O baú da Velha Bota armazena várias histórias de treinadores estrangeiros que marcaram época no futebol italiano. Helenio Herrera, Nils Liedholm, Vujadin Boskov, Mircea Lucescu, Sven-Göran Eriksson, Zdenek Zeman, José Mourinho. Todos esses técnicos tiveram papéis fundamentais na construção de times célebres. No entanto, o último a fazer sucesso na Serie A, Mourinho, deixou o país em 2010, após conduzir a Internazionale à Tríplice Coroa. Desde então, apenas o francês Rudi Garcia, o bósnio-suíço Vladimir Petkovic, o português Paulo Sousa e o espanhol Rafa Benítez conseguiram brilho esporádico na Itália. Sem contar, claro, Leonardo e Sinisa Mihajlovic, que já estão inseridos no esporte do Belpaese desde meados dos anos 1990.
A Serie A desta temporada começou com somente um treinador estrangeiro empregado na elite do futebol italiano. O espanhol Julio Velázquez foi anunciado pela Udinese em julho de 2018, mas durou só quatro meses à frente da equipe bianconera, acumulando sete derrotas, três empates e duas vitórias. Para o lugar do hispânico, o clube contratou o italiano Davide Nicola. No decorrer da competição, o Genoa fechou com o croata Ivan Juric, porém permaneceu apenas cinco rodadas com o ex-volante – que é outro “italiano”, já que vive no país desde 2001. Agora, o experiente Cesare Prandelli é quem ocupa o banco dos grifoni.
Assim, a Serie A entrou 2019 como a única das cinco maiores ligas da Europa que não tem nem mesmo um de seus integrantes comandado por técnico proveniente do exterior. A diversificada Premier League conta com 16 comandantes estrangeiros; há quatro argentinos trabalhando em La Liga; quatro das 18 equipes que disputam a Bundesliga têm treinadores gringos; e a Ligue 1 contabiliza quatro técnicos não-franceses.
Além disso, nos últimos 20 anos, somente dois treinadores do exterior, Eriksson (Lazio, 2000) e Mourinho (Inter, 2009 e 2010), conseguiram alcançar a glória do scudetto. No mesmo período, por outro lado, 12 edições da Premier League foram vencidas por times comandados por não-britânicos, enquanto o troféu de La Liga foi nove vezes para times cujos treinadores não eram espanhóis. O holandês Louis van Gaal, o catalão Pep Guardiola e o italiano Carlo Ancelotti deram cinco títulos ao Bayern de Munique entre 2010 e 2017. Na Ligue 1, Ancelotti, o português Leonardo Jardim e o espanhol Unai Emery paparam a taça enquanto estiveram sob o comando de Paris Saint-Germain e Monaco, entre 2013 e 2018.
Dito isso, o que explica os recentes fracassos de técnicos estrangeiros no Belpaese? Para o presidente da Associação de Treinadores de Futebol da Itália, Renzo Ulivieri, existe um detalhe que difere os italianos dos demais. “Quando perguntam a Mourinho: ‘O que mais sente falta da Serie A?’, ele sempre responde: ‘A batalha tática’. O nosso campeonato é difícil. Para nós, italianos, é diferente: a arte de treinar é transmitida em campo”, disse, em entrevista à edição itálica da norte-americana Vanity Fair.
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Entretanto, como poderíamos definir essa “arte de treinar”? Seria um talento inato que privilegia apenas os italianos? Ou será que a selva da Serie A é a mais penosa se comparada com as outras grandes ligas europeias? A curta passagem do holandês Frank de Boer pela Inter ajuda a corroborar a segunda possibilidade. Isso porque De Boer, que havia conquistado quatro títulos consecutivos da Eredivisie com o Ajax, acabou demitido do clube nerazzurro após 84 dias de trabalho. E olha que sua Inter chegou a ganhar da toda poderosa Juventus…
Mas Ulivieri, dessa vez em declaração à revista italiana Undici, argumenta que “num campeonato como o Italiano, onde há grande diversidade tática, saber adaptar-se a situações é uma característica fundamental”. De fato, os técnicos italianos conseguem ajustar-se a várias circunstâncias. Quem seria louco de apostar que o Leicester City do romano Claudio Ranieri desbancaria gigantes – utilizando ligação direta e contragolpes fulminantes – e conquistaria a Premier League em 2016? Ou quem esperava que Antonio Conte colheria os frutos de seu inspirador 3-4-3 logo em sua primeira temporada no Chelsea, e ficaria com o título do Inglesão?
