Depois do incrível terceiro lugar conquistado na Serie A 2006-07, a Lazio enfrentou um período difícil na liga. Sem conseguir ser competitiva, passou três temporadas do meio de tabela para baixo. O que talvez o torcedor biancoceleste não esperava é que um jovem brasileiro iria ajudar a mudar esse cenário e conquistar o coração dessa parte da capital italiana. Hernanes foi peça crucial no resgate do clube e, na Cidade Eterna, viveu o melhor momento de sua carreira.
Nascido no Recife, o pequeno Anderson sempre foi apaixonado pelo futebol. Em Pernambuco, vivia batendo bola sozinho horas antes dos jogos que disputava em um campo de terra batida. Além disso, treinava em sua escola particular, um período anterior ao início de sua trajetória no futsal. Ainda durante sua pré-adolescência, passou pelo salão no Santa Cruz e no Náutico. Quando chegou aos 14 anos, teve sua primeira oportunidade nos gramados assinando com o Unibol. Lá, foi visto pelos olheiros do São Paulo, que o recrutaram para as categorias de base da equipe paulista.
O começo não foi exatamente dos mais fáceis. Hernanes estreou em 2004, num amistoso contra o LA Galaxy, mas não se firmou como titular e nem participou das conquistas de Paulista, Mundial e Libertadores. Em 2005, fez 16 jogos no Brasileirão, mas acabou sendo emprestado no ano seguinte para o Santo André, onde viveu um momento-chave para sua carreira. Foi muito bem, disputando 43 partidas e marcando oito gols. Ali já figurava uma das características que levaria para o resto da carreira: balançar as redes. Para um meio-campista, especialmente volante, estava sempre acima da média no quesito.
Quando retornou ao São Paulo, participou de uma excursão do Tricolor pela Índia, ao lado de outros jogadores que não vinham sendo aproveitados, e se destacou na viagem. A comissão técnica avaliou que ele se saiu muito bem como segundo volante, e o treinador na época, Muricy Ramalho, deu a oportunidade que ele precisava, no momento em que buscava substitutos para Mineiro e Josué. Em 2007, Hernanes foi titular em 31 dos 38 jogos do Brasileirão e ajudou o Soberano a se sagrar campeão nacional.
Seu primeiro gol na campanha veio contra o Cruzeiro, na 13ª rodada. Ele começou fintando dois jogadores com a esquerda. Na sequência, trouxe para a perna direita e acertou um balaço no ângulo, de fora da área, sem nenhuma chance para o goleiro Fábio. Foi um lance que sintetizou várias características que se destacariam em sua carreira, em especial, a ambidestria e o chute de longa distância, marcas registradas do Profeta.
Campeão brasileiro em 2007, conseguiu conquistar o bi em 2008, com um protagonismo ainda maior: foi eleito o melhor jogador do torneio. É verdade que jogou menos vezes, devido a problemas com lesões e às Olimpíadas, mas marcou quatro gols e ainda deu quatro assistências. De quebra, ainda ganhou uma das duas vagas de volante na seleção do Bola de Prata da ESPN pela segunda vez seguida. Porém, no cenário continental, a sorte nunca veio: o São Paulo até era um dos favoritos da Copa Libertadores daquele ano, mas parou no Fluminense nas quartas de final.
Seu crescimento no período foi notório, até fora do país. O jornal inglês The Times o considerou como o talento mais promissor do mundo no começo de 2009, à frente de nomes conhecidos do futebol italiano, como Claudio Marchisio, Marek Hamsík, Ezequiel Lavezzi, Mario Balotelli e Sebastian Giovinco. Antes da virada da década, Hernanes fez sua temporada com maior número de participações diretas em gol, contribuindo com 15: marcou seis e forneceu nove assistências, levando o São Paulo ao terceiro lugar da Série A. Em 2010, jogou somente até agosto, quando finalmente se mudou para a Europa.
Antes de sua transferência, Hernanes seguiu no São Paulo até o fim da campanha tricolor na Libertadores, que terminou em eliminação para o Internacional nas semifinais da competição. Entre sondagens de grandes clubes da Europa, como o Milan, o destino do futebolista pernambucano foi a Lazio. Por cerca de 13,5 milhões de euros, ele assinou um contrato de cinco anos e se apresentou logo após disputar alguns amistosos com a seleção brasileira.
