Geralmente, finais lendárias são protagonizadas por times icônicos. A frase é redundante e beira o óbvio, mas descreve bem o confronto entre Milan e Ajax na Copa dos Campeões, em 1969: no primeiro dos dois embates que os dois clubes protagonizaram em decisões europeias, os rossoneri simplesmente condenaram os Godenzonen a uma derrota esmagadora. Bicampeão europeu, o Diavolo de Nereo Rocco fechava a década de 1960 com chave de ouro ao não tomar conhecimento de Rinus Michels e Johan Cruyff.
Em 1963, o Milan liderado por Cesare Maldini, Giovanni Trapattoni, Gianni Rivera, José Altafini e outras lendas foi o primeiro time italiano a levantar o troféu da Copa dos Campeões, superando o temido Benfica de Eusébio. Após a saída de Rocco, o Diavolo não sustentou a sequência vencedora e foi ultrapassado pela Inter de Helenio Herrera em nível local – e também em títulos europeus, numa época em que só vencedores das ligas nacionais e o próprio vitorioso do principal torneio continental da Europa disputavam o prestigioso certame. O jejum de taças acabou em 1967, na Coppa Italia, pouco antes de uma reviravolta no verão do mesmo ano: Rocco deixou o Torino e tornou a treinar os rossoneri.
O destino uniu clube e treinador mais uma vez – e o bis foi tão triunfante quanto a primeira passagem. Além do scudetto, que voltou a Milanello após quatro edições da Serie A, Rocco guiou o time rumo à segunda glória continental em cinco anos, com a inédita conquista da Recopa Europeia, em cima do Hamburgo. Mas o técnico e sua companhia tinham ambições ainda maiores. E partiram em uma jornada épica em busca da taça da Copa dos Campeões.
O Milan de 1968-69 era ligeiramente inferior tecnicamente ao que triunfou em Wembley seis anos antes. Mas é considerada a obra completa de Rocco. El Paròn, como era conhecido, foi capaz de regenerar jogadores que pareciam esgotados fisicamente. Liderada pelo mágico duo formado por Rivera e Pierino Prati, a autoridade de Trapattoni e a solidez defensiva de Giovanni Lodetti, a equipe rossonera ainda se resguardava na segurança impecável de Fabio Cudicini na baliza. Como coadjuvantes de confiança, o time também tinha o defensor Karl-Heinz Schnellinger e os atacantes Kurt Hamrin e Angelo Sormani.
A aventura na Copa começou de maneira bastante acessível, contra o Malmö. Apesar do susto no revés por 2 a 1, na Suécia, a normalidade foi retomada no segundo jogo. O poderoso trio ofensivo composto por Prati, Rivera e o ítalo-brasileiro Sormani comandou o triunfo por 4 a 1, que resultou na classificação direta às quartas de final, sem jogar as oitavas do torneio. A razão estava no extracampo.
Na época, a União Soviética invadiu a Checoslováquia para reprimir a Primavera de Praga e, em represália, a Uefa emparelhou todos os times de países do Bloco Comunista na primeira fase de suas competições – a Copa dos Campeões e a Recopa. No principal torneio, a entidade ainda colocou frente a frente as equipes de União Soviética, Polônia, Hungria e Bulgária, que haviam se unido para sufocar as agitações em terras estrangeiras. Em protesto, as respectivas federações retiraram seus representantes, com o apoio da Alemanha Oriental, e o chaveamento da segunda fase teve lacunas. Sem clubes suficientes no sorteio, Milan e Benfica avançaram automaticamente às quartas.
A missão contra o Celtic, comandado por Jock Stein, era a mais desafiadora até então. Campeão em 1966-67, batendo a Grande Inter na decisão, o time escocês foi páreo duro nos dois jogos. O zero não saiu do placar em um San Siro coberto de neve na ida. Considerando a invencibilidade mantida há anos pelos donos da casa, o cenário não era nada favorável para os italianos no Celtic Park. Em campo, todavia, a história foi diferente. Aos 12 da etapa inicial, Prati recuperou a bola e arrancou em direção ao gol dos Hoops. O Diavolo resistiu à blitz dos escoceses nos 78 minutos restantes e garantiu presença nas semifinais.
O último compromisso italiano antes da partida da taça foi simplesmente contra o Manchester United, campeão da edição anterior – ou seja, o Milan enfrentou os dois ganhadores mais recentes da competição àquela altura. Ainda assim, os rossoneri tiraram proveito da condição de anfitriões no primeiro duelo e, com gols de Sormani e Hamrin, levaram uma vantagem confortável na bagagem para a Inglaterra. Na volta, o United aplicou um jogo pegado, mas os milanistas não caíram na provocação inglesa. Bobby Charlton abriu o placar a 20 minutos do apito final e inflamou os ânimos. Alvejado por objetos lançados da arquibancada, Cudicini não se abalou e fez intervenções que conduziram o time lombardo à decisão.
Um Ajax emergente
O adversário do Milan na finalíssima foi a versão embrionária do Carrossel Holandês e do próprio Ajax, que estava prestes a se tornar tricampeão europeu e campeão mundial. Com Michels como técnico e Cruyff em campo, porém sem Johan Neeskens, Johnny Rep e Arie Haan, o Futebol Total engatinhava – e já era soberano localmente. Após vencerem o Campeonato Holandês de 1966 a 1968, os Godenzonen chegaram à final continental, um feito inédito para um clube dos Países Baixos à época.
