Jogadores

Gianfranco Matteoli foi o cérebro da Inter dos recordes

A Sardenha é a terceira maior região italiana em extensão. Singular culturalmente, tem idioma e tradições que se diferenciam da Península Itálica. Em termos políticos, foi também muito importante para a composição do país como ele é atualmente. No quesito futebol, no entanto, a ilha se ressente de ter revelado grandes jogadores numa razão inversamente proporcional ao seu esse destaque no cenário pátrio. Um desses poucos ótimos futebolistas sardos foi o meia Gianfranco Matteoli.

Ao contrário de tantas belezas da Sardenha, Matteoli não se criou nas zonas litorâneas banhadas por águas mornas e cristalinas. Gianfranco nasceu em Nuoro e viveu em Ovodda, pequeno município localizado na parte central e montanhosa da ilha. Por lá, o garoto dividia seu tempo entre ajudar o pai na roça e bater uma bolinha com os amigos nos becos da cidade, onde já mostrava técnica com os dois pés e uma excelente visão de jogo.

Quando faltavam apenas nove dias para Matteoli completar 11 anos, em 1970, ele recebeu um grande presente de aniversário e foi tomado por imensa alegria. Como todo bom sardo, o garoto torcia para o Cagliari, único time realmente expressivo da região, e pode comemorar o seu primeiro scudetto em 12 de abril. O título só tornou mais intenso o sonho de vestir a camisa rossoblù e poder atuar ao lado do craque Luigi Riva. Para poder concretizá-lo, Gianfranco chegou a participar de peneiras feitas pelos isolani, mas não foi selecionado.

Logo depois de ter sido rejeitado pelo Cagliari, Matteoli rumou para o norte da Itália em 1975. O meio-campista entrou nas divisões de base do Cantù, time lombardo que disputava a Serie D, e estreou profissionalmente já em 1975-76. Não demorou para que fosse notado por Mino Favini, chefe de olheiros da maior equipe da província. No verão de 1976, Gianfranco acertava com o Como.

Matteoli teve suas primeiras aparições na elite com a camisa do Como, clube em que se destacou (imago)

Favini foi um dos mais competentes descobridores de talentos da Itália. Além de Matteoli, levou para o Como jogadores como Pietro Vierchowod, Luca Fusi, Enrico Annoni, Giovanni Invernizzi, Roberto Galia, Marco Simone, Stefano Borgonovo, Silvano Fontolan, Oliviero Garlini, Alessandro Scanziani e Gianluca Zambrotta. No caso de Gianfranco, Mino não se importou com os que desconfiavam do sardo por conta de sua baixa estatura – apenas 1,72m. A qualidade técnica do meia se sobressaía, assim como a capacidade de encontrar soluções tanto com a perna direita quanto com a esquerda.

Matteoli foi integrado ao time juvenil do Como e estreou na equipe adulta, treinada por Osvaldo Bagnoli, na Serie B da mesma temporada. O sardo passou um ano emprestado ao Giulianova, na terceira divisão, e voltou para ser reserva do elenco do time comasco que ficou com o título da própria Serie C1. Sem espaço pelos biancoblù, Gianfranco (que tinha 20 anos) rodou a Itália por mais três temporadas, sempre cedido por empréstimo.

Primeiro, o baixinho atuou na quarta categoria com a pequena Osimana e, após se destacar, foi para a Reggiana. Na Emília-Romanha, o meia ofensivo começou a entrar em evidência: foi o principal nome do título da terceirona e da boa campanha do time de Romano Fogli na Serie B. Depois de ser o jogador que mais vezes entrou em campo pelos grenás nas duas temporadas, o sardo voltou ao Como para ser aproveitado.

Às margens do Lago de Como, Matteoli foi treinado por Tarcisio Burgnich e teve como colegas alguns ótimos jogadores: os já citados Annoni, Fontolan, Fusi, Galia e Borgonovo, além de Giuliano Giuliani, Moreno Mannini, Antonio Tempestilli, Pasquale Bruno, Domenico Di Carlo, Egidio Notaristefano e Massimo Palanca. Era um elenco muito forte para a Serie B. Mas a segundona em 1982-83 também era casca grossa: tinha, por exemplo, Lazio e Milan, que haviam descido de categoria desde as punições sofridas por participação de atletas no escândalo Totonero.

O Como fez uma ótima campanha naquela Serie B, na qual se classificou logo atrás dos grandes e empatou em pontos com Catania e Cremonese. O triangular de desempate pelo acesso foi disputadíssimo: teve dois empates em 0 a 0 e um triunfo por 1 a 0, do Catania sobre os comascos, que levou os sicilianos à elite. Na segundona seguinte, os dois frustrados no spareggio subiram com tranquilidade, juntamente com a Atalanta. Titular absoluto dos lariani, Matteoli finalmente poderia mostrar seu futebol de qualidade no melhor campeonato do mundo naquela época.

