Na segunda metade da década de 2000, a Inter viveu amplo domínio em âmbito nacional: no começo da temporada 2009-10, o clube dirigido por Massimo Moratti somava quatro títulos consecutivos da Serie A e ia em busca do quinto, para igualar os recordes obtidos por Juventus, nos anos 1930, e Torino, no decênio seguinte. No fechamento do período, a maior goleada sobre o Milan desde 1974 seria a abertura perfeita para o ano futebolístico mais vitorioso da história da Beneamata – mas que antes contou com mudanças fundamentais no elenco para alcançar tal sucesso.
Sonhando em ir além dos troféus conquistados na Bota, a cobiçada Champions League passou a ser o principal objetivo e mudanças no comando foram feitas com intuito de cumprir a missão. Em junho de 2008, um ano antes da goleada histórica, José Mourinho desembarcou na Itália e fez valer a alcunha de Special One. Apesar de não vencer a competição europeia de cara, o português deu continuidade ao domínio nacional e conquistou a liga com 10 pontos de diferença para Milan e Juventus, segundo e terceiro colocados, respectivamente. De quebra, teve também o artilheiro da competição, Zlatan Ibrahimovic.
O sueco ajudou seu time a terminar o torneio com o melhor ataque da competição, marcando 25 dos 70 gols. Porém, Ibra viria a ser negociado em uma troca de grande impacto com o Barcelona. Na temporada seguinte, ele fez as malas para a Catalunha enquanto o camaronês Samuel Eto’o deixava a Espanha no caminho inverso, trazendo junto mais 46 milhões de euros para os cofres da Inter. Vestindo as cores dos nerazzurri, o Rei Leão marcou logo na estreia, convertendo cobrança de pênalti no empate contra o Bari por 1 a 1 na primeira rodada da Serie A. Na jornada seguinte, seria coadjuvante no baile sobre o rival de Milão.
Os dois pontos perdidos na abertura da liga acabaram sendo apenas um acidente de percurso para Mourinho e seus comandados, sendo alguns deles novidades entre os titulares: o camisa 10 Wesley Sneijder, vindo do Real Madrid, e o ítalo-brasileiro Thiago Motta reforçaram o setor do meio-campo, que jogava em um losango, formado ainda pelo ídolo Javier Zanetti e por Dejan Stankovic. Na frente, somando à chegada de Eto’o, Diego Milito vinha como nome menos badalado, apesar de ter sido vice-artilheiro da Serie A pelo Genoa. O argentino foi determinante no triunfo fantástico no Derby della Madonnina.
Jogando como visitante no San Siro, a Inter em nenhum momento foi acuada pelo Milan, que na época tinha Leonardo como técnico. Na escalação do brasileiro, o time titular que entrou no clássico contava com três compatriotas: Thiago Silva, dupla de zaga de Alessandro Nesta na linha de defesa composta ainda pelos laterais Marek Jankulovski e Gianluca Zambrotta; Ronaldinho Gaúcho, meia ofensivo do losango formado com Mathieu Flamini, Andrea Pirlo e Gennaro Gattuso; e Alexandre Pato, parceiro de ataque de Marco Borriello.
Debaixo das traves, Marco Storari substituiu Dida, lesionado. E com cinco minutos de bola rolando, já foi exigido. Estreante pela equipe nerazzurra, Sneijder experimentou de longe e forçou boa defesa do goleiro italiano, que espalmou para cima e segurou seu próprio rebote.
No contra-ataque do lance, Lúcio fez excelente desarme em cima de Alexandre Pato, saiu para jogo e levou entrada duríssima de Flamini. O francês recebeu amarelo e o clássico seguia subindo de temperatura com entradas cada vez mais fortes. Na bola, as duas equipes estavam dificultando a saída e impedindo ataques com passes curtos.
Aos 12 minutos, a Inter conseguiu a primeira construção com maior perigo em frente à área adversária, mas terminou a jogada cruzando nas mãos de Storari. Em reposição longa, Pato foi acionado em velocidade, deixou Lúcio para trás, chegando na linha de fundo. O atacante brasileiro tocou para Ronaldinho, que finalizou mal, por cima do gol. Na sequência, o camisa 80 do Milan ficou revoltado pedindo por pênalti após suposta falta de Stankovic na finalização. Nicola Rizzoli, bem posicionado, observou o lance e percebeu, de forma correta, a simulação.