Com grande expectativa, a torcida laziale já estava por dentro do apelido do brasileiro. O surgimento da alcunha Profeta foi acidental. Em 2009, o jornalista Tiago Leifert, na época no comando do Globo Esporte, havia dado a ideia de um quadro especial para Hernanes devido às suas divagações, análises e reflexões durante as entrevistas, sempre fugindo do lugar comum. Tiago sugeriu uma vinheta que fosse intitulada com algo como “Hernanes, o filósofo”, mas um ruído de comunicação fez com que virasse “Hernanes, o Profeta”. Pegou, e muito. Nas palavras do próprio apresentador, ficou muito melhor.
Dono da camisa 8, o pernambucano foi um dos principais destaques da Lazio no Campeonato Italiano de 2010-11. O clube havia passado bem perto da zona de rebaixamento nas rodadas finais da Serie A anterior e mudou completamente de patamar após a chegada do volante. O esquema de Edy Reja, com quatro meio-campistas centrais, contava com a contenção de Cristian Brocchi, Cristian Ledesma e Stefano Mauri, dando maior liberdade para Hernanes jogar mais perto da área. Ocupando uma faixa de campo mais próxima ao gol do que estava acostumado, o brasileiro foi muito bem.
O novo contratado biancoceleste terminou a campanha como artilheiro do time. Foram 11 gols na liga, dois a mais do que Mauro Zárate, o vice. Entre os diversos jogos em que foi decisivo, Hernanes deu uma assistência e marcou um belo tento de falta contra a Inter no duelo do primeiro turno – vitória por 3 a 1. A metade inicial do campeonato da equipe da capital foi fantástica, e os aquilotti viraram o ano na terceira posição, mas faltou gás e elenco. Para o meia, a falta de férias (já que emendava a temporada anterior do Tricolor Paulista) pesou para a queda de rendimento. Mesmo assim, a Lazio teve um desfecho bem positivo, com o quinto lugar na Serie A e a classificação para a Liga Europa. Na Coppa Italia, eliminação contra a Roma, nas oitavas, com bola na rede do brasileiro.
O desempenho no certame continental na temporada seguinte não foi tão bom. Logo na primeira eliminatória, contra o Atlético de Madrid, os comandados de Reja não foram páreo: perderam em casa e fora para os colchoneros, que seriam campeões do torneio. Na Serie A, a Lazio teve mais uma boa campanha, mas insuficiente para garantir vaga na Champions League. Mesmo com a quarta posição, a Itália deixou de levar quatro representantes à maior competição de clubes da Europa, classificando somente os três melhores colocados – no caso, Juventus, Milan e Udinese.
Mas Hernanes não deixou cair o nível. Ainda impressionando pelo faro de gols, marcou oito vezes na Serie A, duas na Liga Europa e mais uma na Coppa Italia. Desta vez não foi o artilheiro da equipe, ficando atrás do badalado Miroslav Klose, adquirido no verão europeu de 2011. Entre os pontos altos do Profeta, os pênaltis convertidos, em turno e returno, nas duas vitórias contra a Roma ficaram marcados na memória da torcida biancoceleste. E a melhor parte dessa passagem na capital ainda estava por vir.
Edy Reja deixou o clube e deu lugar a Vladimir Petkovic para a temporada 2012-13. Em seu primeiro trabalho como treinador na Velha Bota, o bósnio naturalizado suíço conseguiu seu único título na carreira, que seria também o solitário de Hernanes com a camisa da Lazio. A Coppa Italia daquele ano foi a cereja do bolo da passagem do camisa 8 pela Cidade Eterna. Não teve nem gol na final nem assistência, mas nada que diminuísse o carinho da torcida e a importância do volante naquele time.
A vitória, inclusive, viria em cima da grande rival Roma. Em um Olímpico lotado, Senad Lulic foi o herói improvável que resolveu, com o único gol da partida. O resto da temporada laziale foi discreta, com apenas uma sétima colocação no Campeonato Italiano e mais uma eliminação no mata-mata da Liga Europa. Como sempre, Hernanes marcou muitas vezes (11 só na Serie A) e teve a sua última campanha no mais alto nível na Itália. Curiosamente, num outro Derby della Capitale da mesma temporada, o Profeta fez de tudo: anotou um golaço, perdeu pênalti e ainda cometeu penalidade que permitiu à rival empatar a partida.
