Jogos históricos

Em 2007, o Milan espantou o fantasma de Istambul e deu o troco no Liverpool

Dopo Istanbul, c’è sempre Atene. Esta frase, cuja tradução é “Depois de Istambul, há sempre Atenas”, foi cunhada por torcedores rossoneri após o Milan conquistar sua sétima Liga dos Campeões, em 2007. Dois anos antes, o Diavolo havia protagonizado a maior derrocada da história das finais europeias, ao tomar uma virada memorável frente ao Liverpool, na maior cidade da Turquia. No entanto, o time italiano recolheu os cacos, realizou mais uma grande campanha, retornou à decisão do torneio em 2006-07 e, na Grécia, deu o troco diante dos ingleses.

Não é possível dizer que Milan e Liverpool mantiveram uma rivalidade depois das finais de 2005 e 2007. Afinal, além daqueles dois jogos épicos, o Diavolo e os Reds só voltaram a se enfrentar novamente em 2021 – no terceiro duelo oficial entre as equipes. Os milanistas retornaram à Liga dos Campeões após sete anos e caíram no mesmo grupo do time de Merseyside. Na ida, disputada em Anfield, o Liverpool venceu a queda de braço: 3 a 2.

Em dezembro de 2021, os rossoneri receberam os Reds, em San Siro, para tentar dar novamente o troco, tal qual ocorrera em 2007. Com todos os ingressos esgotados, os donos da casa precisavam destronar os ingleses, que chegavam à partida com 100% de aproveitamento na fase de grupos, se quiserem avançar às oitavas de final. Não conseguiram, pois perderam por 2 a 1 e acabaram eliminados. Antes daquele esperado combate, relembramos os confrontos históricos entre Milan e Liverpool de 2005 e 2007. Confira abaixo.

Logo no primeiro tempo da final europeia de 2005, Crespo marcou duas vezes para o Milan (Getty)

Clima pré-jogo em Istambul

Davi contra Golias. Assim poderíamos definir o confronto entre Liverpool e Milan, em Istambul. Embora contasse com jogadores do porte de Jamie Carragher, Xabi Alonso, Steven Gerrard e Luis García, a agremiação de Merseyside não contava com um plantel da mesma estirpe que os seus rivais do dia 25 de maio de 2005. À época, o Diavolo tinha um jogador de classe mundial em cada posição e também dispunha do então vencedor da Bola de Ouro, Andriy Shevchenko.

Em entrevista coletiva às vésperas do duelo, um jovem Xabi Alonso jogou a responsabilidade sobre os italianos. “Talvez o Milan seja o favorito, mas em um jogo tudo pode acontecer”, disse o camisa 14, um dos registas da equipe treinada por Rafa Benítez. Já o Milan estava em busca de sua segunda orelhuda em dois anos, visto que, em 2003, os comandados de Carlo Ancelotti venceram a final caseira contra a Juventus, em Manchester.

Na entrada de campo, Sheva beijou alguns dedos da mão esquerda e a levou em direção à taça da Liga dos Campeões, presente à beira do campo. Mal sabia ele, artilheiro milanista e esperança de gols ao lado de Hernán Crespo, o que lhe aguardava nas próximas horas.

Domínio italiano no primeiro tempo

O ritmo que o Milan imprimiu após o pontapé inicial jogou um banho de água fria na cantoria dos torcedores do Liverpool no estádio Atatürk. É que, logo no primeiro minuto de partida, Andrea Pirlo cobrou falta em direção à marca do pênalti, Paolo Maldini apareceu livre e finalizou de direita. A bola rebateu no gramado e entrou no canto superior direito de Jerzy Dudek.

Para piorar a situação do Liverpool, Benítez foi forçado a realizar uma alteração ainda no primeiro tempo: o atacante australiano Harry Kewell se lesionou e precisou deixar o campo aos 23 minutos; o checo Vladimír Smicer entrou em seu lugar e passou a fazer dupla ofensiva com o compatriota Milan Baros. A troca não surtiu efeito, de modo que os Reds continuavam com dificuldade para chegar à meta de Dida. O Milan, por sua vez, fazia um belo primeiro tempo e obrigou Dudek a buscar mais bolas no fundo das redes.

O segundo gol do embate saiu após um lance polêmico no ataque do Liverpool. Luis García invadiu a área rossonera e deu um corte para driblar Alessandro Nesta, que chegou deslizando de carrinho. A bola, porém, não continuou sob o domínio do camisa 10 dos Reds, porque pegou no braço do zagueiro e sobrou nos pés de Maldini. No decorrer do lance, o time italiano armou contra-ataque envolvente: Pirlo acionou Kaká e o brasileiro abriu na direita para Sheva, que encontrou Crespo livre na pequena área para fazer 2 a 0.

