O torcedor do Milan que conseguiu acompanhar a transição entre os anos 1980 e 1990 teve sorte, já que o clube era favorito em tudo o que disputava. A combinação entre um elenco estrelado e o futebol total de Arrigo Sacchi intimidava os adversários que cruzavam o caminho rossonero e garantiu títulos ao Diavolo. Mas nenhuma equipe é invencível, mesmo quando vive seu auge. O futebol é feito pela imprevisibilidade e um jogo em que um time não consegue se impor pode ser decisivo para o andamento de sua temporada.
Em 1990-91, foi o que ocorreu com o Milan. Os rossoneri tiveram uma grande dor de cabeça nas quartas de final da Copa dos Campeões: o Olympique de Marseille, comandado por Raymond Goethals, foi uma pedra no sapato de Sacchi e seus pupilos. O primeiro jogo, na Itália, terminou empatado em 1 a 1, e a decisão ficou guardada para a volta, no sul da França. Entretanto, os holofotes do Vélodrome se apagaram quando faltavam apenas dois minutos para o fim da peleja e deram início a um dos capítulos mais turbulentos da história do Diavolo nas competições continentais.
O caminho do antigo campeão
Após dois títulos consecutivos na Copa dos Campeões, contra Steaua Bucareste e Benfica, o Milan venceu tanto a Copa Intercontinental quanto a Supercopa Uefa. Ainda na briga pelos títulos da Serie A e da Coppa Italia, o time rossonero tinha o tricampeonato europeu como seu principal objetivo em 1990-91.
O Milan não precisou jogar a primeira fase da Copa dos Campeões porque tinha conquistado a edição anterior. Assim, o Diavolo entrou diretamente nas oitavas de final e teve bastante trabalho para superar o Club Brugge. Após um empate dentro de casa, o time italiano superou o adversário por um magérrimo 1 a 0 na Bélgica. As dificuldades apresentadas em suas partidas iniciais na competição se ampliariam nas quartas, diante do emergente Marseille.
A ousadia e constância do Marseille
Se o Paris Saint-Germain passou a atrair, de forma majoritária, os holofotes na França a partir dos anos 2010, o período que marcou a transição da década de 1980 para a de 1990 foi do Olympique de Marseille. Na época, os phocéens tinham como presidente o magnata Bernard Tapie, que, envolvido com grandes negócios – foi proprietário da Adidas, por exemplo –, em muito se assemelhava ao rossonero Silvio Berlusconi. O time da Provença ainda contava com o insaciável Jean Pierre-Papin como artilheiro.
O OM teve três técnicos na temporada 1990-91. Gérard Gill iniciou no comando, mas viu a estrela mundial Franz Beckenbauer lhe substituir logo em setembro de 1990. O kaiser permaneceu apenas três meses à frente do Marseille, que resolveu mudar na virada do ano e apostar em Raymond Goethals. O experiente belga, que já havia treinado a seleção de seu país, ganhado títulos continentais pelo Anderlecht e até passado pelo São Paulo, entre 1980 e 1981, chegava do Bordeaux. Ele se mostraria uma escolha acertada de Tapie.
Antes da chegada de Goethals, o Marseille teve um começo explosivo na Liga dos Campeões. As vitórias sobre Dinamo Tirana, da Albânia, e Lech Poznan, da Polônia, foram conquistadas com superioridade, graças a um coletivo que tinha faro apurado para marcar gols: os placares agregados foram de 5 a 1 e 8 a 4, respectivamente.
Essa força ofensiva dos marselheses seria mais necessária do que nunca nas quartas de final, já que o adversário seria o Milan, então bicampeão. Afinal, enfrentar os italianos era um pesadelo para qualquer ataque, uma vez que a zaga rossonera contava com Franco Baresi e Paolo Maldini, mas também para qualquer defesa – principalmente quando Marco van Basten e Ruud Gullit se encontravam em campo. Para algum alívio do OM, o Diavolo não teria o seu camisa 9, suspenso por conta de expulsão contra o Club Brugge.