Trapattoni entregou chaves do meio-campo a Matteoli e descobriu um diligente regista numa Inter de recordes (Juha Tamminen)

A Serie A já era vista pelo planeta inteiro e não demorou para que Gianfranco ganhasse elogios rasgados da revista Placar. Matteoli brilhava pelo Como, que era uma das surpresas da competição, e, para a publicação brasileira, tinha “toque sul-americano e ótima visão de jogo”. O trequartista atuou nas 30 rodadas do campeonato e marcou dois gols, sendo avaliado como um dos melhores na sua posição. Depois de contribuir enormemente para que a equipe de Ottavio Bianchi ficasse com o 11ª lugar e escapasse do rebaixamento, o sardo, então com 26 anos, foi vendido à ambiciosa Sampdoria de Paolo Mantovani.

Em Gênova, Matteoli não gozou de tanto prestígio com Eugenio Bersellini. O técnico apostava num futebol mais cauteloso e aquela Samp já tinha alguns meio-campistas qualificados, como Galia, o capitão Scanziani, Fausto Salsano e Graeme Souness. Sem falar que Roberto Mancini e Gianluca Vialli já eram absolutos no ataque e pouco contribuíam com a marcação.

Gianfranco, então, teve espaço limitado e não contribuiu o quanto podia. Após uma temporada 1985-86 pouco brilhante, na qual não foi protagonista nem no vice-campeonato da Coppa Italia nem na luta pela permanência na elite, o sardo contou com a sorte. Giovanni Trapattoni admirava o seu futebol e o indicou como uma das primeiras contratações de sua gestão na Inter.

O experiente treinador simplesmente construiu a sua equipe ao redor de Matteoli, que entrou em campo nas 47 partidas que a Beneamata disputou em 1986-87, com dois gols marcados. O habilidoso meia era o responsável por abastecer o ponta Pietro Fanna e os atacantes Alessandro Altobelli e Karl-Heinz Rummenigge – depois de lesão, o alemão foi substituído por Garlini. Marco Tardelli e Adriano Piraccini seguravam as pontas no centro do gramado, possibilitando maior liberdade ao sardo, que ajudou a Inter a ser terceira colocada na Serie A e fazer campanhas razoáveis nas copas. Assim, ele ganhou suas primeiras convocações para a seleção principal italiana.

Matteoli já vestia azzurro desde 1984, uma vez que vinha sendo chamado por Azeglio Vicini para a seleção sub-21 como um dos atletas acima do limite de idade permitidos pelo regulamento europeu. Depois de ser vice-campeão continental da categoria, em 1986, o sardo foi levado pelo próprio Vicini para a Nazionale dos “maiores”. No entanto, Gianfranco passou pouco menos de um ano no radar do técnico, que optou por outros jogadores para a continuidade do trabalho: Carlo Ancelotti, Fernando De Napoli, Nicola Berti e Giuseppe Giannini.

Apesar da técnica refinada, Matteoli teve carreira breve na seleção (imago)

O descarte por conta de Vicini coincidiu com uma queda no futebol de Matteoli e de toda a Inter em 1987-88. Trapattoni estava sendo pressionado por não ter conseguido repetir os bons resultados pela Juventus quando teve uma ideia genial: fazer o seu camisa 10 virar um número 4. Ou seja, recuar o trequartista Gianfranco para a função de regista.

Com os reforços que recebeu, Trap montou um 3-5-2 que se transmutava em 4-4-2 quando necessário. Na defesa, Giuseppe Bergomi era o titular pela direita, Riccardo Ferri fazia o lado oposto e Andrea Mandorlini atuava como líbero. O ataque tinha Aldo Serena como centroavante e Ramón Díaz na aproximação, enquanto a linha de meio-campo não contava com marcadores puros. Alessandro Bianchi e Andreas Brehme jogavam abertos, enquanto Lothar Matthäus e Berti usavam sua potência e imposição física para atacar a área dos rivais.

Por fim, tínhamos Matteoli, centralizado por Trapattoni atrás dos meias. Gianfranco se valia do novo posicionamento para, de forma privilegiada, colocar em prática sua visão de jogo, a finesse nos passes e a precisão nos lançamentos. Em suma, foi a mesma modificação tática que, anos depois, Carlo Mazzone propôs a Andrea Pirlo.

Na nova função, Matteoli se converteu no cérebro da equipe. Responsável pelo equilíbrio de um meio-campo bastante ofensivo, o sardo desenhou os planos para que seus colegas pudessem brilhar e a Inter conquistasse o scudetto com maestria e muitos recordes. Para começar, a Beneamata marcou época como a equipe que mais fez pontos na história da Serie A em campeonatos de 18 equipes: 58, quando as vitórias ainda valiam 2 pontos. Além disso, foi a formação que mais venceu, menos empatou e menos perdeu, tendo o melhor ataque e a defesa menos vazada. Avassaladora.

