A paciência e a concentração são duas das virtudes mais notáveis num bom goleiro. Paciência, porque a carreira de um atleta da posição costuma ser longa e as primeiras chances geralmente custam a aparecer – jogadores de linha costumam despontar mais rápido. Além disso, nem sempre os goleiros estão ativos dentro de um jogo e devem observar parte das ações acontecendo de longe, ao mesmo tempo em que precisam estar sempre atentos e focados para quando forem chamados à causa. Hoje treinador, o ex-goleiro Júlio Sérgio Bertagnoli viveu um pouco de tudo isso em sua carreira, em especial no futebol italiano, onde defendeu Roma e Lecce.
Persistência é outro termo que resume a carreira do ex-camisa 27 da Roma. Na Cidade Eterna, o paulista viveu praticamente tudo o que era possível como jogador. Foram três temporadas completas no banco da equipe giallorossa, como terceira opção. Quando finalmente ganhou uma chance, aproveitou e mostrou que sua altura (1,84 m) não era problema. Apresentou suas qualidades, como reflexo e explosão, jogou lesionado, foi campeão, voltou para o banco e foi emprestado. Voltou, mas acabou afastado da equipe e rescindiu o seu contrato seis meses antes do fim, retornando para o Brasil. Nesse período, conseguiu gravar seu nome na história recente da Loba, ganhando a confiança da torcida romanista.
Júlio Sérgio nasceu em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo. Foi no noroeste paulista que o garoto realizou as primeiras defesas e iniciou sua trajetória como goleiro nas categorias de base do Botafogo-SP, em 1995. Permaneceu no clube por quatro anos, completando a transição para a equipe profissional. O esporte do interior está no sangue do ex-goleiro. Do Pantera Negra, saiu para jogar por equipes como Sertãozinho e Francana, também passou pelo curitibano J.Malucelli (à época chamado de Malutrom) antes de retornar para Ribeirão Preto para, em 2001, assinar pelo Comercial, grande rival do clube que o formou. No ano seguinte, quando já tinha 24 anos, deixou o quase anonimato para trás graças a Emerson Leão.
Por indicação do polêmico treinador, Júlio Sérgio foi contratado em 2002 pelo Santos, depois de disputar a Série A2 do Campeonato Paulista. Seria a sombra de Fábio Costa, que estava lesionado naquele momento. O ribeirão-pretano estreou pelo clube justamente contra sua equipe anterior: goleada de 5 a 0, em um amistoso no dia 13 de julho de 2002. Bertagnoli foi titular durante boa parte do Campeonato Brasileiro, ajudando o clube a encerrar com o jejum de 34 anos sem o título da Série A. Por causa de uma lesão, não jogou a fase mata-mata, mas permaneceu na equipe até 2004, ano que venceu novamente o torneio nacional, dessa vez como reserva.
Entre 2004 e 2006, Júlio Sérgio atuou pelo Juventude e teve passagens relâmpagos por Coritiba e América-SP – no Coxa, não chegou a atuar. Apesar de estar perambulando pelo país, o goleiro pensava alto: como seus avós eram de Ripa Teatina, na região dos Abruzos, ele tinha direito à cidadania italiana, o que facilitaria a sua entrada no futebol europeu. Com a conclusão do processo para obtenção do passaporte da Comunidade Europeia, Bertagnoli deixou o América em março de 2006 para passar por período de testes na Roma.
Em julho, Júlio Sérgio assinou contrato de uma temporada, com a equipe da Cidade Eterna, incluindo uma cláusula pela possibilidade de prolongamento por mais três anos. A princípio, o brasileiro chegava para disputar, com Gianluca Curci, o posto de reserva do também brasileiro Doni. O italiano levou a melhor nesta disputa. Como terceira opção, Júlio Sérgio não teve oportunidades em sua primeira campanha na Europa. Pelo seu profissionalismo, ganhou a confiança do temperamental Luciano Spalletti, que ajudou a concluir a renovação contratual do arqueiro. Com novo vínculo, o goleiro continuou aguardando sua chance.
Do banco de reservas, Bertagnoli viu a Roma conquistar os títulos da Coppa Italia de 2006-07 e 2007-08, além da Supercopa de 2007 – este último, viu das tribunas. Enquanto Doni jogava boa parte das partidas, Curci o substituiu em alguns duelos das retas finais da Serie A e era escalado nas partidas da Coppa Italia. Paciente, Júlio Sérgio seguiu treinando, sendo relacionado para os jogos e se tornou peça importante no vestiário da Roma, que tinha a presença de nomes importantes, como Francesco Totti, Daniele De Rossi, Simone Perrotta, David Pizarro, Philippe Mexès, Nicolás Burdisso e Luca Toni. Pelo comportamento fora das quatro linhas, foi elogiado pelo técnico Luciano Spalletti, que declarou na época que o brasileiro era “o melhor terceiro goleiro do mundo”.