Um jogo parelho em San Siro
A atmosfera do San Siro, até hoje, é lembrada como a de um verdadeiro caldeirão. A primeira partida das quartas contra o Marseille aconteceu lá e foi graças à pressão que os donos da casa abriram o placar. A defesa francesa cometeu um grande erro na frente de Gullit, que não perdoava nenhum beque. Acostumado a pressionar a saída de bola adversária, o camisa 10 não hesitou em roubar a posse e, cara a cara com o arqueiro Pascal Olmeta, deixou o Milan à frente no placar.
Apesar do gol no início do primeiro tempo, o Marseille não sentiu a pressão. Chris Waddle, acionado com frequência, colocou Andrea Pazzagli para trabalhar quando deixou Filippo Galli e Alessandro Costacurta para trás ao receber um passe do meio de campo. No entanto, foi o “abusado” Papin quem igualou tudo. Apesar da maioria numérica do Milan na defesa, Waddle encontrou a enfiada para o camisa 9, que entrava pelo lado direito. O goleiro rossonero tentou diminuir o ângulo, mas não teve sucesso.
Papin quase fez o Marseille sair com a vitória do Giuseppe Meazza. O atacante pressionou Galli na saída de bola e, depois, tirou tinta da trave. O Milan não jogara muito bem e enxergara um adversário potente no time francês, que ainda contava com peças como Manuel Amoros, Basile Boli, Abedi Pelé e o brasileiro Mozer. Tudo estava aberto para a volta, no Vélodrome.
A volta em Marselha
A segunda partida das quartas daquela Copa dos Campeões foi muito além da bola que rolou em campo. O Marseille conseguiu a façanha de eliminar o Milan, mas o que roubou a cena naquele jogo foi a grande confusão de seu final, relembrada até hoje. Antes disso, tivemos 88 minutos de domínio do OM.
Quase 38 mil torcedores de torcedores se dirigiram ao Vélodrome para assistirem ao espetáculo da volta. Com a eliminatória em aberto, apesar do gol marcado pelo Marseille fora de casa, qualquer coisa poderia acontecer, e o clima – dentro e fora do campo – era quente. Ninguém queria deixar a vaga para trás.
Dessa vez, o Milan teria Baresi, desfalque na ida, e contaria com Sebastiano Rossi em sua baliza. O goleiro retomou a titularidade após uma sequência ruim para os rossoneri, que chegaram a passar cinco jogos sem vitórias, somando todas as competições – as derrotas para Sampdoria e Atalanta, pela Serie A, foram fundamentais para que Sacchi efetuasse a troca na meta, pondo Pazzagli na reserva. Do outro lado, os phocéens iam a campo com apenas uma mudança na escalação, e mantinham Pelé, Papin e Waddle como focos de perigo.
Se o trio de estrelas do Marseille estava sedento por gols e pela classificação, o Milan parecia distraído no jogo. Assim, logo o time da casa produziu uma chance: nas costas da linha defensiva, Waddle partiu e cruzou na área, para perigosa tentativa de cabeceio de Boli. Os franceses não davam espaço para os rossoneri, que passaram também a errar na saída de bola – fato bem incomum para a equipe de Sacchi.
Mesmo com a insistência de Gullit e Frank Rijkaard, foi o Marseille que balançou as redes. O inglês Waddle era o pulmão da equipe e se tornou decisivo naquele jogo dentro de casa. Com a bola ajeitada em um cabeceio de Papin, vindo do meio da área, o camisa 8 encheu o pé para acertar um chute cruzado e dar a vantagem aos franceses, aos 75 minutos.
Dali em diante, o Milan nada mais fez. Inclusive, foi Waddle que quase anotou o seu segundo tento, após driblar parte da defesa adversária, arrancar e, cara a cara com Rossi, chutar para fora. A torcida marselhesa se empolgava nas arquibancadas quando, faltando dois minutos para o fim do jogo, uma torre de refletores do estádio Vélodrome se apagou. Foi aí que começou a confusão.
De cara, dezenas de repórteres, fotógrafos e cinegrafistas entraram em campo, pensando que a partida havia acabado. O árbitro Bo Jonas Hil Karlsson teve trabalho para fazer a multidão atravessar a linha lateral, de volta à área técnica, e teve de começar a lidar com dirigentes.
