Cartolas

Gestor passional, Giussy Farina deixou Vicenza e Milan à beira da falência

Bigode chamativo, estilo elegante e personalidade um pouco forte, ainda que tímido. Essas eram algumas das características do ex-cartola Giuseppe Farina, conhecido por ter sido dono do Lanerossi Vicenza e do Milan. Giussy é lembrado por, frequentemente, colocar as emoções à frente da razão, comportamento que complicou suas gestões. O dirigente deixou vicentinos e rossoneri perto da derrocada financeira.

A família Farina vem da região de Verona, mas Giuseppe, chamado carinhosamente de Giussy, nasceu em Gambellara, na província de Vicenza. Quando jovem, estudou na cidade de Romeu e Julieta e chegou a jogar peladas com os garotos de San Giorgio. Era lateral-esquerdo. Apaixonado por meio ambiente, o garoto de origem camponesa formou-se em Direito, mas teria mais destaque futuro longe dessas duas áreas. Fã de futebol desde pequeno, Farina entrou para o Vicenza com apenas 20 anos, na função de conselheiro.

Em janeiro de 1968, Giussy substituiu Delio Giacometti na presidência do Vicenza, embora tivesse apenas 2% das ações da agremiação. Por mais que já estivesse nos quadros do clube havia 20 anos, Farina teria um grande desafio pela frente. Os vicentinos atravessavam momento caótico: não vinham bem no campeonato e não estavam numa boa fase sob os aspectos técnico e psicológico. A equipe treinada por Arturo Silvestri, contudo, se recuperou e conseguiu evitar o rebaixamento.

Farina desconversava, mas corriam boatos de que ele era supersticioso. Aos domingos, quando acompanhava os jogos do Lanerossi Vicenza, o cartola colocava um raminho de tomilho, planta aromática da qual se extrai um óleo odorífero, em seu bolso. Amuleto da sorte? “Eu sou realista, não creio em casualidade de eventos. Então, salvo algumas particularidades, a superstição não faz parte das minhas convicções”, rechaçou.

Farina e um jovem Rossi, nos tempos de Vicenza (RCS)

Como presidente do Vicenza, Farina viveu momentos opostos extremos, mas quase sempre na Serie A. O ano de 1977 foi o melhor da história dos lanerossi. O time era comandado à época por Giovan Battista Fabbri, técnico contratado justamente por Giussy, um ano antes. O cartola também foi responsável pela aquisição de um jovem Paolo Rossi, em copropriedade com a Juventus. O curioso é que a Juve não apostava muito no garoto e, portanto, não esperava que o dirigente fosse ofertar a bagatela de 2,612 bilhões de velhas liras. Os experientes brasileiros Angelo Sormani e Chinesinho também chegaram à equipe por causa do presidente.

O Vicenza de Fabbri praticava um futebol vistoso – baseado nos conceitos do Futebol Total holandês –, e ia de encontro às ideias defensivas que tomavam conta da Serie A daquela época. Com estilo de jogo dinâmico e entusiasmante, a equipe do Vêneto alcançou o título da segunda divisão em 1977 e, na temporada seguinte, o vice-campeonato da máxima categoria. Até hoje, é o melhor resultado da história biancorossa. Foi, também, a melhor colocação de um time da região até a conquista do scudetto por parte do Verona, em 1985.

O grande destaque da equipe vêneta era Rossi, que fora convertido em centroavante por Gibì Fabbri – o futuro carrasco do Brasil começara a carreira jogando pelas beiradas do campo. Com 24 dos 50 gols da campanha marcados pelo atacante, aos berici terminaram a Serie A de 1977-78 com o melhor ataque. Pablito também encerrou o certame como artilheiro, com oito tentos de vantagem sobre Giuseppe Savoldi, do Napoli.

Farina teve longa relação com Rossi: foi seu patrão no Vicenza e no Milan (Il Giornale di Vicenza)

A época seguinte, contudo, marcou a transição do Vicenza do céu para o inferno. Um ano depois do segundo lugar na Serie A, os vicentinos entraram em crise financeira e caíram para a segunda divisão. Farina, inclusive, foi um dos culpados pela derrocada do clube.

Lanerossi e Juventus não entraram em acordo quanto à permanência ou a saída de Rossi, que estava em copropriedade no Vêneto. Segundo o regulamento da liga, a decisão sobre o destino do jogador seria feita através de propostas enviadas à entidade num envelope: o clube que fizesse a maior oferta pelo jogador ficaria com seus direitos. O presidente pagou incríveis 3 bilhões de liras para superar o valor oferecido pela Velha Senhora e adquirir os outros 50% do passe de Rossi. O negócio fez de Pablito o jogador mais caro do mundo, mas uma lesão no joelho comprometeu o seu desempenho e, consequentemente, o dos biancorossi.

O descenso à Serie B causou uma revolução no Vicenza, que viu Fabbri, Rossi e outros pilares do time deixarem o Vêneto. Atolado em dívidas, Farina não conseguiu substituir as saídas com reforços à altura. Resultado: após um quinto lugar na segundona de 1979-80, queda para a Serie C1 na temporada seguinte. O retrocesso significou o fim da linha para Giussy à frente da agremiação, depois de 12 anos. Forçado a deixar o cargo (para seu filho, Francesco), ele já queria abrir mão da presidência havia alguns anos.

