Reza a lenda que a loucura é um componente fundamental na personalidade de um goleiro. Refletir sobre a validade desse chavão certamente não está entre as nossas pretensões, mas podemos afirmar de forma categórica que a excentricidade sobrava em Claudio Garella, campeão italiano com Verona e Napoli. Tão fora da caixa, o piemontês foi um dos raros arqueiros que ganharam a Serie A por mais de um time, mas até hoje é o único a ter participado do primeiro título nacional de dois clubes diferentes.
Durante sua carreira, Garella foi um goleiro conhecido por estilo pouco usual, cheio de defesas com os pés, em cambalhotas ou carrinhos. Duas frases definem bem a sua trajetória. A primeira é uma brincadeira de Gianni Agnelli, mítico ex-presidente da Juventus. “Garella é o melhor goleiro do mundo. Sem as mãos, porém”. A outra foi cunhada pelo diretor esportivo Italo Allodi, numa tentativa de incentivar o questionado reforço que levou para o Napoli. “O que vale é defender, não importa como”, vaticinou.
Antes de ser uma espécie de René Higuita italiano e o goleiro meio amalucado na conquista de dois scudetti, Garella rodou muito pela Velha Bota. Claudio começou no Torino, em sua própria cidade natal: entrou na base do clube aos 15 anos e estreou aos 17, numa partida da Serie A 1972-73, contra o Vicenza. Na ocasião, atuou por apenas sete minutos, em substituição ao lesionado Luciano Castellini. Muito jovem, o arqueiro acabou sendo cedido ao Casale ao fim da temporada. Na época, os nerostellati estavam na quarta divisão.
Precoce, o piemontês assumiu a camisa número 1 do Casale assim que foi contratado, o que mostrava o tamanho da sua personalidade. Sem demonstrar qualquer temor no biênio em que defendeu a equipe, Garella foi titular em quase todos os jogos (só ficou de fora de quatro nesse período da carreira) e contribuiu fortemente para que os nerostellati fossem campeões em seu grupo na Serie D e se mantivessem na terceirona. Original, o arqueiro também chegou a marcar um gol de pênalti durante sua passagem, mostrando que era mesmo bom com os pés.
Aos 20 anos, o extravagante Claudio se transferiu para o Novara, se mantendo no Piemonte e passando a disputar a Serie B – com destaque. Garella foi titular nos 38 jogos de uma boa campanha dos azzurri, que terminaram a categoria na sexta posição, a quatro pontos do acesso. O arqueiro, porém, rumaria à elite. Seguindo os passos de Felice Pulici, trocou o Novara pela Lazio.
No seu primeiro ano em Roma, Garella apenas esquentou banco, uma vez que Pulici era absoluto. Em 1977, porém, o brasileiro Luís Vinício assumiu o comando da equipe e decidiu que Claudio seria o titular celeste – o que fez o veterano acertar com o Monza, de sua cidade natal. Não seria nada fácil substituir Felice, que era ídolo do clube e havia sido um dos pilares na conquista do primeiro scudetto dos aquilotti, em 1974. A bem da verdade, a tentativa foi um verdadeiro fracasso: a Lazio terminou a Serie A com a terceira pior defesa, com 38 gols sofridos em 30 jogos, e se safou do rebaixamento por apenas um pontinho.
Garella teve grande participação nos feitos negativos. Cada falha clamorosa que cometia ou defesa estranha que realizava era uma “garellata”, de acordo com Beppe Viola, narrador da Rai. O termo ficou eternizado juntamente ao apelido nada prestigioso cunhado pelos laziali: Paperella. A alcunha é um jogo de palavras dos mais clássicos e aglutina “papera” – termo italiano que significa “ganso” e também serve para designar as falhas dos goleiros – ao sobrenome de Claudio, formando o substantivo utilizado para nomear os patinhos de borracha na Itália. Em português, seria como chamar o arqueiro de “Franguerella”.
Após uma péssima temporada 1977-78 na Cidade Eterna, Garella acabou retrocedendo de divisão e foi defender a Sampdoria, na Serie B. Claudio dedicou três anos de sua extravagância ao clube da Ligúria, mas não foi muito feliz por lá. Os blucerchiati não tiveram campanhas tão positivas na segundona no período em que o arqueiro piemontês os representou: o máximo que conseguiram foi a quinta posição em 1980-81, a cinco pontos do último promovido à elite.