“Não se pode vir aqui [em Coverciano] e dizer ‘este é o meu estilo de futebol'”, alertou Ulivieri, que também é diretor da universidade que forma treinadores, em Coverciano, Florença. “O seu estilo de futebol não é o que você acredita, mas o que você pode fazer com os jogadores que você tem à disposição. Então você pode melhorá-los, mas o melhor estilo de futebol que você pode executar, tanto do ponto de vista de espetáculo quanto do ponto de vista de resultados, é aquele que melhor se aplique aos jogadores que você tem à disposição”, acrescentou.
Por essa declaração de Ulivieri, podemos deduzir que os treinadores formados na Itália são preparados para desbravar o futebol sem uma identidade de jogo predeterminada. Talvez isso explique o porquê de a maioria dos técnicos estrangeiros sofrerem para se adaptar à Serie A, uma liga com leque maior de estratégias e estilos. Na Alemanha e na Espanha, por outro lado, há clubes que determinam uma filosofia de jogo que vai desde os juvenis até o profissional. Ou seja, o comandante chega à agremiação sabendo o que deve enfrentar e o que não deve modificar.
Nas últimas 20 edições de Serie A, os únicos gringos que alcançaram média de 1,80 ponto por jogo por pelo menos duas temporadas foram Héctor Cúper, José Mourinho, Rafa Benítez e Rudi Garcia. O português conquistou dois scudetti, uma Liga dos Campeões, uma Coppa Italia e uma Supercopa Italiana, ao passo que o espanhol venceu duas Supercopas Italianas, um Mundial de Clubes da Fifa e uma Coppa Italia. Cúper e Garcia deixaram a Itália sem títulos no currículo: foram no máximo vice-campeões; duas vezes no caso do francês.
É difícil taxar a Serie A como o campeonato mais complicado do Velho Continente para treinadores estrangeiros. Também não dá para afirmar que os italianos são os maiorais em comandar equipes, pois eles não são exportados às outras ligas da mesma maneira que espanhóis, portugueses e até argentinos. Atualmente, há somente dois nativos da Bota nos outros quatro grandes campeonatos da Europa: Maurizio Sarri (Chelsea) e Ranieri (Fulham).
Recentemente, no entanto, o número de profissionais que seguiram os passos de Giovanni Trapattoni e Fabio Capello para “ganhar o mundo” foi relativamente alto. Carlo Ancelotti, Roberto Mancini, Antonio Conte, Luciano Spalletti, Vincenzo Montella, Cesare Prandelli e até mesmo Francesco Guidolin e Walter Mazzarri tiveram experiências nas principais ligas e/ou em clubes de relevo em torneios emergentes.
Uma coisa é certa. A Serie A e seus clubes devem cuidar para que não haja uma ruptura com sua tradição futebolística, que é de agregar – técnicos, estratégias e atletas. Em alguns setores da sociedade italiana o perigoso caminho do isolacionismo parece estar na moda, mas tal opção já se mostrou equivocada no esporte anteriormente: quando as fronteiras foram fechadas para jogadores estrangeiros, o nível técnico do futebol local caiu sensivelmente.
Hoje, o paradigma é outro. Se apenas os italianos souberem a “senha” para triunfar em sua bolha e isso implicar no rechaçamento de conceitos, ideias e referências do exterior, a Serie A poderia ficar para trás na contínua evolução do futebol. Uma das consequências mais imediatas seria o impacto na seleção italiana, que desde o tetra de 2006 sofre para se reformular e ser competitiva novamente.