Após Inter e Milan surpreenderem a todos e deixarem para trás os favoritos no mata-mata da Champions League 2022-23, uma foto de Marco Materazzi e Rui Costa observando sinalizadores e rojões acesos no gramado de San Siro passou a ser compartilhada repetidas vezes nas redes sociais. Afinal, os primos de Milão disputariam mais um Derby della Madonnina na maior competição de clubes do mundo e aquele registro fotográfico – que, inclusive, abre este texto – se tornou um dos principais símbolos do clássico e da própria Liga dos Campeões. Ele ocorreu no quarto duelo entre nerazzurri e rossoneri pelo torneio, em 2005, e é a perfeita representação de um jogo que não teve 90 minutos de duração.
Naquela ocasião, torcedores interistas lançaram sinalizadores e rojões ao terreno de jogo em protesto pelo gol mal anulado de Esteban Cambiasso. Um dos objetos acertou o goleiro Dida, que sofreu uma queimadura no ombro direito e precisou ser substituído. O árbitro Markus Merk reiniciou a partida após o brasileiro deixar o gramado, mas a torcida nerazzurra voltaria a arremessar fogos de artifício em campo. Assim, o juiz optou por suspender a peleja, que tinha placar parcial de 1 a 0 para o Milan, e, posteriormente, a Uefa decretou a classificação milanista às semifinais da Champions League 2004-05. O embate de ida daquelas quartas de final havia terminado com triunfo do Diavolo, por 2 a 0.
A Inter se classificou àquela Liga dos Campeões após terminar a Serie A 2003-04 no quarto lugar. Com isso, entrou mais cedo que os outros times. Na terceira e última fase dos playoffs, a Beneamata despachou o Basel sem muitas dificuldades, com um 5 a 2 no placar agregado, e caiu no Grupo G, ao lado de Werder Bremen, Valencia e Anderlecht. A equipe comandada por Roberto Mancini sobrou naquela fase: com 14 pontos, só não fez uma campanha melhor do que a Juventus (16). O adversário nas oitavas de final foi o Porto, então campeão, que viu Adriano marcar uma tripletta em San Siro e garantir a classificação interista às quartas.
O clube vermelho e preto de Milão, por sua vez, tinha um plantel estrelado e despontava como um dos favoritos ao título, à época. A base do time treinado por Carlo Ancelotti era a mesma que havia ganhado a taça em 2003, sobre a Juventus – na campanha, também bateu a Inter nas semifinais. Além disso, os rossoneri haviam vencido a Serie A 2003-04. A primeira fase foi bem tranquila para o Diavolo, que não deu chance a Barcelona, Shakhtar Donetsk e Celtic e liderou o Grupo F. Nas oitavas, duas vitórias por 1 a 0 ante o Manchester United colocaram o Milan nas quartas.
Jogo aéreo funciona e Milan abre vantagem
Os principais times italianos chegavam com frequência às fases derradeiras da Champions League na primeira metade dos anos 2000. Nas quartas de final da edição 2004-05, Inter e Milan ficaram frente a frente pela segunda vez em dois anos. Em 2003, o Diavolo levou a melhor sobre a Beneamata nas semifinais da competição e bateu a Juventus, em Old Trafford, para conquistar sua sexta orelhuda. Então, quando o sorteio colocou os primos milaneses cara a cara novamente em 2005, criou-se a expectativa pela vingança nerazzurra.
Mancini teve um grande desfalque para a primeira partida: Adriano, com um problema no joelho, estava de molho no departamento médico. Sem o brasileiro, o técnico optou por escalar Julio Cruz e Obafemi Martins como dupla de ataque no jogo de ida. Já Ancelotti dispunha de seu melhor onze inicial: um sólido setor defensivo, um tripé no meio de campo (Clarence Seedorf, Andrea Pirlo e Gennaro Gattuso) que dispensa apresentações, um Kaká voando e uma dupla de ataque, formada por Andriy Shevchenko e Hernán Crespo, que botava medo em qualquer time do mundo.
Em um San Siro com mando do Milan e cerca de 79 mil pessoas presentes, a Inter criou a primeira chance de gol. Sinisa Mihajlovic cobrou falta magistralmente e obrigou Dida a realizar grande intervenção, espalmando a bola para a linha de fundo. Depois, foi a vez de Cruz levar perigo, em um chute de canhota por cima da meta rossonera. Ainda na etapa inicial, Dida teria que trabalhar mais duas vezes para manter o zero no placar: o goleiro espalmou cobrança de falta de Juan Sebastián Verón e, em seguida, defendeu o arremate de Cruz.