Depois de 125 partidas pela Samp, o goleiro – de estilo tão robusto quanto ágil – mudou de clube mais uma vez e, aos 26 anos, vestiria a sexta camisa diferente na carreira. Garella chegou ao Verona em 1981 e, ao contrário do que ocorreu na Lazio, passou a ser benquisto de forma bastante veloz. Primeiro, ganhou a redação do diário veronês L’Arena, que passou a chamá-lo de Garellik. Por conta de suas intervenções acrobáticas, recebera um codinome típico de super herói.
O segundo passo de Claudio foi virar ídolo das crianças, por conta das muitas defesas com os pés e com outras partes do corpo. Essas características, aliadas a seu jeitão desengonçado, meio atarracado e quase sem pescoço, humanizavam o personagem criado pelo jornal. Esse conjunto fazia com que os garotos sentissem genuína identificação com Garella, a quem podiam imitar nas peladas.
Logo em sua primeira temporada, o goleiro transformou seu sucesso fora dos gramados em conquistas dentro de campo. Garella se consolidou como pilar do time treinado por Osvaldo Bagnoli, ao lado de nomes como Roberto Tricella, Antonio Di Gennaro e Domenico Penzo, e contribuiu para o título da Serie B, em 1982. Quatro anos depois de deixar a primeira divisão pela porta dos fundos, Claudio retornava como protagonista.
O Hellas de Bagnoli surgiu na Serie A como sensação. Logo de cara, os butei ficaram com a quarta posição do campeonato e ainda acabaram sendo vice-campeões da Coppa Italia. Em 1983-84, outra bela campanha: mais um vice na copa e a sexta colocação na elite itálica. Garella, que só não atuou em duas partidas dessa trajetória, estava em evidência. E teria sua consagração em 1984-85.
Garellik foi fundamental para que os mastini vivessem o momento mais importante de sua história e conquistassem seu primeiro – e, até hoje, único – scudetto. Líder da defesa gialloblù, que foi a menos vazada do campeonato, com apenas 19 gols sofridos em 30 jogos, Claudio foi eleito como melhor goleiro da temporada. Aos 30 anos, dava um tapa na cara dos que o chamaram de Paperella, quando era um garoto de 22. Principalmente porque a Lazio terminaria a campanha de 1984-85 rebaixada para a Serie B.
Quis o destino que Garella tivesse sua melhor atuação no Olímpico, em plena Cidade Eterna. No primeiro turno, contra a Roma, o goleiro teve um dia de glória ao segurar um 0 a 0 diante do forte ataque dos romanistas, campeões italianos dois anos antes e vice-campeões europeus na temporada anterior. Em entrevista à Rai, logo depois do jogo, Garellik confessou a satisfação de ter se consagrado justamente no estádio em que vivera momentos turbulentos, em 1977-78.
Após 157 partidas pelo Hellas, o arqueiro tinha cumprido sua missão no Vêneto ao dar um título italiano à equipe. Assim, acabou se transferindo para o Napoli, sob as bênçãos de um certo Diego Armando Maradona. O estilo de Garella agradava ao Pibe, que recomendou a contratação do piemontês ao presidente Corrado Ferlaino e ao diretor Italo Allodi. Os dois jogadores acabaram construindo uma grande amizade, embalada por brincadeiras em treinos de cobranças de falta. “De vez em quando eu pegava alguma coisa, não sei como, e Diego ria. Tenho orgulho de ter sido o goleiro do maior da história”, declarou Claudio à Gazzetta dello Sport, em 2007.
Os napolitanos terminaram a temporada 1985-86 com a terceira posição da Serie A e a segunda melhor defesa do campeonato, com 21 gols sofridos. Garella disputou todas as 35 partidas dos azzurri naquela ocasião, o que demonstrava sua importância para o técnico Ottavio Bianchi. O melhor estava por vir, contudo.
Em 1986-87, Garella continuou orientando uma forte defesa, que tinha Giuseppe Bruscolotti, Moreno Ferrario, Ciro Ferrara e Alessandro Renica como guardiões. Essa turma repetiu a performance da temporada anterior – novamente, a retaguarda azzurra sofreu 21 gols – e sustentou as peripécias de Maradona no ataque. O resultado foi mágico: os partenopei conquistaram o primeiro scudetto da sua história e ainda fizeram a dobradinha nacional, graças ao título da Coppa Italia.