No final de 2007-08, Curci deixou o clube. A Roma buscou no mercado outro brasileiro: Artur Moraes. Numa nova disputa interna, Júlio Sérgio permaneceu como terceira opção. Até que chegou o dia 30 de agosto de 2009. Doni estava machucado e Artur, que disputou alguns jogos da fase preliminar da Liga Europa, não foi nada bem: no total, tomou oito gols em quatro partidas. Sendo assim, o camisa 27 enfim ganhou sua primeira chance.
O resultado, ao menos hoje, é o que menos importa para ele. Em seu debute, a Roma sofreu derrota por 3 a 1 para a Juventus, em pleno Olímpico: gols de Diego (duas vezes) e Felipe Melo para a Velha Senhora e De Rossi para a equipe anfitriã. O clássico válido pela 2ª rodada da Serie A de 2009-10 encerrou a passagem de Spalletti, que foi demitido após o confronto, e deu início à sequência como titular de Júlio Sérgio.
Com Claudio Ranieri no comando, o brasileiro passou a atuar mais. Naquela mesma temporada, Júlio Sérgio disputou 37 dos 51 jogos da equipe, após decisão do treinador de barrar Doni e lhe dar mais chances. Foi titular em boa parte da Serie A, ganhando destaque nos dérbis contra a Lazio: no primeiro, uma defesa difícil diante de Stefano Mauri fez com que os giallorossi encerrassem uma sequência de sete meses seguidos levando gols. No clássico do returno, Bertagnoli defendeu pênalti cobrado por Sergio Floccari, quando os celestes venciam por 1 a 0. No fim das contas, a Roma virou e venceu por 2 a 1.
Aquele campeonato terminou com título da Inter e vice-campeonato romanista. Os rivais se enfrentaram na final da Coppa daquela temporada e os nerazzurri levaram a melhor novamente – dias depois também venceram a Champions League e conquistaram a Tríplice Coroa. Júlio Sérgio esteve à frente da meta da Roma nos decisivos confrontos e, mesmo tendo ido bem (sobretudo no jogo da Serie A), acabou não superando seu conterrâneo Doni, que havia sido titular e campeão contra os milaneses em duas ocasiões antes de 2009. Curiosamente, além de terem nascido na mesma cidade, os dois arqueiros paulistas também dividiram vestiários no Santos e no Juventude. A rivalidade, sempre saudável, vinha de longa data.
Em sua passagem pela Roma, Júlio Sérgio teve mais uma temporada de frequente utilização. O ribeirão-pretano começou como titular em 2010-11, mas logo na 4ª rodada da Serie A teve sua continuidade comprometida. Bertagnoli sofreu uma fissura no osso do pé no final do confronto perdido por 2 a 1 contra o Brescia, na Lombardia, e ficou um mês longe dos gramados. Naquela partida, no entanto, Ranieri já havia realizado todas as substituições e o camisa 27 teve de permanecer em campo. O episódio ficou marcado para o goleiro e a tifoseria. “Ganhou uma proporção maior. Até hoje as pessoas comentam. Jogar lesionado me fez ficar mais próximo dos torcedores”, diz Júlio Sérgio.
Na mesma temporada, Júlio teve seu contrato ampliado para 2014 e novamente brilhou nos clássicos contra a Lazio, mas novamente uma troca no comando técnico fez as coisas mudarem para ele em Trigoria. Em fevereiro de 2011, Vincenzo Montella assumiu de forma interina e voltou a dar chances para Doni, que no término da temporada rescindiria seu contrato para jogar no Liverpool. No mesmo período, uma alteração mais profunda ocorreu na Roma, com a chegada dos donos americanos, que assumiram o controle acionário da equipe giallorossa. Segundo Júlio Sérgio, a nova direção, sob as ordens de Thomas DiBenedetto e James Pallotta, informou que ele não seria mais utilizado. Em 2011-12, Bertagnoli foi cedido por empréstimo para o Lecce.
A passagem pela península salentina, porém, não foi longa. Com uma nova lesão, desta vez no joelho, Júlio Sérgio realizou apenas 11 partidas pelo Lecce – dez pela Serie A e uma pela Coppa. À época, o time era comandado por Eusebio Di Francesco, atual treinador da Roma. DiFra foi demitido, Serse Cosmi o substituiu, mas não houve jeito: a equipe apuliana acabou rebaixada.
