Uma das maiores graças que o futebol pode proporcionar é a capacidade de, em um dia qualquer, consagrar o futuro de um jogador. Existem momentos mágicos cuja dimensão só pode ser compreendida por quem os assistiu. O gol de voleio de Zinédine Zidane na decisão europeia entre Real Madrid e Bayer Leverkusn, por exemplo; ou quando Ronaldinho, então no Barcelona, foi aplaudido pela torcida merengue em pleno Santiago Bernabéu. A Liga dos Campeões é repleta desses episódios, mas poucos foram tão imprevisíveis – e loucos – quanto o 4 a 3 entre Inter e Tottenham, na temporada 2010-11. Mais do que um jogo com sete bolas nas redes, aquele 20 de outubro de 2010 ficou conhecido pela afirmação de um atleta que marcaria a década: Gareth Bale.
O ano de 2010 seria um catalisador para a Inter. Após a temporada mais vitoriosa da sua história, na qual conquistou a Serie A, a Coppa Italia e, em especial, a Champions League, após um jejum de mais de quatro décadas, a Beneamata sofreu um baque logo no dia em que levantou a orelhuda: José Mourinho anunciou que não permaneceria na equipe e rumou para o Real Madrid. O treinador, amado até hoje pelos nerazzurri, foi substituído por seu eterno desafeto, o espanhol Rafa Benítez.
Além disso, apesar de manter a sua base, a Inter perdeu peças do elenco multicampeão, como o fiel goleiro Francesco Toldo, que se aposentou, e o jovem Mario Balotelli. Em contrapartida, nomes menos badalados chegaram: Jonathan Biabiany e Philippe Coutinho, que finalmente aportava em Milão, dois anos depois de ser contratado junto ao Vasco; aos 19, o meia era uma aposta de Benítez para o futuro da Beneamata. Só que aquela temporada anteciparia problemas que fariam da década de 2010 uma das piores da história da agremiação. O sonho do bicampeonato continental, portanto, foi só ilusão.
Do outro lado, o Tottenham também vinha de feitos importantes – mas nenhum título. A temporada 2010-11 marcou a estreia dos Spurs na Champions League, o que representava um marco na história do time. Mas o caminho dos ingleses não foi fácil: por terem concluído a Premier League em quarto, os Lilywhites jogaram os playoffs para poderem se classificar para a fase de grupos. A série contra o Young Boys foi dramática: depois de perder de virada na Suíça, o time comandado por Harry Redknapp venceu por 4 a 0 em casa, carimbando sua passagem para a maior competição de clubes do mundo.
O elenco do Tottenham era promissor, principalmente do meio para frente. Um jovem Luka Modric despontava para o mundo, junto a nomes como Peter Crouch, Jermain Defoe, Roman Pavlyuchenko, Rafael van der Vaart (contratado do Real Madrid) e, claro, um rapaz galês de 21 anos que começava a despontar nos Spurs – Bale, de quem falaremos mais especificamente mais tarde.
Com Werder Bremen e o modesto Twente compondo o Grupo A, Inter e Tottenham se enfrentariam pela primeira vez na terceira rodada. Antes, os ingleses empataram com os alemães e golearam os holandeses, enquanto os italianos fizeram o oposto: paridade com os vermelhos de Enschede e uma surra de 4 a 0 nos germânicos.
Em outubro de 2010, os maiores candidatos a avançar na chave se enfrentaram em pleno San Siro. Ambos, porém, com desfalques: o Tottenham iria a campo sem Van der Vaart, enquanto a Inter não teria seu príncipe: Diego Milito estava lesionado. Já Esteban Cambiasso e Goran Pandev foram para o banco. Além disso, a Beneamata não vivia um bom começo de temporada e sofria com os problemas de relacionamento entre Benítez e seus comandados, que tinham afeição por Mourinho. Mesmo assim, os então campeões da Europa conservavam o favoritismo numa partida que prometia ser equilibrada.
O jogo começou elétrico e com pleno domínio da Inter. Melhor: atropelo é uma palavra mais adequada. Logo aos 2 minutos, o capitão Javier Zanetti abriu o placar para os nerazzurri. Em bela jogada com Samuel Eto’o e Coutinho, o argentino se infiltrou na defesa e balançou as redes. Um lance crucial para o desenrolar da partida ocorreu aos 8: Wesley Sneijder roubou a bola no meio-campo e deixou Biabiany livre. O atacante tocou por cima de Gomes, mas o goleiro do Tottenham o derrubou dentro da área. O árbitro Damir Skomina não hesitou em expulsar o brasileiro, mesmo que Benoît Assou-Ekotto estivesse fazendo a cobertura, e deu o pênalti para a Beneamata. Restou para Eto’o, a estrela do time, vencer Carlo Cudicini, que entrou no lugar de Modric, marcar o segundo gol.
