Em 22 de maio de 2010, ocorria a última exibição do auge da Grande Inter versão 2.0. Naquele dia, com vitória sobre o Bayern de Munique por 2 a 0, no Santiago Bernabéu, a Beneamata completou um mês absolutamente perfeito. No dia 5, a taça da Coppa Italia, no Olímpico de Roma. No dia 16, o título da Serie A, em Siena, e o primeiro pentacampeonato da competição em seis décadas. Na decisão de Madri, o final de um jejum de 45 anos.
Em 17 dias, os interistas comemoram algo ainda hoje único para os clubes do Belpaese: a Tríplice Coroa. Em comum nas três finais, a marca do Príncipe de Bernal. Chegou a gerar desconfiança na diretoria da Inter o fato de os cartolas terem entregado a responsabilidade do comando de ataque a um artilheiro do Genoa, devido a um início de temporada lento. Contudo, Diego Milito, nos meses seguintes, apagou todas as dúvidas e acabou a época como artilheiro do time em todas as competições. O monarca foi coroado em Madri.
O argentino foi o símbolo de um elenco que reuniu descartados de Bayern de Munique, Barcelona e Real Madrid, e que tinha uma espinha dorsal experiente, que lutava havia anos para acabar com o estigma de “amarelão” nas noites europeias. Contra tudo e conta todos, dizia o mantra de José Mourinho, repetido pelo treinador durante dez meses. Tão importante quanto Milito, o português trouxe a mentalidade vencedora para aquele grupo.
Quatro décadas e meia depois, a Inter levantava a orelhuda, agora em uma versão mais encorpada. O troféu da Liga dos Campeões (antes Copa dos Campeões) já havia sido atualizado há décadas, mas quando Armando Picchi e companhia levantaram no bicampeonato europeu de 1964 e 1965 a taça ainda tinha a versão antiga, num tamanho mais diminuto. A missão de levantá-la em 2010 era de Javier Zanetti, outro versátil defensor e líder nerazzurro, que após 15 anos no clube alcançava a glória máxima.
Campeã ao cubo, em Madri, a Inter jogou da maneira que o manual de Mourinho mandava. Organizada, focada e cínica, a equipe fez uma partida bastante equilibrada contra o Bayern, que tinha maior posse de bola e também construía suas oportunidades, mas não com a finesse que os milaneses tiveram na frente do gol. Ou pelo menos quando Milito estava cara a cara com Hans-Jörg Butt: dois chutes, dois gols. Um pé direito cirúrgico.
A primeira boa oportunidade, porém, foi do time de Munique. O grande craque da equipe de Louis van Gaal, especialmente com o desfalque de Franck Ribéry, era Arjen Robben. O holandês deixou Cristian Chivu na saudade e também passou por Walter Samuel, mas seu companheiro Ivica Olic, artilheiro do time na Champions, chutou para fora na pequena área. A resposta da Inter também veio com um holandês: em falta de muito longe, Wesley Sneijder assustou Butt, algo que se repetiria ao longo de todo o jogo.
Até os 35 minutos, o jogo era bastante equilibrado, com ataques para os dois lados e sem chances claras de gol. Porém, um chutão despretensioso de Julio Cesar levou ao primeiro tento. Milito ganhou de Martín Demichelis no pivô e ajeitou para Sneijder, que completou a tabela com um passe perfeito em profundidade para o argentino. Diego deixou seu compatriota para trás na corrida e chutou colocado, inaugurando o placar em Madri.
No último grande lance antes do intervalo, em contra-ataque puxado pela dupla formada por Milito e Sneijder, o camisa 10 nerazzurro perdeu chance de ouro para ampliar a vantagem. Holandês e argentino fizeram nova tabela, o trequartista vez teve a chance de sair cara a cara com Butt, mas finalizou em cima do goleiro alemão, que afastou o perigo. Apesar do erro, o recado estava dado: o caminho para a vitória era atacar as costas dos zagueiros adversários.
Na volta do intervalo, uma desatenção da defesa interista quase custou o empate. Hamit Altintop avançou com facilidade na intermediária e colocou Thomas Müller na frente de Julio Céear, que cresceu e realizou sua primeira defesa no jogo. A resposta da Inter veio em nova jogada pela esquerda: tabela entre Milito e Goran Pandev, com chute do macedônio defendido por Butt.