Em julho de 2012, o paulista retornou à Cidade Eterna e permaneceu no clube treinando, aguardando por uma oportunidade que não mais viria a ter. O fim da história do ex-goleiro Júlio Sérgio com o futebol italiano aconteceu de forma amigável, com rescisão contratual realizada na virada do ano de 2013 para 2014. Bertagnoli ainda trabalhou com Luis Enrique, Zdenek Zeman, Aurelio Andreazzoli e Rudi Garcia.
Uma última tentativa de seguir atuando ocorreu no Comercial, mas o corpo não aguentava mais. “Tive um problema na panturrilha, quase cirúrgico. Eu não queria mais operar, então decidi parar de jogar”, relata Júlio Sérgio, que pendurou as chuteiras em 2014, depois de cinco jogos realizados pelo time de Ribeirão Preto. Logo em seguida, Bertagnoli iniciou sua trajetória como treinador. “Um dia espero voltar para a Europa, como técnico. Estou feliz e no caminho certo”, pondera o ex-goleiro.
Confira a entrevista completa feita com Júlio Sérgio e sua ficha técnica.
Como é, atualmente, a sua relação com parte do elenco da Roma? Como foi conviver com tetracampeões mundiais (Totti, De Rossi, Perrotta e Toni), jogadores de temperamento mais complicado (Mexès, Ménez, Heinze, Burdisso) e os brasileiros do elenco?
Lá tem algo diferente daqui. Quando um jogador sai do clube, cada um vive sua vida. Não tem essa questão de sempre se encontrar, sair juntos. O Totti, por exemplo, é um cara tranquilo. Engraçado, gosta de contar piadas. Os outros eram a mesma coisa. O grupo, apesar das diferenças em temperamentos, formou uma família. Tive uma amizade maior com Burdisso e Pizarro. Com o tempo acaba perdendo um pouco dos contatos, as carreiras seguem em diferentes frentes. Já com os brasileiros (principalmente os goleiros) era uma relação profissional de respeito. Fora de campo o estilo era diferente, cada um cuidava da sua vida.
Qual a importância de Luciano Spalletti na sua carreira?
Se não fosse ele não teria permanecido na Roma. Foi ele que me avaliou durante a primeira temporada e pediu minha renovação de contrato. Meu relacionamento com ele foi bastante próximo, ele tinha as preferências dele. É normal e eu entendia. O jogador precisa ser inteligente, entender o momento. Eu esperei a minha oportunidade e ela chegou no último jogo dele (Spalletti). Perdemos de 3 a 1 para a Juventus, mas ele segue sendo uma pessoa importante pra mim. Trago muito dele para o meu modelo de trabalho como técnico, aprendi muitas coisas com ele e implanto nos meus treinos e jogos.
Você teve dificuldades por causa da sua altura, que é considerada baixa para a posição de goleiro?
Essa questão é bem brasileira. O Casillas tem cerca de 1,85m, o Valdés também. Os principais goleiros da história da Roma também não foram altos, o [Franco] Tancredi é o melhor exemplo. Na Europa esse fator (altura) não é primordial, basta ter qualidade e talento. Um menino de 13 anos, no Brasil, não é levado a sério se for “baixo” e quiser ser goleiro. É absurdo isso, muitos talentos são perdidos e por isso estamos produzindo menos talentos na posição. A exigência, no futebol europeu, é com a parte técnica.
Como foi vencer o Derby Della Capitale?
É diferente de qualquer partida. É um dos principais clássico do mundo. Na minha opinião, no mesmo nível de Boca contra River Plate, Gre-nal, clássico de Manchester. A cidade para e fico feliz de ter me destacado em jogos contra a Lazio.
Os anos na Itália foram os melhores da sua carreira?
Tecnicamente, sim. A Roma evoluiu muito, passei muito tempo apenas treinando, mas aproveitei bem as chances que tive, principalmente em 2009-10. Viver na Itália, em Roma, é muito fácil. É uma cidade acolhedora, o futebol é de fácil adaptação.
Aquele duelo contra a Sampdoria (pela 35ª rodada da Serie A de 2009-10) permanece na sua memória?
Se tivéssemos vencido a Serie A em 2009-10, eu certamente estaria morando até hoje em Roma. Perdemos o título no intervalo do jogo contra a Samp. Algumas coisas aconteceram, discussões mais “alegres”, com uns reclamando que o outro não tocava a bola, outro dizendo que era para chutar. A briga chegou a ganhar um pouco de corpo, mas o “mister” (Ranieri) foi ágil e conteve os ânimos. Voltamos para o segundo tempo, mas o time não estava mais concentrado. Foi tudo muito rápido e perdemos o título naquela virada de tempo. [Nota: a Roma vencia o jogo por 1 a 0 e sofreu a virada na etapa final da partida, perdendo o jogo por 2 a 1 e a liderança do campeonato, que foi reassumida pela Inter]
Por todo o destaque que você teve entre 2009 a 2011, como encarou quando a direção “deu ordem” para que você não fosse mais escalado?