Carrasco de Shevchenko, Dudek fez milagres em finalizações do ucraniano (imago/Buzzi)

O segundo gol milanista desestabilizou ainda mais o Liverpool, que viu o rival anotar o terceiro antes do intervalo. Kaká, um dos destaques do primeiro tempo, recebeu passe de Pirlo, girou em 90 graus sobre Gerrard e, do campo de defesa, meteu uma bola açucarada no ponto futuro para Crespo. O artilheiro aproveitou o vacilo de Sami Hyypiä, saiu a cara a cara com Dudek e deu um tapinha por cima do arqueiro. Golaço.

[Clarence] Seedorf, Kaká, Shevchenko, Crespo… em todas as posições eles tinham os melhores jogadores do mundo. Nós éramos os azarões […]”, disse Gerrard, em depoimento à Uefa, sobre o baque do Liverpool após a primeira etapa. Contudo, mesmo com o time tomando de três, a torcida dos Reds não deixou de apoiar a equipe. O You’ll never walk alone cantado a plenos pulmões pelos torcedores ingleses, no Olímpico Atatürk, surtiu efeito e deu gás ao Liverpool para iniciar uma fulminante reação na etapa final.

A reação dos Reds

Aos 54 minutos, o primeiro sinal de resposta dos comandados de Benítez. Alonso, pouco à frente do círculo de meio de campo, passou para John Arne Riise. O lateral-esquerdo tentou cruzar, a bola explodiu em Cafu e voltou para o próprio defensor, que enfim alçou a redonda na área. Gerrard subiu sozinho e testou no canto esquerdo, sem chances de defesa para Dida.

A torcida inglesa se empolgou e, dois minutos depois do gol marcado pelo capitão inglês, o Liverpool diminuiu novamente. Dietmar Hamann, que entrou durante o intervalo no lugar de Steve Finnan, tocou na entrada da área em direção a Smicer. O meia-atacante ajeitou a bola e soltou uma pancada: Dida chegou a tocar nela, mas não a ponto de evitar o segundo dos Reds.

Faltava um gol para transformar em milagre o que muitos disseram, ao fim da primeira etapa, que era impossível. E ele não demorou a chegar. Empurrado pela torcida, o time de Merseyside seguiu pressionando um atordoado Milan e, de pênalti, igualou o placar. Carragher desceu ao ataque com a bola dominada e achou Baros dentro da área. Mesmo com Nesta encurtando o espaço, o atacante checo deu um toque de calcanhar e encontrou Gerrard infiltrando a grande área. Entretanto, Gennaro Gattuso o empurrou por trás. Penalidade máxima. Xabi Alonso bateu, Dida defendeu, mas o camisa 14 conferiu no rebote: 3 a 3.

Seis minutos, três gols. Uma insanidade. Porém, passada a blitz dos Reds, o Milan acordou do apagão e só não fez 4 a 3 porque Djimi Traoré realizou uma intervenção providencial, em cima da linha, e evitou o gol de Sheva. Com empate persistindo no placar após os 90 minutos, o duelo foi para a prorrogação. No tempo extra, Shevchenko teve a grande chance de evitar os pênaltis e dar o título ao Milan. Porém, Dudek operou dois milagres e não deixou que o ucraniano marcasse na final. Assim, a épica partida seria decidida nas cobranças de pênalti.

Nas penalidades, Shevchenko voltou a parar em Dudek (imago/Ulmer)

Sheva vilão

Serginho, o ofensivo lateral-esquerdo milanista, foi o primeiro a andar em direção à marca da cal. Colocou muita força na batida e finalizou por cima da meta. A tensão e o medo tomaram conta dos rossoneri presentes no estádio, sobretudo depois de Hamann concluir sua penalidade – a primeira dos Reds – e Pirlo parar em Dudek. Os ingleses ficaram ainda mais tranquilos depois que o atacante Djibril Cissé deslocou Dida e abriu uma vantagem de dois gols sobre os italianos.

Jon Dahl Tomasson diminuiu e Dida se esticou todo no canto direito para defender a cobrança de Riise. Kaká, ao tirar Dudek da foto, ainda deu mais esperança de que a remontada nos penais poderia ocorrer. Smicer, todavia, diminuiu os ânimos dos rivais do Belpaese. Até que Shevchenko, “o cara” do time milanês, bateu um pênalti fraco, no meio do gol, e facilitou a vida do goleiro dos Reds. Liverpool campeão, Milan em choque.