Do outro lado do campo, Julio Cesar foi exigido pela primeira vez dois minutos depois: em bola alçada na área, o goleiro cortou um cruzamento, mas quase deixou o rebote respingar nos pés de Borriello. Após o susto, o jogo chegou a dar a impressão de que iria ficar truncado. Até que, numa belíssima jogada coletiva, o time de Mourinho desatou o primeiro nó do duelo, abrindo o caminho para uma vitória confortável.
Thiago Motta recebeu de Zanetti, tocou para Eto’o na entrada da área e correu em direção ao gol. O camaronês, indo da direita para a esquerda, passou de primeira para Milito, enquanto era acompanhado por Thiago Silva. Marcado por Nesta, o argentino aproveitou o espaço deixado pelo zagueiro brasileiro e achou Motta na penetração. O ítalo-brasileiro, cara a cara com Storari, chapou no canto superior esquerdo e completou a excelente triangulação, abrindo o placar aos 27 minutos.
Com um Milan mais exposto, a Beneamata foi letal no primeiro contra-ataque que conseguiu encaixar para ampliar a vantagem. Aos 33 minutos, Walter Samuel fez falta dura em Pato e foi amarelado. Na cobrança, Pirlo não achou ninguém e a bola sobrou com Maicon, pela direita. Do campo de defesa, o lateral brasileiro lançou Eto’o em velocidade, pouco depois da linha do meio-campo, livre de marcação. No desespero, Gattuso perseguiu o camisa 9 nerazzurro até dentro da área, onde agarrou o adversário pelo peito e fez pênalti, levando cartão amarelo.
Quem tomou para si a responsabilidade de bater a penalidade máxima foi Milito. Sem muita cerimônia, o Príncipe partiu em direção a cal assim que Rizzoli apitou e encheu o pé. Enquanto Storari caía para a direita, a bola entrou como um foguete no gol e estufou o teto da rede do San Siro, garantindo assim uma margem tranquila.
Além de precisar buscar uma desvantagem de dois gols, Leonardo ganhou mais uma enorme dor de cabeça antes do intervalo. Com um problema no tornozelo esquerdo, Gattuso ameaçou sair de campo pela lesão, porém, retornou para manter a igualdade numérica enquanto o reserva, Clarence Seedorf, se preparava para entrar. Sem cuidado, e com uma dose considerável de agressividade, o volante rossonero deu uma entrada fortíssima em Sneijder e levou seu segundo amarelo no jogo. Por alguns segundos, Milan viu sua substituição atrasada virar um jogador a menos. O pesadelo para a segunda etapa estava montado e ainda teve tempo para ficar pior.
Em escanteio batido aos 43 minutos, Samuel desviou e Lúcio chegou completando na segunda trave. Storari, bem posicionado, defendeu com o joelho. O pequeno milagre só adiou por um minuto o inevitável terceiro gol. Com calma, a Inter rodou a bola até Maicon arrancar, aproveitando bote errado de Jankulovski. Thiago Silva até tentou cobrir o companheiro, mas o lateral brasileiro foi mais rápido ao tabelar com Milito e deixou mais um defensor para trás, entrando sozinho na área. Sem nenhum charme, o camisa 13 deu um bico forte cruzado e fechou o passeio da primeira metade.
Depois de ficar atrás no placar, o Milan foi completamente engolido pelo adversário. Apesar de ter chegado algumas vezes até a meta de Julio Cesar, não exigiu grandes defesas do arqueiro, que só teve dificuldades nos cruzamentos aéreos. Com um a menos, e ainda levando um gol em sequência, a moral rossonera estava totalmente para baixo. Em busca de diminuir o controle da Inter, e o prejuízo, Leonardo sacou Borriello e Flamini para preencher o meio-campo com os experientes Seedorf e Massimo Ambrosini.
Na prática, as mudanças funcionaram por uns quinze minutos, em que os mandantes conseguiram fazer boas trocas de passes no campo ofensivo. Só que, quando a Inter acordou de novo para a partida, o monólogo arrasador da primeira parte se repetiu. Aos 62 minutos, Milito encontrou Maicon aberto pela direita que chutou em cima de Thiago Silva. O rebote voltou nos pés do lateral, que desta vez cruzou e encontrou Eto’o livre para cabecear no fundo das redes. Contudo, o bandeirinha anulou o lance assinalando, corretamente, impedimento do camaronês. Na sequência, Leonardo fez sua última troca: Ronaldinho, sob vaias após atuação apagada, deu lugar ao centroavante Klaas-Jan Huntelaar.