Em maio de 1982, pouco depois de assumir a presidência do Milan, Giussy lamenta o rebaixamento da equipe (Ansa)

“Os problemas que me preocupam e me atormentam são numerosos e cobrem uma série de interesses verdadeiramente heterogêneos: sociais, financeiros e familiares”, admitiu, em dezembro de 1977. “Os compromissos me forçam a sair, condicionando a minha vida privada. Eu vejo muito pouco as crianças e devo admitir que tenho uma esposa que está compreendendo e tolerando minha ‘evasão’ esportiva. (…)”, completou.

Giussy, de fato, deveria parar pouco em casa. Além de dirigir o Vicenza, Farina ainda comandava suas empresas do ramo agrícola e chegou a ter controle sobre diversas outras equipes do Vêneto, que serviam como satélites para os biancorossi. Audace San Michele Extra, Belluno, Legnago, Rovigo, Schio, Valdagno e até o tradicional Padova – na época flertando entre as séries C1 e C2 – tiveram administração do cartola.

Após sair do Vicenza pela porta dos fundos, Giussy viu uma boa oportunidade de investimento em uma praça maior do futebol italiano. O cartola aproveitou o período de crise do Milan, que vinha de envolvimento no escândalo Totonero e um rebaixamento, para comprar o clube das mãos de Felice Colombo. “Todos me avisaram: compre o Milan e verá quantas mulheres cairão ao seus pés. Nunca conquistei uma”, brincou. Também pudera: a passagem de Farina pela presidência milanista foi um desastre.

Farina e Rivera sorriem no CT rossonero (imago)

A transação ocorreu meses antes da segunda queda dos rossoneri à Serie B. Giussy adquiriu o clube em janeiro de 1982 e foi logo demitindo o técnico Luigi Radice. Na época, Gianni Rivera, vice-presidente rossonero, deu uma declaração emblemática. “Como não podemos dispensar todos os jogadores, mudamos de treinador”. Comandado por Italo Galbiati, o Milan até subiu de produção, mas acabou sendo rebaixado na última rodada, após o Genoa conseguir um empate contra o Napoli.

A horrorosa largada de Giussy na direção de seu novo clube foi aplacada em 1983. O ano marcou a volta do Diavolo à elite do futebol italiano. No entanto, a temporada 1983-84 não foi boa: ainda se reestruturando, os rossoneri ficaram na sexta posição, sem vaga nas competições europeias. Principal aposta de Farina, o atacante inglês Luther Blissett não emplacou na Itália e retornou ao Watford um ano após sua aterrissagem em Milão. Outro inglês – Mark Hateley, do Portsmouth – foi trazido para substitui-lo e teve um pouco mais de sucesso.

Para a temporada 1984-85, Farina entrou em contato com o sueco Nils Liedholm, que topou treinar o time rossonero. Seria sua terceira passagem como técnico do Milan. O plantel não era dos melhores, mas ganhou o incremento do meio-campista Agostino Di Bartolomei, ex-capitão da Roma. Mesmo assim, o time não conseguia voltar às cabeças e brigar com as potências do Belpaese por títulos. Além disso, Farina repetira o que fez com as contas do Vicenza e deixou o Milan com um rombo orçamentário.

Liedholm, Rivera e Farina, pouco antes de Giussy ceder o clube a Berlusconi (imago)

Contudo, um astuto empresário evitou que o clube quebrasse: Silvio Berlusconi. Em fevereiro de 1986, Farina colocou a agremiação à venda e o Cavaliere efetuou a compra, impedindo um desastre para a torcida rossonera. Enquanto Berlusconi dava os primeiros passos para iniciar uma trajetória de sucesso à frente do Milan, Giussy acumulou divórcios e e se escondeu por 17 meses.

Perseguido pela justiça, que o condenou por fraude em balanços fiscais e sonegação de impostos, ele se abrigou na África do Sul, onde possui uma propriedade de mil hectares que se estende por cinco quilômetros ao longo do Oceano Índico, em Port Elizabeth. Eventualmente, Farina retornou à Itália e passou alguns dias na cadeia – depois, cumpriu o resto da pena em regime semiaberto.

Numa entrevista ao jornal La Repubblica, em 2003, Giussy comentou os problemas com a lei. “Um amigo meu dizia sempre: ‘hoje em dia, se uma pessoa não passa um tempo presa, ela não é ninguém’. Eu teria renunciado a essa notoriedade sem pestanejar”, brincou. Na época, ele morava na Espanha, onde tinha adquirido uma propriedade florestal nas imediações de Barcelona. No parque, gastava seu tempo com a caça (uma de suas paixões) e a observação da natureza.

Com filme queimado, Farina não assumiu mais nenhuma outra presidência de grande clube. Em 2006, décadas depois de deixar Vicenza e Milan à beira da falência, o dirigente tentou criar um consórcio para ser o presidente do Verona, mas a ideia não foi concluída. Para a sorte dos torcedores do Hellas? Muitos deles dizem que sim.

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