O Ajax fez uma campanha indiscutível, mas que teve alguns percalços pelo caminho. O time holandês atropelou o Nürnberg (5 a 1 no agregado) e o Fenerbahçe (4 a 0), até ser freado pelo Benfica. Os rivais trocaram resultados por 3 a 1 e, após o 4 a 4 total, fizeram um jogo extra em campo neutro: em Paris, após o empate no tempo normal, os neerlandeses emplacaram 3 a 0 na prorrogação. Nas semis, a equipe de Cruyff abriu 3 a 0 sobre o Spartak Trnava, da fatídica Checoslováquia, mas passou aperto na volta e se classificou com um 3 a 2 na soma dos placares. Estava dado o primeiro passo em direção a uma era emblemática no futebol.
Pré-jogo
A caminho da partida, o silêncio entre os rossoneri era denso. Rocco deu o recado: “Quem não quiser, não desça do ônibus. Não precisamos de pessoas com medo”, disse. No vestiário estavam todos menos um. Justamente ele, Nereo, que ficou sozinho no veículo. E o medo era apenas uma lembrança. Prati não dormiu na véspera da final.
O jogo
O Santiago Bernabéu, em Madrid, foi o estádio escolhido para a final disputada em 28 de maio de 1969. Em campo, dois conceitos distintos de jogo: o pragmatismo do Milan versus a ofensividade dos holandeses. As duas equipes pareciam estar em pé de igualdade na teoria, mas o panorama foi outro desde o momento do apito inicial. A primeira oportunidade saiu dos pés de Prati, que recebeu de Angelo Anquilletti e acertou a trave. Aos 7 minutos, Sormani deixou Barry Hulshoff na saudade, cruzou e Prati cabeceou com maestria, inaugurando o placar.
Fiel à estrutura do Futebol Total, o Ajax depositou as esperanças em Cruyff, mas Cudicini evitou uma resposta imediata do adversário. Prati, enquanto isso, estava imparável. Ele aproveitou o corredor e quase fez o segundo, mas acertou a parte externa da rede. Pouco antes do final do primeiro tempo, o atacante recebeu passe de calcanhar de Rivera, calibrou a perna direita e disparou um foguete, sem chances para Gert Bals.
No início da etapa final, um lance controverso envolveu Cruyff e Roberto Rosato. O craque neerlandês se infiltrou na grande área e caiu após o adversário encostar, mas nada foi assinalado. Aos 60, porém, o camisa 10 – sim, nada de 14 na época – foi derrubado por Lodetti e o árbitro José María Ortíz De Mendibíl apontou a marca da cal. O zagueiro iugoslavo Velibor Vasovic converteu e ressuscitou os Godenzonen.
Em seguida, Rivera quase enterrou os holandeses de novo, mas pecou pelo preciosismo e a bola triscou o poste direito. Prati criou jogada semelhante e foi interceptado por Bals. Na sequência, Sormani correu para completar e Vasovic travou antes. O atacante ítalo-brasileiro não desperdiçou aos 67, quando lançou um míssil de pé esquerdo e estufou o canto da rede.
Theo van Duivenbode arriscou de mais longe e assustou Cudicini, mas se limitou a isso. Sombra de Cruyff durante os 90 minutos, Trapattoni se lançou ao ataque para deixar o dele, mas a tentativa saiu pela linha de fundo. Prati, por sua vez, conhecia bem o caminho do gol. Aos 75, Rivera tabelou com Sormani e avançou sem marcação: chegou a driblar Bals, mas perdeu o ângulo e viu a cobertura chegar. Quem também apareceu foi Pierino, que recebeu o levantamento do capitão rossonero, desviou de cabeça e completou a tripletta. O Ajax buscou mitigar os danos a todo custo, sem sucesso. Ao final da partida, o público reconheceu os esforços dos Godenzonen, que deram a volta por cima. Rocco empilhou mais uma taça em sua própria conta.
“Pierino, o craque” foi a manchete dos jornais da Bota na manhã seguinte. Apesar de Prati exibir uma das maiores atuações em decisões de Champions, Rivera era o maestro da orquestra e se tornou, ao fim daquele o ano, o primeiro italiano a ganhar uma Bola de Ouro, entregue pela revista France Football. Ele disse: “Na final contra o Ajax, me diverti e fiz as coisas que sempre gostei. Acho que dei vários gols a Prati. E Pierino, um grande atacante, marcou”. Os correspondentes da Gazzetta dello Sport escreveram: “O Menino de Ouro produz um futebol imenso e Prati transforma suas invenções diabólicas em gols”.
No Campeonato Italiano, o Milan não ficou com o scudetto, vencido pela Fiorentina, mas alcançou um recorde notável ao levar apenas 12 gols em 30 jogos – a sua melhor marca na competição. Para coroar um ano inesquecível, ainda disputou, entre 8 e 22 de outubro de 1969, a Copa Intercontinental, contra o Estudiantes. Os rossoneri ganharam o confronto de ida, na Itália, por 3 a 0. Depois, na Argentina, foram vítimas de uma das maiores selvagerias em partidas de futebol na história. O Diavolo perdeu por 2 a 1, mas a vantagem no agregado lhe garantiu o primeiro título mundial.
Milan 4-1 Ajax
Milan: Cudicini; Rosato, Schnellinger, Anquilletti; Malatrasi; Trapattoni, Rivera, Lodetti; Hamrin, Sormani, Prati. Técnico: Nereo Rocco.
Ajax: Bals; Suurbier (Nuninga), Hulshoff, Vasovic, Van Duivenbode; Pronk, Groot (Muller); Swart, Cruyff, Keizer; Danielsson. Técnico: Rinus Michels.
Gols: Prati (7′, 40′ e 75′) e Sormani (67′); Vasovic (60′)
Árbitro: José María Ortíz De Mendibíl (Espanha)
Local e data: estádio Santiago Bernabéu, Madrid (Espanha), em 28 de maio de 1969