“Já ganhou?”

Após a derrocada do time de Ancelotti em Istambul, muito se falou sobre os jogadores terem voltado para o segundo tempo daquela final com a sensação de “já ganhou”. Nos anos seguintes, contudo, diversos atletas rechaçaram o boato. Até a produção deste texto, o ex-lateral-direito Cafu foi o último a comentar o assunto. Em resenha no podcast Podpah, ele revelou sua expectativa para vencer a Liga dos Campeões pela primeira vez naquela época, sobretudo depois de o Milan ter marcado três gols na etapa inicial.

“Quando nós abrimos 3 a 0 no primeiro tempo, eu falei: ‘Caramba, Senhor, acho que agora eu posso voltar pra casa tranquilo'”, contou. “Voltou o segundo tempo, a gente [continuou] na mesma pegada, só que o Liverpool estava o dobro do que eles estavam [no primeiro tempo]. […] O Milan, na nossa época, dificilmente tomava três gols. Era quase que impossível fazer três gols no Milan”, recordou.

Como vimos acima, o Liverpool conseguiu a proeza de balançar as redes de Dida três vezes no mesmo jogo, durante o tempo normal. Porém, “sabe qual é o bom do futebol europeu, principalmente do Milan?”, questionou Cafu. “Dois anos depois, nós estávamos com o mesmo time, o Liverpool com o mesmo time, nós fizemos a final novamente da Champions League. Se é no Brasil ou qualquer outro lugar do mundo, esquece. Os dois times já tinham se desmanchado: ‘Você tá velho, você não presta, perdeu a final, vamos reformular’… Nada. Ficou o mesmo time, os jogadores mais experientes, nós fomos lá e ganhamos a Champions League”, relembrou o pentacampeão brasileiro.

A revanche: em noite de Inzaghi, o Milan deu o troco no Liverpool (imago)

Agora, é em Atenas

Quando Cafu diz que a base do time de 2005 fora mantida para a temporada 2006-07, ele tem razão. Não à toa, a média de idade do Milan, no final de 2007, era de 31,2 anos. Kaká, que completara 25 em abril, ostentava o status de jogador mais jovem da equipe titular. Os outros integrantes do onze inicial, por outro lado, já estavam próximos ou dentro da casa dos 30 anos, de modo que a final de 2007 poderia representar a última chance de aquela geração ganhar a orelhuda novamente – a maioria deles participou da jornada vitoriosa de 2002-03.

No futuro, os rossoneri pagariam um preço caro por Silvio Berlusconi, histórico presidente do clube, não haver se preocupado em rejuvenescer o plantel. Mas essa é uma história para outro momento. Fato é que a derrota memorável em Istambul deixou traumas e lições ao elenco do Diavolo, sobretudo para os seus integrantes mais novos. O próprio Kaká, por exemplo, amadureceu com o revés, cresceu de produção nos anos seguintes e se tornou o destaque do time, principalmente após a saída de Shevchenko para o Chelsea, em 2006.

“Aquela derrota foi realmente dura”, admitiu o ex-meia, em entrevista à Milan TV. “Ela me ensinou muito, me fez crescer muito, tanto como pessoa quanto em nível profissional. Porém, sempre havia aquela dúvida: será que eu vou conseguir jogar uma final de Champions League de novo? Será que vou conseguir ganhar esse troféu?”, refletia.

Com o esquema “árvore de Natal” (4-3-2-1), o Milan fez ótima campanha e carimbou sua vaga na decisão de Atenas. Kaká, que seria eleito o melhor do mundo naquele ano, foi decisivo em todas as fases do mata-mata. Sem Shevchenko, Ancelotti posicionou o camisa 22 mais avançado, como um segundo atacante, atrás de Filippo Inzaghi, e extraiu o melhor dele.

Em tese, o time do Liverpool de 2007 era mais qualificado que o da final de Istambul. Pepe Reina, Daniel Agger, Javier Mascherano e Dirk Kuyt elevaram o nível dos comandados de Benítez. As bandeiras Carragher e Gerrard também potencializavam a equipe de Merseyside.

Com seu oportunismo incomparável, Inzaghi foi fundamental para a conquista da última Champions League da gestão Berlusconi (imago/Colorsport)

O brilho de Pippo

Diferentemente da final de Istambul, o Milan não teve um início de jogo arrasador. O Liverpool, aliás, foi quem criou a primeira chance de gol do confronto. Marek Jankulovski recebeu um passe forte de Seedorf, errou o domínio e permitiu que Jermaine Pennant tabelasse com Kuyt e finalizasse cruzado. Dida, no entanto, estava ligado e espalmou o chute. Na sequência, Nesta afastou o perigo da grande área.