Embora o sucesso coletivo tenha sido notável e Matteoli se destacasse como uma peça que fazia a engrenagem girar, também houve espaço para que o meia tivesse os holofotes virados para si próprio. Isso ocorreu na vitória por 1 a 0 sobre o Cesena, no primeiro turno. Bastaram 9 segundos e 9 décimos para que o regista aproveitasse uma sobra de bola e mandasse um canhotaço no ângulo de Sebastiano Rossi, marcando o gol mais rápido da história da Serie A até então – depois, foi superado por Marco Branca e Paolo Poggi.

Na parte final da carreira, Matteoli realizou o sonho de defender o Cagliari (imago)

Gianfranco ainda realizou uma boa temporada pela Inter em 1989-90, na qual auxiliou o time a se sagrar vencedor da Supercopa Italiana e ser terceiro colocado da Serie A. Apesar do ótimo nível, não foi lembrado por Vicini para a Copa do Mundo, disputada justamente no Belpaese. Depois do torneio, em pleno verão de 1990, Matteoli receberia a chance de realizar seu maior sonho. O Cagliari retornava à elite após dois acessos consecutivos e fez uma proposta ao jogador sardo. O meia de 31 anos a aceitou de imediato e, após 166 jogos e oito gols pelos nerazzurri, voltou para a Sardenha.

Os casteddu eram treinados por Claudio Ranieri e tinham boas peças no elenco, como o zagueiro Gianluca Festa e o meio-campista Massimiliano Cappioli. Contratados juntamente a Matteoli, os demais reforços eram promissores: os uruguaios José Herrera, Daniel Fonseca e Enzo Francescoli. Consolidado como regista, Gianfranco foi o jogador de linha mais utilizado pelos rossoblù e contribuiu para a permanência na elite naquela temporada. Em 1991-92, já sob as ordens de Mazzone, recebeu a braçadeira de capitão e novamente teve participação fundamental para a salvezza do Cagliari.

Na campanha de 1992-93, o Cagliari perdeu Fonseca para o Napoli, mas o substituiu pelo belgo-brasileiro Luís Oliveira e manteve a espinha dorsal – reforçada por Francesco Moriero. A continuidade deu certo e o time conduzido pela genialidade de Matteoli e Francescoli foi a surpresa da Serie A: terminou em sexto e se classificou para a Copa Uefa. O veterano, do alto de seus 34 anos, teria a oportunidade de voltar a disputar competições europeias mas num outro patamar. Seria protagonista e a maior esperança do seu time do coração.

No ano da jornada europeia, o Cagliari já não contava com Mazzone, que foi para a Roma e levou Cappioli consigo. Francescoli também rumou para longe (foi para o Torino) e o time mudou suas características. Matteoli continuava pensando o jogo numa posição recuada e visava passes em profundidade para Oliveira, os velozes Moriero e Julio César Dely Valdés ou Massimiliano Allegri, que surgia como elemento surpresa. Funcionou.

Os casteddu se mantiveram na elite, mas surpreenderam mesmo na trajetória continental, já que foram até as semifinais da Copa Uefa. Matteoli marcou cinco vezes na temporada, sendo duas em vitórias sobre Dinamo Bucareste e Mechelen, pelo torneio europeu. Os sardos chegaram a eliminar também a Juventus, então detentora do troféu, mas caíram no duelo contra a Inter, antiga equipe de Gianfranco.

O meio-campista se tornou ídolo e capitão do time sardo (imago)

Depois do sucesso europeu, o capitão sardo foi seduzido por uma proposta do Perugia, que havia acabado de subir para a segunda divisão. Após apenas uma temporada e uma campanha de meio de tabela na Úmbria, Matteoli encerrou a carreira aos 36 anos. Ele retornaria ao Cagliari em 1999, como coordenador das divisões de base.

Seis anos depois, o ex-meia foi promovido pelo presidente Massimo Cellino a diretor de toda a área técnica rossoblù, ocupando o cargo até 2015, quando a recém-iniciada gestão de Tommaso Giulini decidiu renovar o setor. Matteoli também teve uma passagem como treinador interino dos cagliaritanos e faz parte do hall da fama do clube.

Fora do Cagliari, Matteoli arrumou trabalho nos outros times em que deixou saudades como jogador: foi consultor de Gianluca Festa no Como e, em 2016, acabou nomeado como olheiro da Inter. Com prestígio em alta, o sardo mostra sua competência também nos bastidores.

Gianfranco Matteoli
Nascimento: 21 de abril de 1959, em Nuoro, Itália
Posição: meio-campista
Clubes como jogador: Cantù (1975-76), Como (1976-77, 1978-79 e 1982-85), Giulianova (1977-78), Osimana (1979-80), Reggiana (1980-82), Sampdoria (1985-86), Inter (1986-90), Cagliari (1990-94) e Perugia (1994-95)
Títulos: Serie C1 (1979 e 1981), Serie A (1989) e Supercopa Italiana (1989)
Clubes como treinador: Cagliari (2001)
Seleção italiana: 6 jogos

Compartilhe!

Deixe um comentário