A frustração de Toldo representava a impotência da Inter em conter Sheva naqueles tempos (AFP/Getty)
Embora a Inter tenha produzido as melhores chances da etapa inicial, foi o Milan quem inaugurou o marcador. Pirlo alçou bola à área, Jaap Stam subiu entre Mihajlovic e o baixinho Iván Córdoba e desviou, de cabeça, para o fundo das redes. Um balde de água fria na equipe nerazzurra e uma injeção de ânimo aos rossoneri.
O segundo tempo começou com a Inter em busca do gol de empate. Mihajlovic assustou em mais um lance de bola parada, cobrando a falta por cima da meta de Dida. Mancini também colocou gás novo no ataque, trocando Cruz por Christian Vieri. O treinador também sacou Verón para colocar o grego Giorgos Karagounis em campo. No entanto, o Milan marcaria mais uma vez e daria números finais ao duelo.
Se a Inter tinha Mihajlovic, um monstro quando a pauta era bola parada, o Milan contava com Pirlo e sua mira milimétrica. O segundo gol foi quase uma repetição do primeiro. Em cobrança de falta, Pirlo colocou a pelota na cabeça de Shevchenko, que testou para baixo. Francesco Toldo não conseguiu defender e o camisa 7 guardou mais um num Derby della Madonnina. O tento fez a torcida milanista presente em San Siro enlouquecer. A festa só não foi maior porque Toldo espalmou uma finalização violenta de Sheva, impedindo o terceiro do Diavolo.
Caos, jogo suspenso e Milan classificado
Para o jogo da volta, a Inter precisaria tirar uma diferença de dois tentos e não levar nenhum, visto que naquela época ainda existia o gol qualificado. Mancini recebeu uma grande notícia: Adriano havia se recuperado de um problema no joelho e estava liberado para jogar. O treinador interista também realizou várias mudanças. Além de trocar o 4-3-1-2 (mesmo esquema tático que o Milan utilizava) pelo 4-2-3-1, ele promoveu as entradas de Materazzi, Andy van der Meyde, Kily González e, claro, do Imperador no time titular. Ancelotti, por sua vez, teve de lidar apenas com a suspensão por acúmulo de cartões amarelos de Gattuso – Massimo Ambrosini tomaria seu lugar.

Irritados com o time e com um gol mal anulado, os ultras da Inter encheram o gramado de San Siro de sinalizadores (Getty)
Os 10 minutos iniciais foram marcados por entradas duras de ambos os lados. O próprio Ambrosini fez valer sua função de substituir Gattuso e recebeu cartão amarelo por dar um carrinho ríspido em González. Adriano, a principal esperança de gols da Inter, não conseguia se livrar da forte marcação da defesa rossonera, sobretudo de Stam, seu carrasco naquela noite de 12 de abril de 2005.
A Inter tinha dificuldades para desafogar o truncado jogo e sucumbia diante da boa postura da equipe milanista. Quando Shevchenko teve espaço e marcou um golaço da entrada da área, a casa nerazzurra caiu por completo. O atacante ucraniano, ganhador da Bola de Ouro em 2004, acertou um chutaço de canhota, que morreu na bochecha da rede. A Beneamata precisaria de quatro gols para avançar de fase. E, se o ataque era cirúrgico, Dida não ficava atrás. O goleiro espalmou uma finalização potente de González e impediu que os mandantes diminuíssem o prejuízo antes do intervalo.
Logo na volta para o segundo tempo, Mancini apresentou duas alterações: saíram Cristiano Zanetti e González, entraram Mihajlovic e Cruz, respectivamente. Cinco minutos depois de a bola voltar a rolar, o técnico realizou mais uma substituição, sacando Adriano, que não entrava em campo havia quase um mês, para promover o ingresso de Oba Oba Martins. As mudanças até tornaram a Inter mais ofensiva, mas o gol não saía – Dida estava em ótima fase, fechando a baliza.