O Milan não deixou o Liverpool ganhar confiança e, em arremate de fora da área de Kaká, colocou Reina para trabalhar. Xabi Alonso respondeu à altura: o disparo de longa distância do espanhol passou próximo à trave direita do arqueiro milanista. Porém, quando Alonso cometeu falta em Kaká na entrada da área, um herói improvável entraria em cena.

Lenda do Milan, Inzaghi chegou em Milanello nos idos de 2001 e não demorou para fazer os torcedores esquecerem sua passagem pela rival Juventus. Com 12 gols, foi o artilheiro da Liga dos Campeões de 2002-03, na qual o Diavolo se sagrou campeão. Os dois anos e meio seguintes, porém, não foram bons. Uma série de lesões comprometeu praticamente duas temporadas, até que ele se recuperasse em 2005-06. Em Atenas, o camisa 9 estava com o pressentimento de que seria o destaque do jogo.

“Por dentro, eu disse a mim mesmo que se o destino havia me dado a oportunidade de jogar uma partida que eu não pude disputar dois anos antes, contra o mesmo time, provavelmente quer que eu marque. Era o que eu pensava: que o destino desejava que eu fosse o protagonista”, afirmou Pippo, à Uefa. E a intuição do artilheiro estava correta.

Pirlo cobrou a falta em direção ao gol, Inzaghi entrou na frente da trajetória da bola e a desviou de barriga, matando o goleiro do Liverpool. Aos 37 minutos do segundo tempo, Kaká avançou por dentro, percebeu Pippo atacando o espaço vazio e lançou: o bomber rossonero driblou Reina e tocou para o gol vazio. Na comemoração, o brasileiro e o italiano comemoraram juntos efusivamente, próximo à bandeirinha de escanteio, porque sabiam que desta vez o título iria para Milão. Nem o gol de cabeça de Kuyt, já nos minutos finais do embate, foi capaz de tirar a taça do Milan.

Jogadores, comissão técnica e torcida foram envolvidos pelo êxtase da vitória e do alívio após o apito final do árbitro alemão Herbert Fandel. O fantasma de Istambul havia ficado para trás. Ao Milan, simbolizava muito mais que a sétima conquista de Liga dos Campeões de sua história: era a epopeia em cima do carrasco de dois anos antes. Desde então, o clube de Milão não conseguiu mais chegar a uma final europeia novamente. Mas, 14 temporadas depois, segue isolado como o segundo maior vencedor da Champions.

Milan 3-3 Liverpool (2005) (2-3 na disputa por pênaltis)

Milan: Dida; Cafu, Stam, Nesta, Maldini; Gattuso (Rui Costa), Pirlo, Seedorf (Serginho); Kaká; Shevchenko, Crespo (Tomasson). Técnico: Carlo Ancelotti.
Liverpool: Dudek; Finnan (Hamann), Carragher, Hyypiä, Traoré; Luis García, Gerrard, Xabi Alonso, Riise; Kewell (Smicer); Baros (Cissé). Técnico: Rafa Benítez.
Gols: Maldini (1′) e Crespo (39′ e 44′); Gerrard (54′), Smicer (56′) e Xabi Alonso (60′)
Pênaltis convertidos: Tomasson e Kaká; Hamann, Cissé e Smicer
Pênaltis desperdiçados: Serginho, Pirlo e Shevchenko; Riise
Árbitro: Manuel Enrique Mejuto González (Espanha)
Local e data: Estádio Olímpico Atatürk, Istambul (Turquia), em 25 de maio de 2005

Liverpool 1-2 Milan (2007)

Liverpool: Reina; Finnan (Arbeloa), Carragher, Agger, Riise; Mascherano (Crouch), Alonso; Pennant, Gerrard, Zenden (Kewell); Kuyt. Técnico: Rafa Benítez.
Milan: Dida; Oddo, Nesta, Maldini, Jankulovski (Kaladze); Ambrosini, Pirlo, Gattuso; Kaká, Seedorf (Favalli); Inzaghi (Gilardino). Técnico: Carlo Ancelotti.
Gols: Kuyt (89′); Inzaghi (45′ e 82′)
Árbitro: Herbert Fandel (Alemanha)
Local e data: Estádio Olímpico de Atenas, Atenas (Grécia), em 23 de maio de 2007

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