Sendo profissional. Houve a troca de comando, em especial na sociedade. O novo diretor esportivo (Walter Sabatini) assumiu e disse que eu não ia mais jogar na Roma. Fui emprestado pelo Lecce, tive lesão séria no joelho e fiquei mais de um ano parado. Quando voltei, o técnico já era o Rudi (Garcia) e eu segui treinando com tranquilidade. Na época, procurei outros clubes para jogar via empréstimo, mas os times menores não tinham condições de arcar com custos do meu salário. Isso dificultou um pouco, mas cumpri meu contrato até quase o final. Restando seis meses para acabar, pedi a rescisão. Pelo modo que me comportei, me pagaram 90% do que eu teria que receber. Voltei para o Brasil na sequência.
Voltou já pensando em iniciar a carreira como treinador?
A ideia já existia desde 2011, quando tive a lesão no joelho (no Lecce). Estava com 33 anos e pensava em analisar planos para o futuro. Quem me ajudou a ter certeza que eu deveria seguir como técnico foi o Toninho Cecílio (técnico do Comercial, em 2014). Ele me fez ver várias coisas, conversou muito comigo e juntei tudo o que tinha aprendido na Europa para entrar de cabeça nessa fase.
Você continua acompanhando o futebol italiano? O que acredita que esteja acontecendo com a Roma?
Vou torcer sempre para a Roma. Acompanhar os jogos está mais difícil pela falta de transmissão [na TV], mas espero poder visitar a cidade em breve para acompanhar alguma partida. Sobre a fase da equipe, é resultado do planejamento de pensar no futuro. Os jovens podem se tornar grandes jogadores, mas é um preço a curto prazo. Acredito que com o ritmo de jogo e retorno de atletas importantes (lesionados, como Perotti, De Rossi e Dzeko) os mais novos vão render mais. Vencer a Champions é difícil, assim como a Serie A. O objetivo deve ser buscar uma posição entre os quatro primeiros, lutar pela Coppa e evoluir nas próximas temporadas.
Pela Roma você trabalhou diretamente com Spalletti, Ranieri, Montella, Luis Enrique, Andreazzoli e Garcia. No Lecce, teve a chance de conviver com o Di Francesco. O que de cada um você faz questão de ter na sua rotina como treinador?
O diferente de lá (Europa) é que o treinador precisa se adaptar à filosofia do clube. O treinador implanta alguns pontos, mas existem as diretrizes do clube para serem seguidas. Aqui no Brasil, o treinador muda tudo. Lá é diferente e por isso pude absorver o que cada um tem de melhor para usar como técnico. Por exemplo… a organização e o sistema defensivo do Spalletti, a relação dentro do vestiário que aprendi com o Rudi Garcia e a padronização tática do Luis Enrique. Eu faço um “mix” do que pude tirar de cada um e trago para meu dia a dia.
Você imaginava que o Di Francesco poderia chegar onde está atualmente?
Ele é um cara excepcional, muito legal, bacana mesmo. Foi ele que me pediu para ser contratado (nos tempos de Lecce). É óbvio que no começo não foi possível fazer muitas previsões. O Lecce, no geral, não foi tão bem. Ele cresceu depois que foi muito bem no Sassuolo, mostrando que o futebol é dinâmico. Hoje está com pressão, sendo contestado. Trabalhar em Roma é difícil, mas ele vai reverter essa fase. É merecedor.
Júlio Sérgio Bertagnoli
Nascimento: 8 de novembro de 1978, em Ribeirão Preto (SP)
Posição: goleiro
Clubes como jogador: Botafogo-SP (1995-99), Internacional de Bebedouro-SP (2000), Sertãozinho (2000), Francana (2001), J.Malucelli (2001), Comercial-SP (2001), Santos (2002-04), Juventude (2005), Coritiba (2006), América-SP (2006), Roma (2006-13), Lecce (2011-12) e Comercial-SP (2014).
Títulos como jogador: Campeonato Brasileiro (2002 e 2004) e Coppa Italia (2007 e 2008)
Clubes como treinador: CRAC (2016-17), Sertãozinho (2017), Olímpia-SP (2017), Prudentópolis-PR (2018), Linense (2018), Marília (2020) e Votuporanguense (2020)