Os jornalistas italianos logo foram atrás de Silvano Ramaccioni, chefe da delegação rossonera, e lhe perguntaram qual era o procedimento tomado e o que estava previsto em regulamento, já que o time visitante começava a se aprontar para ir para os vestiários, alegando falta de visibilidade mínima para a prática esportiva. O diretor, então, respondeu aos repórteres: “se a luz não voltar em até 45 minutos, a norma diz que o Milan deve ser declarado vencedor por 3 a 0”.
A torre de refletores voltava, pouco a pouco, a iluminar o setor do gramado que havia ficado às escuras. Então, cerca de 20 minutos depois da interrupção, o árbitro sueco afirmou que a partida seria retomada. Ele só não contava com a presença de Adriano Galliani, que havia descido das tribunas de honra. O diretor executivo do Milan ficou irritado com a decisão de Karlsson, invadiu o gramado e ordenou que o time rossonero não jogasse mais. Alguns jogadores tentaram dissuadir o cartola, mas ele estava irredutível.
O Milan tentaria a vitória no tapetão, ainda que o regulamento previsse que havia tempo de sobra para que o Marseille não fosse punido. Na malandragem, com “jeitinho italiano”, Galliani tentou reverter um cenário que, esportivamente, parecia improvável para os rossoneri – afinal, o time azul e branco estava melhor na partida.
No fim das contas, o tiro saiu pela culatra. A atitude de Galliani – um verdadeiro papelão – foi reprovada até por Berlusconi, que precisou por panos quentes na situação, numa tentativa tentativa de evitar danos severos ao Milan. O proprietário do clube escreveu uma carta à Uefa, na qual pediu desculpas públicas pelo ocorrido, mas a sua iniciativa não surtiu efeito: o Diavolo foi punido com derrota por 3 a 0 e ainda foi excluído por um ano dos torneios organizados pela entidade.
Além de ser eliminado na Copa dos Campeões, o Milan não conseguiu fôlego para brigar pelo título nacional e ficou com o vice da Serie A – a Sampdoria se consagrou campeã pela primeira vez, graças ao entrosamento de Gianluca Vialli e Roberto Mancini. Por conta da punição sofrida, o Diavolo teve de abrir mão de sua vaga na Copa Uefa, que ficou com o novato Parma. Ao fim da temporada, Sacchi deixou o clube para acertar com a seleção italiana, abrindo espaço para a também vitoriosa gestão de Fabio Capello.
Do outro lado, o Marseille chegou à grande final da Copa dos Campeões, superando os seus melhores desempenhos em torneios internacionais. O clube fundado em 1899 só fez boas campanhas nos torneios continentais na presidência de Tapie, que já havia levado o OM às semifinais da Recopa Uefa, em 1988, e da própria máxima competição europeia, em 1990. Os torcedores tinham o grito de campeão guardado na garganta, mas a expectativa foi frustrada pelo Estrela Vermelha. Em Bari, no sul da Itália, o time iugoslavo levou a melhor nos pênaltis e alcançou o topo do continente.
Milan 1-1 Marseille
Milan: Pazzagli; Tassotti, Galli, Costacurta, Maldini; Donadoni, Ancelotti (Carbone), Rijkaard, Evani; Gullit, Massaro (Simone). Técnico: Arrigo Sacchi.
Marseille: Olmeta; Amoros, Mozer, Boli, Casoni, Di Meco; Germain, Waddle, Pardo; Pelé, Papin. Técnico: Raymond Goethals.
Gols: Gullit (14′); Papin (27′)
Árbitro: Bruno Galler (Suíça)
Local e data: estádio Giuseppe Meazza, Milão (Itália), em 6 de março de 1991
Marseille 3-0 Milan (1-0 em campo)
Marseille: Olmeta; Amoros, Mozer, Boli, Casoni, Di Meco; Waddle, Germain, Fournier (Vercruysse), Pelé; Papin. Técnico: Raymond Goethals.
Milan: Pazzagli; Tassotti, Costacurta, Baresi, Maldini; Donadoni (Simone), Ancelotti (Massaro), Rijkaard, Evani; Gullit, Agostini. Técnico: Arrigo Sacchi.
Gol: Waddle (75′)
Árbitro: Bo Jonas Hil Karlsson (Suécia)
Local e data: estádio Vélodrome, Marselha (França), em 20 de março de 1991