Antes do tento anulado, Mourinho foi forçado a substituir Thiago Motta. Com um problema na coxa direita, o meio-campista precisou deixar os gramados e deu lugar a Sulley Muntari. Titular na temporada anterior, o ganês não passou despercebido no clássico. Deu uma assistência – apesar de que todo o brilho ficou por conta da pintura tremenda feita pelo autor do gol.
Stankovic fez valer uma de suas marcas registradas e coroou a noite com estilo. Após aproveitar uma sobra no lado esquerdo da área, Muntari tocou para Deki, posicionado a cerca de 30 metros da meta de Storari. Pirlo, próximo da jogada, demorou para entender a intenção do sérvio, que com espaço, acertou um balaço incrível no ângulo esquerdo, aos 67 minutos.
A torcida da Inter também fez sua participação especial. Enquanto seu time rodava a bola, os tifosi nerazzurri gritavam olé a cada passe dado. Quem não gostou da brincadeira foi Huntelaar, que depois de ficar praticamente um minuto e meio correndo de um lado para outro, parou Maicon com um toque por trás em arrancada do brasileiro. E vale o destaque positivo tanto para o lateral quanto para seu compatriota Lúcio. Ambos fizeram uma partida esplêndida, de altíssimo nível.
Faltando cerca de 20 minutos para o fim, a transmissão flagrou os torcedores rossoneri deixando o estádio. Enquanto um lado vivia nas nuvens, o outro estava em um pesadelo inimaginável. Foi nessa atmosfera que a partida seguiu até seu apito final, sem nenhum acréscimo adicionado.
Um resultado histórico. A goleada de 4 a 0 em cima do maior rival, por si só, poderia ser um grande feito. Afinal, foi um dos triunfos mais elásticos que os nerazzurri aplicaram sobre o Milan, igualando diferenças estabelecidas em 1910 (5 a 1), 1967 (4 a 0) e 1974 (5 a 1). Só uma outra vitória por 5 a 0, no distante 1910, foi maior. Estava dado, então, o troco pelo humilhante 6 a 0 que o Diavolo aplicara em 2001. Tudo isso, se comparado ao que aconteceu até o final da temporada, foi um prelúdio de luxo.
Na Serie A, a disputa foi acirrada até a última rodada contra a Roma. Um tropeço dos giallorossi na 35ª jornada, frente à Sampdoria, foi o suficiente para que a Inter retomasse a ponta, abrindo dois pontos de vantagem e fechasse uma sequência de cinco vitórias consecutivas com o quinto título nacional seguido. O time da capital também sofreu na Coppa Italia: na final disputada entre as duas equipes, de novo a Inter levou a melhor, com o vice-artilheiro da liga, Diego Milito, marcando um belíssimo gol de fora da área na vitória magra por 1 a 0.
Mais uma vez dominando a Itália, Mourinho levou seus comandados ainda mais longe com uma belíssima epopeia escrita na Champions League. Superando o Barcelona de Pep Guardiola nas semifinais da competição continental, a Beneamata pode contar novamente com Milito inspirado em outra decisão. Na final disputada no Santiago Bernabéu, uma doppietta do argentino garantiu a vitória por 2 a 0 sobre o Bayern de Munique.
Para o Milan, além de terminar a temporada de mãos vazias, foi preciso engolir um agregado azedo contra o rival de seis gols de diferença na Serie A. No jogo de returno, a Inter chegou a ter Sneijder expulso no primeiro tempo, tal qual foi Gattuso no primeiro confronto. Mesmo com a adversidade, a Inter triunfou de novo, com tentos de Pandev e Diego Milito. A festa rossonera ficou para a campanha seguinte, na qual ganhou os dois dérbis e, de quebra, faturou o scudetto, interrompendo a sequência da adversária.
Milan 0-4 Inter
Milan: Storari; Zambrotta, Nesta, Thiago Silva, Jankulovski; Gattuso, Pirlo, Flamini (Ambrosini); Ronaldinho (Huntelaar); Pato, Borriello (Seedorf). Técnico: Leonardo.
Inter: Julio Cesar; Maicon, Lúcio, Samuel, Chivu; Zanetti, Thiago Motta (Muntari), Stankovic; Sneijder (Vieira); Milito (Balotelli), Eto’o. Técnico: José Mourinho.
Gols: Motta (29’), Milito (36’), Maicon (45’+1) e Stankovic (67’)
Cartões amarelos: Flamini e Gattuso; Samuel e Chivu
Cartão vermelho: Gattuso
Árbitro: Nicola Rizzoli (Itália)
Local e data: estádio San Siro, Milão (Itália), em 29 de agosto de 2009