O protagonismo de Hernanes não foi o mesmo no começo do Campeonato Italiano em 2013. Mesmo assim, a Inter se interessou pelo brasileiro e garantiu, pagando 18 milhões de euros em janeiro de 2014, a contratação do meio-campista. A despedida não foi fácil: entre os diversos momentos marcantes na Lazio, sua saída de carro em um dos últimos treinos no clube é lembrada como símbolo de carinho, tanto dele para com a torcida quanto do contrário. Ao tirar fotos com os torcedores, o pernambucano não segurou o choro e foi abraçado pelos laziali. Sua passagem pela Cidade Eterna foi encerrada com 156 aparições, 41 gols e 22 assistências.
Depois de deixar a Lazio, Hernanes não repetiu o sucesso da capital, tendo dificuldades de encontrar regularidade. O Profeta teve poucos momentos felizes na Inter, e alguns até controversos. Nos seis meses finais de temporada, terminou em quinto lugar com a Beneamata. Na primeira partida contra o antigo clube, marcou um belo gol de esquerda, de fora da área, com um míssil no cantinho. A comemoração foi discreta, quase imperceptível, já que a equipe de Walter Mazzarri vencia por 3 a 1. Bem diferente do que aconteceu quando foi ao Olímpico.
Na casa da Lazio, Hernanes fez sua única doppietta pelos nerazzurri. Talvez na sua melhor exibição em solo italiano após deixar a equipe celeste, o meio-campista acabou com a partida. Começou com um belo gol de falta, com a perna esquerda, se tornando o primeiro a anotar na Serie A em tiros livres cobrados com pés diferentes – o outro, de direita, foi num Inter-Atalanta. O feito raríssimo foi elogiado na época por outros especialistas na bola parada, como Rogério Ceni, Juninho Pernambucano e Zico. Alguns anos depois, Simone Verdi elevaria o sarrafo. Não só repetiu o feito do brasileiro como o fez num mesmo jogo, enquanto atuava pelo Bologna, em 2017.
O segundo tento do Profeta naquele duelo contra a Lazio veio com a bola rolando mesmo, novamente com a perna esquerda. Durante o jogo, foi vaiado, mas nada que abalasse a ótima relação com a torcida romana. Apesar desse grande momento, foi reserva na maior parte do tempo, com Mazzarri e Roberto Mancini, e fez apenas 12 partidas como titular. A Inter fez uma campanha péssima: terminou na oitava posição, longe das competições europeias. Pouco aproveitado, recebeu uma proposta para deixar o clube e nem precisou pensar duas vezes para encerrar sua passagem pelos nerazzurri com 52 aparições, sete gols e 10 assistências. Surpreendentemente, a Juventus se interessou pelo brasileiro e o levou à Turim pela bagatela de 13 milhões de euros.
Massimiliano Allegri havia acabado de perder seu regista, Andrea Pirlo, que não renovou seu contrato e seguiu para os Estados Unidos. Além disso, Arturo Vidal também deixou o clube e foi para o Bayern de Munique. Hernanes, que na Lazio se tornou um meia-atacante, mais ofensivo do que nos tempos de São Paulo, encararia o trabalho de recuar. O treinador da Juve buscava utilizar o jogador como primeiro volante, na função do antigo Maestro, mas a sua adaptação não foi das mais simples.
Quem acabou assumindo a titularidade na maior parte do tempo foi Marchisio. Pelo menos até abril de 2016, foi quem comandou o setor à frente da zaga, e Hernanes passou a ser mais uma figura para fortalecer o elenco e ajudar jogadores mais jovens com sua experiência. Talvez sua exibição mais memorável, que mesmo assim não foi de um grande destaque, aconteceu no jogo de ida das oitavas de final da Champions League, contra o Bayern. Entrando no lugar justamente de Claudio, o brasileiro foi preciso e ajudou no empate da Vecchia Signora após os alemães abrirem dois gols de vantagem.
Fora isso, poucos momentos e até poucos gols marcados. Atuando ainda menos do que nos tempos de Inter, seu período na Itália parecia estar com os dias contados. Já com 31 anos, recebeu uma proposta financeiramente interessante do Hebei, da China, e deu adeus ao continente europeu, com apenas 35 aparições e dois tentos em bianconero. Pela Juventus, Hernanes também colocou mais duas copas nacionais e dois títulos de Serie A no currículo.