A essa altura, a “jaula Messi”, tática utilizada para prender o craque argentino do Barcelona nos dois jogos nas semifinais (relembre aqui e aqui), foi transportada para Madri para trancar Robben. Enquanto Chivu focava em marcar o holandês, Pandev se ocupava em apoiá-lo e também de proteger o time das estocadas de Phillip Lahm. Enquanto isso, Samuel e Esteban Cambiasso faziam a cobertura por dentro, atentos à constante movimentação do jovem Müller.
Em virtude disso, as melhores oportunidades do Bayern também vieram pela sua esquerda, com o turco Altintop. O substituto de Ribéry levou perigo, mas mais por sua insistência do que por qualidade. Aos 65 minutos, Robben concluiu sua única finalização certa: do bico da área chutou colocado, mas Julio Cesar afastou o perigo. O holandês tentou outros seis chutes, mas teve quatro deles bloqueados por Chivu, Samuel, Lúcio e Cambiasso.
Ao todo, o time de Munique chutou 21 vezes contra o gol da Inter, porém apenas seis acertaram o alvo e estes sempre defendidos por Julio Cesar. Já o time de Milão foi mais preciso: de 12 finalizações, sete foram no gol. Butt evitou cinco deles, mas não as únicas duas tentativas de Milito. Logo após a chance perigosa de Robben, o Príncipe fechou o placar e assegurou a incontestável vitória nerazzurra aos 70 minutos.
Sneijder lutou com seu compatriota Mark van Bommel e recuperou bola ainda no campo de defesa. Com a defesa adversária desprotegida, passou para Samuel Eto’o no meio do campo, e o camaronês achou lançamento perfeito para Milito. Sempre na esquerda e em profundidade, atacando as costas da última linha, o argentino ficou de frente para Daniel Van Buyten e fez a sua jogada clássica: após a finta mais bonita das suas fintas, efetuou um novo chute colocado na saída de Butt e marcou o 2 a 0.
Depois de desvantagem, o Bayern de Van Gaal se lançou ao ataque, com a dupla Miroslav Klose e Mario Gómez na área interista. Os alemães não tiveram sucesso e esbarraram na tarde inspirada de Lúcio, Samuel e companhia. No último minuto do jogo, Mourinho ainda teve tempo de homenagear Milito, o herói do jogo. Ao substituir o artilheiro, Marco Materazzi, um dos líderes do vestiário, também teve sua chance de constar na ficha do jogo – exemplificando a lealdade e a identificação que Mourinho teve com aquele grupo.
Antes do apito final, Mourinho já chorava de emoção na beira do gramado do Bernabéu, que nos minutos seguintes foi tomado por toda a equipe da Inter presente em Madri. Ao mesmo tempo, em Milão, a praça do Duomo se pintava de nerazzurro. A Inter, finalmente, era campeã europeia. O choro do português, talvez, também tinha outro motivo: aquela seria sua última partida comandando o time italiano, já que estava acertado com o time da casa, o Real Madrid.
Outro símbolo daquela conquista, Eto’o talvez não tenha sido protagonista em campo como se esperava – e como comprovou seu talento na temporada seguinte. No entanto, foi decisivo em jogos importantes, contra Chelsea e Barcelona. De qualquer forma, como era, junto com Mourinho, um dos únicos vencedores da Liga dos Campeões daquele elenco, liderou a preleção da final ao lado do treinador.
Em entrevista à Gazzetta dello Sport, o atacante camaronês contou sobre a passagem. O discurso antes do jogo, relata, não foi longo. “Simplesmente disse ‘uma final não se joga, se vence. Ou morremos em campo e levamos a taça para Milão, ou morremos porque não voltamos para Milão. Então vamos voltar e trazer a taça’”, disse. Quem passou a palavra para Eto’o foi o próprio Mourinho, “e eu não esperava. Foi simplesmente incrível e uma outra demonstração de como é um cavalheiro”, completou.
