totalmente europeu da competição, ao lado de Inglaterra, Suíça e Bélgica. Entretanto, uma das inovações do regulamento daquele Mundial – que não agradou e jamais foi repetido – previa que as duas seleções sorteadas como cabeças de chave dos seus grupos não se enfrentariam, e cada equipe faria apenas duas partidas nesta etapa do torneio. Neste caso, os azzurri teriam de encarar apenas helvéticos e belgas, nesta ordem.
Em 17 de junho de 1954, a Itália estrearia contra a anfitriã, em Lausanne, com mais dúvidas do que certezas. Primeiramente, a seleção ainda lidava com os impactos diretos do desastre aéreo que vitimou o Grande Torino, um dos maiores times da história do futebol, em 1949, e a fez ficar desfalcada de alguns de seus maiores craques, falecidos no acidente. Além disso, o clima interno não era bom e o técnico Lajos Czeizler estava pressionado.
Um dos poucos técnicos estrangeiros da história da Itália, e o último deles, o húngaro Czeizler enfrentava um desafio e tanto. O ambiente da seleção era muito diferente do que ele teve à disposição no Milan, em seu melhor desempenho na Serie A, quando virou ídolo por encerrar um jejum de 44 anos sem scudetti rossoneri ao comandar o trio formado por Gunnar Gren, Gunnar Nordahl e Nils Liedholm, que levou consigo da Suécia, em seu retorno ao Belpaese, onde já havia trabalhado anteriormente.
Se tudo fluíra naturalmente na Lombardia, na Nazionale ele precisava superar uma corrida de obstáculos. Eram rusgas entre diretores e atletas, cartolas que tentavam impor vontades e até escalações, jogadores cheios de caprichos e cobranças de uma imprensa clubista, que não respeitava o código de ética profissional e fazia análises enviesadas, a depender dos times pelos quais atuavam determinados convocados.
Para a estreia, Czeizler certamente desagradou os jornais de Florença, pois deixou de fora os jogadores da Fiorentina, terceira colocada da Serie A 1953-54, e apostou seis de suas 11 fichas na Inter, bicampeã. A eficiência do catenaccio de Alfredo Foni fez com que cinco desses atletas tivessem características defensivas, apesar de o atacante Benito Lorenzi ser uma das grandes esperanças da seleção, ao lado do bianconero Giampiero Boniperti. Os outros bons nomes ofensivos eram Ermes Muccinelli (também da Juventus) e Egisto Pandolfini e Carlo Galli, da Roma.
A dona da casa, por sua vez, era treinada pelo técnico que inventou o chamado ferrolho suíço, estratagema considerado como precursor do catenaccio italiano. O austríaco Karl Rappan havia apresentado o conceito ao mundo na Copa de 1938 e repetia a dose com uma boa geração. Entretanto, apesar do defensivismo do esquema, a equipe helvética tinha nos atacantes os seus nomes de maior destaque: Josef Hügi, Jacques Fatton e Roger Vonlanthen, que atuaria por Inter e Alessandria posteriormente.
O fato é que, durante a partida, o mundo teve a impressão de que a Suíça atuou com 12 jogadores – sim, falamos do planeta, já que aquela Copa foi a primeira com transmissão televisiva. E o 12º homem não foi a torcida anfitriã, mas o árbitro brasileiro Mário Vianna, que teve uma trajetória polêmica e marcada por conflitos de interesses.
Integrante da Polícia Especial da ditadura de Getúlio Vargas, Vianna começou a apitar na década de 1930 e, dono de um físico robusto, desenvolveu um estilo rigoroso e agressivo, num tempo em que árbitros brigavam com atletas e até torcedores. Esse jeito durão, porém, parece ter sido domesticado nos Alpes, quando o juiz fluminense se hospedou, com várias regalias, na Escola Superior do Esporte Suíço, em Magglingen, onde a seleção helvética se concentrava para o Mundial.
Cerca de 18 minutos depois que Vianna autorizou o início do jogo entre Suíça e Itália, os anfitriões abriram o placar com Robert Ballaman, após um cruzamento na medida de Fatton. Os azzurri tentaram reagir e dominaram o restante da etapa inicial, embora com muitas dificuldades de furarem o ferrolho adversário. Até que, aos 44, após bola alçada à área, o arqueiro Eugène Parlier saiu mal de sua baliza e, na sobra, o capitão Boniperti deixou tudo igual.