Porém, aos 71 minutos, os nerazzurri finalmente conseguiram balançar as redes. Mihajlovic cobrou escanteio, e Cambiasso cabeceou. O gol, no entanto, foi invalidado pelo árbitro Merk, que viu falta – inexistente – do argentino em cima de Cafu. O volante protestou tanto contra a decisão do juiz que acabou amarelado. Em seguida, torcedores interistas perderam a paciência e começaram a lançar sinalizadores no gramado do San Siro. Um deles acertou em cheio o ombro direito de Dida, que precisou ser substituído por Christian Abbiati.
“Dida teve uma queimadura e uma contusão. Não conseguia mover o ombro normalmente”, afirmaria Ancelotti, à Gazzetta dello Sport, após o embate. Dida também deu sua versão do episódio. “No começo, pensei em retirar os objetos para que o jogo pudesse continuar. Rapidamente vi que seria inútil. Caíam coisas de todos os lados”, contou o arqueiro, à imprensa italiana.
Os jogadores foram para os vestiários e a partida ficou paralisada por 25 minutos até que os bombeiros e a polícia italiana retirassem os objetos do gramado e a torcida se acalmasse. Depois de conversar com os capitães Javier Zanetti e Paolo Maldini, o árbitro chegou a reiniciar o jogo, mas torcedores interistas, ainda de ânimos exaltados, voltaram a arremessar objetos no campo. Assim, Merk optou por suspender o dérbi e a vitória rossonera foi sacramentada.

Merk entendeu que não havia mais condições de jogo e, após interrupção de 25 minutos, suspendeu a partida (AFP/Getty)
Quatro dias após a suspensão daquele Derby della Madonnina, a Comissão Disciplinar da Uefa puniu a Inter com seis jogos sem torcida no Giuseppe Meazza em competições europeias, aplicou uma multa de 300 mil francos suíços ao clube e decretou uma derrota por 3 a 0 na segunda partida contra o Milan.
Após bater a Inter nas duas partidas, o Diavolo passou pelo PSV nas semifinais graças ao gol qualificado e, na sequência, perderia o título de forma cruel, para o Liverpool de Steven Gerrard. Os comandados de Ancelotti foram para o intervalo vencendo por 3 a 0, mas tomaram o empate no segundo tempo e sucumbiram nos pênaltis. A decisão da Champions League de 2004-05 ficou conhecida como “O Milagre de Istambul”. Curiosamente, a cidade turca também foi escolhida como palco da final da edição 2022-23 da competição.
Agora, Inter e Milan realizarão o quinto e o sexto Derby della Madonnina em noites europeias. A Beneamata tem levado a melhor sobre os rossoneri nos dérbis dos últimos anos, mas o Diavolo jamais perdeu um jogo para time italiano na Champions League e mostrou, contra Tottenham e Napoli, que a chavinha muda quando o hino da competição toca. Quem será que sai vencedor desta eliminatória e voltará a uma decisão de Liga dos Campeões depois de muitos anos?
Milan 2-0 Inter
Milan: Dida; Cafu (Costacurta), Stam, Nesta (Kaladze), Maldini; Seedorf, Pirlo, Gattuso; Kaká; Shevchenko, Crespo (Ambrosini). Técnico: Carlo Ancelotti.
Inter: Toldo; J. Zanetti, Córdoba, Mihajlovic, Favalli; Verón (Karagounis), C. Zanetti (Van der Meyde), Cambiasso; Stankovic; Martins, Cruz (Vieri). Técnico: Roberto Mancini.
Gols: Stam (45′) e Shevchenko (74′)
Árbitro: Alain Sars (França)
Local e data: estádio Giuseppe Meazza, Milão (Itália), em 6 de abril de 2005
Inter 0-1 Milan (partida suspensa; 0-3 no tapetão)
Inter: Toldo; J. Zanetti, Córdoba, Materazzi, Favalli; C. Zanetti (Mihajlovic), Cambiasso; Van der Meyde, Verón, Kily González (Cruz); Adriano (Martins). Técnico: Roberto Mancini.
Milan: Dida (Abbiati); Cafu, Stam, Nesta, Maldini; Seedorf, Pirlo, Ambrosini; Kaká; Shevchenko, Crespo (Rui Costa). Técnico: Carlo Ancelotti.
Gol: Shevchenko (30′)
Árbitro: Markus Merk (Alemanha)
Local e data: estádio Giuseppe Meazza, Milão (Itália), em 12 de abril de 2005