Garellik permaneceu em Nápoles por mais uma temporada, na qual acabou sendo vice-campeão italiano. O Napoli liderou a Serie A até a antepenúltima rodada, quando o Milan de Arrigo Sacchi, com uma doppietta de Pietro Paolo Virdis, conseguiu a vitória por 3 a 2 num jogaço no San Paolo. Ao fim da partida, Claudio não teve meias palavras: para ele, o scudetto já era dos rossoneri.
O goleiro fez o último de seus 114 jogos pelo Napoli na rodada seguinte, contra a Fiorentina. Após algumas rusgas com Bianchi, Garella optou por voltar à Serie B e, aos 33 anos, garantir um lugar como titular da Udinese. O retorno à elite foi imediato, mas a queda também. Mesmo com jogadores como Roberto Sensini, Emidio Oddi, Dino Galparoli, Angelo Orlando, Fabio Rossitto, Marco Branca e Abel Balbo, a equipe friulana sucumbiu e amargou o descenso por apenas um ponto, em 1990. Em suas últimas aparições na Serie A, Garellik se destacou por conta de uma defesa incrível num duelo com a Cremonese: na ocasião, usou uma cambalhota como recurso para mandar para escanteio um chute forte, que desviou na barreira.
Garella teve sua última temporada como profissional em 1990-91, com a camisa do Avellino, onde foi companheiro de Fabrizio Ravanelli e, mais uma vez, de Ferrario. Após sofrer uma séria lesão e disputar apenas duas partidas na Serie B, o arqueiro decidiu se aposentar, aos 36 anos.
Garella reconhece que teve um estilo peculiar. Na verdade, ele sempre se orgulhou disso. “Fui um goleiro anômalo, mas nenhum treinador jamais tentou modificar meus métodos. Não fazia o que fazia apenas por instinto, eu tinha meu próprio código”, declarou à Gazzetta dello Sport. A falta de grife, por exemplo, não foi o motivo que o manteve distante da seleção. Goleiros como Giovanni Galli, Walter Zenga, Franco Tancredi, Ivano Bordon e Stefano Tacconi eram mesmo superiores e contavam com um apreço maior dos técnicos da Nazionale na década em que Garellik teve seu auge – Enzo Bearzot, até 1986, e Azeglio Vicini, até 1991.
Depois de se aposentar, Claudio ficou relegado às divisões inferiores. Diretor esportivo com diploma da escola de Coverciano, o ex-goleiro trabalhou em times amadores, como Pecetto e Canavese, além de ter sido treinador de Barracuda e Cit Turin – todos militantes nas categorias regionais do Piemonte. Garella também foi preparador de arqueiros da Pergocrema.
Bastante acima do peso e sem a agilidade de outrora, Garellik ainda entrou em campo algumas vezes até meados da década passada. O ex-goleiro era o camisa número 1 da Wineland, equipe montada para eventos beneficentes, no intuito de promover as vinícolas do Piemonte e a enogastronomia da região.
A obesidade acabou se tornando um fator de risco para o ex-goleiro. Garella desenvolveu hipertensão e viu seu quadro se agravar de forma decisiva. Em 12 de agosto de 2022, Claudio se submeteu a uma cirurgia cardíaca, mas faleceu em virtude de complicações cardiovasculares decorrentes da intervenção. Quis o destino que sua morte acontecesse dias antes de Verona e Napoli se enfrentarem pela abertura da temporada da Serie A.
Atualizado em 12 de agosto de 2022.
Claudio Garella
Nascimento: 16 de maio de 1955, em Turim, Itália
Morte: 12 de agosto de 2022, em Turim, Itália
Posição: goleiro
Clubes: Torino (1972-73), Casale (1973-75), Novara (1975-76), Lazio (1976-78), Sampdoria (1978-81), Verona (1981-85), Napoli (1985-88), Udinese (1988-90) e Avellino (1990-91)
Títulos: Serie D (1975), Serie B (1982), Serie A (1985 e 1987) e Coppa Italia (1987)