No tempo complementar, a Itália voltou a balançar as redes. Galli passou por dois adversários, acertou a trave e, no rebote, Lorenzi escorou para a baliza. Porém, Vianna anulou o lance de forma surpreendente, para a fúria dos azzurri, que partiram para cima do árbitro: se formou uma rodinha, com empurrões de ambas as partes. Primeiro, segundo relatos do autor do gol, o brasileiro teria alegado que a jogada foi invalidada por impedimento – que não havia, já que o italiano estava claramente atrás de dois defensores suíços – e, depois, por falta do romanista, que sequer encostou em adversários. Em suma, uma marcação obscena.
O tempo foi passando e a Itália ainda chegou a acertar a trave, com Muccinelli. Mas, já aos 78 minutos, foi a Suíça que marcou – em outro lance polêmico. Sepp Hügi puxou contra-ataque e ganhou de Omero Tognon, dando-lhe um puxão na camisa, e finalizou para vencer Giorgio Ghezzi, anotando o gol da vitória helvética. Ao apito final, os italianos partiram para cima de Vianna, que foi coberto por insultos, chutes no traseiro, empurrões e socos. Por outro lado, também teria desferido um murro em Boniperti.
Aquela não seria a única polêmica de Vianna na Copa de 1954. Mais tarde, nas quartas de final, o carioca atuou como comentarista para uma rádio brasileira – algo impensável atualmente para um juiz em atividade – e, para piorar, ficou muito nervoso com a eliminação do Brasil contra a Hungria. Na ocasião, disse que o inglês Arthur Ellis, que apitou o jogo, havia ajudado os húngaros por ser “bandido e comunista”. Também acusou o comitê de arbitragem de “camarilha de ladrões”. Por isso, foi banido pela Fifa. Depois disso, passou a trabalhar na Rádio Globo e até mesmo foi técnico de alguns times, ratificando o quanto desprezava a noção de conflito de interesses.
E a Itália? Bem, a Nazionale reagiu contra a Bélgica, com goleada por 4 a 1, e teve a chance de se vingar da Suíça naquela mesma Copa, por conta do já citado regulamento da competição: em caso de empate em pontos entre a segunda e a terceira colocada, seria disputado um jogo extra para definir qual delas avançaria para o mata-mata. E isto ocorreu porque os anfitriões perderam por 2 a 0 para a Inglaterra.
Na Basileia, então, Suíça e Itália se enfrentaram no dia 23 de junho, menos de uma semana após o duelo de Lausanne e três dias após os seus outros compromissos pelo Grupo 4. Um desempate que, para os italianos, talvez não devesse ter sido disputado, já que os mandantes venceram por um sonoro 4 a 1. Um resultado envolto em suspeitas para Lorenzi, conhecido por ser um atleta cheio de artimanhas – e que, por isso, ganhou o apelido de “Veleno” ou “veneno”, em português.
“Não estou dizendo que eles estavam dopados, porque não tenho provas. Mas eles haviam disputado duas partidas em três dias, como nós, e, por isso, deveriam estar tão cansados como estávamos. Só que eles nos esmagaram fisicamente. Mais tarde, nas quartas de final, as suspeitas aumentaram. Eles jogaram contra a Áustria e ficaram em vantagem por muitos gols, mas levaram vários outros em sequência e o jogo terminou 7 a 5 para os austríacos! Uma queda [física] muito estranha”, afirmou ao jornalista Aldo Pacor.
Apesar de desconfiar de mais uma fraude suíça, Lorenzi também identificou falhas na Itália. O atacante afirma que pediu a Czeizler para não atuar, pois estava cansado demais, mas recebeu a negativa do treinador – “por 20 minutos, fiz maravilhas; depois, desapareci”, confidenciou a Pacor. O interista também desaprovou o fato de o duro Rino Ferrario, da Fiorentina, não ter sido escolhido pelo técnico húngaro para ser o marcador de Hügi.
Um dos tantos caprichosos daquele elenco, o volante também não aceitou bem a exclusão e xingou o treinador na frente da delegação e dos jornalistas, durante o embarque no ônibus que se dirigia ao estádio St. Jakob. Para Lorenzi, faltou pulso ao comandante em toda a expedição à Suíça. “Czeizler era um cara tranquilo e gentil. Um filósofo. Mas com os azzurri era preciso usar um bastão com a cenoura na ponta”. Ou seja, o grupo precisava ser orientado. Como fazia o severo Vittorio Pozzo, bicampeão mundial em 1934 e 1938.