Na Ásia, o Profeta ficou praticamente inutilizado. Chegou até treinar pelo time B do Hebei, devido a regras de inscrições de estrangeiros, e viu ali uma oportunidade de conseguir voltar ao clube do coração. O São Paulo, em situação delicada no Brasileirão, buscou repatriar o seu ídolo por empréstimo e conseguiu. Em julho de 2017, retornou ao Tricolor, que ocupava a 18ª colocação do Brasileiro. Segundo o próprio meio-campista, este período representou o seu auge enquanto jogador de futebol.
O São Paulo foi o terceiro time que mais pontuou na liga após sua chegada. Atuando em apenas 19 jogos, marcou nove gols e ainda deu três assistências. O desempenho foi tão assombroso que, mesmo em um clube que lutava contra o rebaixamento, Hernanes foi um nome bastante falado quando o assunto era seleção brasileira. No entanto, com a Amarelinha, nunca conseguiu vingar.
Apesar do excelente momento, não chegou a ser convocado por Tite no ciclo para a Copa do Mundo da Rússia. O período em que Hernanes teve maior regularidade pela equipe nacional foi sob o comando de Felipão, antes da Copa de 2014. Atuou até na Copa das Confederações conquistada pelo Brasil, mas nunca foi titular absoluto ou destaque. Seu último jogo representando seu país acabou sendo mesmo a melancólica disputa pelo terceiro lugar do Mundial contra a Holanda, em Brasília.
No ano de 2018, o São Paulo até queria renovar o empréstimo ou contratar em definitivo seu ídolo, mas faltava resolver a parte financeira. O Hebei não estava mais disposto a liberar o atleta, já que algumas mudanças de regulamento na China facilitaram a introdução do Hernanes à equipe. Assim que teve fim o período de cessão, o meia ficou no futebol asiático por mais um ano quando, finalmente, o Tricolor Paulista conseguiu repatriá-lo.
Porém, de 2019 para frente, ele nunca mais foi o mesmo. Não conseguiu repetir as excelentes atuações que teve no começo de carreira, muito menos exibiu o talento que fez brilhar os olhos da torcida são-paulina dois anos antes. As lesões também começaram a atrapalhar qualquer sequência e, assim, Hernanes foi se arrastando em seus últimos anos como jogador profissional.
A última dança veio em sua terra natal. Depois de uma despedida emocionante do Soberano, Hernanes chegou a Pernambuco no meio de 2021 para realizar o sonho de defender o Sport, seu time de infância. O desfecho não foi dos melhores: não marcou nenhum gol nem deu nenhuma assistência e o Leão terminou o Campeonato Brasileiro rebaixado para a segunda divisão.
Sem conseguir ser protagonista, Hernanes repensou a continuidade como atleta. Sua meta era ir até os 38 anos, mas optou por encerrar a carreira aos 36 e decidiu oficializar a decisão com um evento no Morumbi, em maio de 2022. Ao conversar com a imprensa, assim como em toda a sua trajetória, fugiu do lugar comum. Falou sobre agradecer ao esporte e, especificamente, à bola, o objeto que ele contou ter dado de cara ao entrar num táxi para ir ao estádio. A sucessiva sucessão de sucessões que se sucedem sucessivamente mostrou sempre se suceder de maneira especial para Anderson, até mesmo depois de pendurar as chuteiras, em seu último ato “profético”.
Ou não, já que o pernambucano voltou atrás na sua decisão pouco mais de um ano depois, e acertou com o Sale, da sétima divisão italiana, retornando aos gramados para disputar o grupo do Piemonte na Prima Categoria. Sem dúvidas, Hernanes também fugiu do lugar comum nessa escolha.
Anderson Hernanes de Carvalho Viana Lima
Nascimento: 29 de maio de 1985, em Recife (PE)
Posição: meio-campista
Clubes: São Paulo (2004-06, 2007-10, 2017 e 2019-21), Santo André (2006), Lazio (2010-14), Inter (2014-15), Juventus (2015-17), Hebei (2017 e 2018), Sport (2021) e Sale (2023-24)
Títulos: Campeonato Brasileiro (2007 e 2008), Coppa Italia (2013, 2016 e 2017), Copa das Confederações (2013), Serie A (2016 e 2017) e Campeonato Paulista (2021)
Seleção brasileira: 27 jogos e 2 gols