Eto’o lembrou ainda da chegada ao clube, de quando recebeu a célebre mensagem de Materazzi no seu telefone. “Foi através daquilo que ele se tornou o meu irmão Marco. Um tal Materazzi me escrever ‘se você vir para a Inter, venceremos tudo’. Não tinha aquele número salvo e perguntei para [Demetrio] Albertini (com quem Samuel jogou no Barcelona). Nunca tinha acontecido algo assim comigo em toda a minha carreira. Aquela mensagem teve um grande peso para a minha escolha e fez nascer uma grande amizade”.
Outra história curiosa envolvendo o camaronês diz respeito a seu salário. “Existia uma distância grande em relação à proposta da Inter e ao que eu pedia. Quando encontrei [Massimo] Moratti (presidente), [Marco] Branca (diretor técnico) e os dirigentes que participaram da negociação, em um certo momento surpreendi todos ao dizer ‘transformamos essa diferença em bônus para o elenco se vencermos a Champions nos próximos dois anos’. Dez meses depois, éramos campeões da Europa”, confidenciou Eto’o.
Assim, a Inter entrou para o seleto grupo de detentores da Tríplice Coroa. Mourinho, que até fevereiro tinha um trabalho muito questionado pelo fracasso europeu na temporada anterior e pela arrogância nas entrevistas, terminou aquele maio de 2010 como ídolo máximo dos nerazzurri, após derrubar todas as dúvidas levantadas pela imprensa. Uma saída perfeita, embora dramática, que iludiu interistas ansiosos pela continuidade da dinastia.
Se o português seguiu sua carreira com sucesso, embora sem novamente voltar a levantar a “orelhuda”, a Inter adentrou na pior década da sua história, com apenas um título conquistado – o da Coppa Italia de 2011. A saída de Eto’o, em 2011, foi acompanhada pelas despedidas de Pandev, Thiago Motta, Sneijder, Maicon, Julio Cesar, Lúcio, Samuel, Cambiasso e Milito nos anos seguintes. Sem falar nas aposentadorias melancólicas de Materazzi, Iván Córdoba, Dejan Stankovic, Zanetti e Chivu, que marcaram o encerramento da era Moratti.
O presidente passou o controle a um grupo indonésio liderado por Erick Thohir e, pouco tempo depois, chegaram os chineses do conglomerado Suning. Sob controle asiático, a Inter mudou totalmente sua estrutura. Ernesto Paolillo, histórico dirigente nerazzurro e braço direito de Moratti, ajudou a elaborar algo que posteriormente obrigaria o clube a se reinventar de uma forma muito dolorosa: o Fair Play Financeiro. Durante sua gestão, o economista tentava ser a voz da razão de Moratti sobre seus gastos exorbitantes e a dependência das contas do clube com a cobertura da empresa da família, a companhia petrolífera Saras.
Contudo, torcedor interista nenhum abre mão das glórias da temporada 2009-10. Principalmente Moratti, que ainda hoje, aos 75 anos, vai diariamente na sua sala na galeria Corso Vittorio Emanuele II e fala à imprensa como um legítimo nerazzurro. Por outro lado, a negativa administração pós-Triplete expôs profundas falhas de gestão do clube, que agora se reinventa. De forma mais sustentável – como a rival Juventus provou, com sucesso, ser o caminho adequado –, a Beneamata tenta reencontrar as glórias da década passada e do mágico mês de maio de 2010.
Bayern de Munique 0-2 Inter
Bayern de Munique (4-2-3-1): Butt; Lahm, Van Buyten, Demichelis, Badstuber; Van Bommel, Schweinsteiger; Robben, Müller, Altintop (Klose); Olic (Gómez). Técnico: Louis van Gaal.
Inter (4-2-3-1): Julio Cesar; Maicon, Lúcio, Samuel, Chivu (Stankovic); Zanetti, Cambiasso; Eto’o, Sneijder, Pandev (Muntari); Milito (Materazzi). Técnico: José Mourinho.
Gols: Milito (35’; 1-0) e Milito (70’; 2-0)
Árbitro: Howard Webb (Inglaterra)
Cartões amarelos: Demichelis e Van Bommel (Bayern); Chivu (Inter)
Local e data: estádio Santiago Bernabéu, em Madri (Espanha), 22 de maio de 2010