No fim das contas, Czeizler mandou a campo um time desfalcado do lesionado Boniperti, com várias outras mudanças. E também com jogadores cansados e desmotivados. Com isso, Hügi já abriu o placar aos 14 minutos, depois de tabelar com Vonlanthen e bater no contrapé de Giovanni Viola. No início do segundo tempo, a Suíça foi com tudo para cima e quase ampliou com Charles Antenen. Não demoraria para fazê-lo, contudo: aos 48, numa cobrança de escanteio, Fulvio Nesti cochilou e Ballaman apareceu livre para empurrar a bola para a rede.
Tentando tirar forças de lugares impensáveis, a Itália voltou a esbarrar no ferrolho suíço. E só diminuiria o prejuízo num lance fortuito: após cruzamento na área, Charles Casali tentou afastar a bola e a mandou na cabeça de Nesti, que se redimiu ao fazer o movimento correto para testá-la para a rede. Um gol que não alterou a trajetória da partida.
Sem pernas, os azzurri iam ao ataque, mas só se expunham aos contragolpes helvéticos. E foi dessa forma que, na reta final da peleja, Vonlanthen acrescentou mais duas assistências a sua conta: primeiro para Hügi fuzilar aos 85, guardando uma doppietta no dia de seu aniversário de 24 anos, e, já aos 90, chegou a driblar Viola antes de rolar para Fatton fechar o placar. Os anfitriões se classificaram para enfrentar a vizinha Áustria nas quartas de final e foram derrotados no confronto em que mais tentos foram registrados na história dos Mundiais (12).
Para a Itália, a eliminação resultou na demissão de Czeizler e na reformulação de toda a comissão técnica, com a chegada de Foni, bicampeão da Serie A com a Inter, para o comando. Não adiantou muito, na verdade: a Nazionale seguiu num período de vacas magras, mesmo com bons treinadores e gerações talentosas nos anos posteriores. Os maus bocados duraram até 1968, quando os azzurri ganharam a sua primeira Euro e puderam exorcizar alguns fantasmas.
Suíça 2-1 Itália
Suíça: Parlier; Bocquet, Neury, Flückiger; Casali, Kernen; Fatton, Hügi, Vonlanthen; Ballaman, Meier. Técnico: Karl Rappan.
Itália: Ghezzi; Vincenzi, Giacomazzi; Tognon, Nesti, Neri; Pandolfini, Boniperti; Muccinelli, Galli, Lorenzi. Técnico: Lajos Czeizler.
Gols: Ballaman (18′) e Hügi (78′); Boniperti (44′)
Árbitro: Mário Vianna (Brasil)
Local e data: estádio Olympique de la Pontaise, Lausanne (Suíça), em 17 de junho de 1954
Suíça 4-1 Itália (jogo extra)
Suíça: Parlier; Bocquet, Neury, Kernen; Casali, Eggimann; Fatton, Hügi, Vonlanthen; Ballaman, Antenen. Técnico: Karl Rappan.
Itália: Viola; Magnini, Giacomazzi; Tognon, Nesti, Mari; Pandolfini, Segato; Muccinelli, Lorenzi, Frignani. Técnico: Lajos Czeizler.
Gols: Hügi (14′ e 85′), Ballaman (48′) e Fatton (90′); Nesti (67′)
Árbitro: Benjamin Griffiths (Gales)
Local e data: estádio St. Jakob, Basileia (Suíça), em 23 de junho de 1954
“Encarar a seleção dona da casa numa Copa do Mundo jamais será uma tarefa trivial – mesmo para uma gigante do futebol.” – Alemanha de 2014 discorda disso. Ainda mais que se falou de Brasil.
E pra quem acha que a ruindade dos árbitros brasileiros é só de hoje, esse texto mostra que não é não. Já vem de muito tempo atrás, passando pelo Armando Marques, que se perdeu na contagem de pênaltis entre Santos e Portuguesa em 1973 e por Sílvio Luiz, que nos deixou recentemente, que antes de ser locutor era árbitro e um péssimo árbitro. Ladrão até dizer chega.