Com um a menos e sem o seu principal criador de jogadas, o Tottenham se apequenava diante do domínio da Inter. Logo depois do pênalti, veio o 3 a 0: Eto’o deu uma bela assistência para Dejan Stankovic, que tirou Tom Huddlestone com uma finta de corpo e chutou rasteiro, da meia-lua, para ampliar. Mesmo diminuindo o ritmo depois, a Beneamata achava buracos no campo e conseguia oferecer perigo aos Spurs. Coutinho e Maicon quase marcaram seus gols ainda no primeiro tempo. Porém, quem teve a missão de ampliar a goleada foi o camisa 9 nerazzurro, aos 34 minutos, em um passe divino de Coutinho.
Na volta dos vestiários, parecia que o confronto já estava liquidado. A Inter tinha mais de 60% de posse de bola, além de 15 finalizações a gol, contra uma do Tottenham. Mesmo assim, os ingleses não desistiram de buscar o jogo. E foi nesse momento que um jovem ponta de País de Gales mostraria aos italianos – e ao mundo – quem ele era.
Com apenas sete minutos de bola rolando no segundo tempo, Bale avançou em velocidade, driblou Maicon, Zanetti e quem mais apareceu na sua frente e chutou cruzado. Julio Cesar só pode assistir, sem nenhuma chance de defender. O belíssimo gol esquentou a partida, mas o domínio ainda era da Inter. No entanto, os Spurs não desistiram do jogo nem nos momentos derradeiros – literalmente.
A Inter, inexplicavelmente, atuava com linhas muito avançadas, deixando a sua defesa exposta sem nenhuma necessidade. Ao mesmo tempo, pouco visava o gol – na segunda etapa, só levou perigo com Coutinho e Davide Santon. Os espaços no lado direito da retaguarda nerazzurra eram numerosos, mas o Tottenham só voltou a aproveitar o buraco na reta final do jogo, sempre com Bale, que anotaria seu hat-trick.
O segundo gol foi praticamente idêntico ao primeiro: Maicon fora de posição, jogada individual para cima de Zanetti, invasão de área e chute cruzado, no cantinho. Bale ainda queria mais. No minuto seguinte, Aaron Lennon avançou da direita para o centro e passou para ele, que marcou o terceiro do Tottenham. Àquela altura, os nerazzurri só queriam que a partida acabasse, para que aquele jovem galês parasse de balançar as redes e concretizasse uma reação histórica. Para a sorte dos italianos, o árbitro soou o apito final logo em seguida. No fim das contas, a goleada se transformou numa vitória suada da Beneamata, que garantia a liderança do grupo.
Aquele jogo marcaria o começo e também o fim de algumas histórias. Para Bale, seria o início de sua fama galáctica – embora, para muitos, apesar da promessa de glória irrestrita, o jogador nunca tenha atingido seu potencial completo. Gareth deixaria o Tottenham três anos depois e iria para o Real Madrid, clube em que formou o trio BBC com Cristiano Ronaldo e Karim Benzema.
Apesar dos títulos, as lesões e o relacionamento conturbado com o time ao longo de sua experiência madrilenha fizeram com que o ponta passasse a ser alvo de questionamentos. Bale voltaria aos Spurs em 2020, mas à sombra dos tempos áureos do início da década anterior, e ainda decidiu ir, precocemente, para a Major League Soccer, contratado pelo Los Angeles FC. Pela seleção de País de Gales, brilhou de forma incontestável: levou os dragões para uma Copa do Mundo 64 anos depois de sua primeira participação e também os classificou para duas Euros. Em 2016, os galeses surpreenderam e foram semifinalistas.
Para o Tottenham, aquela temporada seria a primeira – de várias – em que morreria na praia e não conquistaria um tão sonhado título. Os Spurs venceriam a Inter por 3 a 1 no jogo seguinte, no White Hart Lane, com outro show de Bale e nova desastrosa atuação de Maicon. O brasileiro, aliás, foi aconselhado pela torcida dos Lilywhites a pegar um táxi se quisesse marcar Gareth. Os ingleses acabaram na segunda posição do grupo, eliminaram o Milan nas oitavas e caíram, nas quartas, para o galáctico Real Madrid de Mourinho, que aplicou 5 a 0 no placar agregado. O melhor resultado do time na competição foi o vice para o Liverpool, em 2019.
Para a Inter, a vitória não amenizou os problemas internos. A equipe venceu a chave e conquistou o Mundial de Clubes da Fifa sobre o Mazembe, em dezembro, mas estava no meio da tabela na Serie A e o clima entre Benítez e o elenco era insustentável. O técnico espanhol foi demitido logo após faturar o troféu e deu lugar ao ex-rossonero Leonardo. De forma relativamente surpreendente, o brasileiro conseguiu virar a chave e levou a Beneamata ao vice do Italiano e ao título da Coppa Italia. Na Liga dos Campeões, os nerazzurri superaram as oitavas de final com novo (e elétrico) triunfo sobre o Bayern de Munique, adversário da antológica decisão de 2010, e tomaram uma ducha de água fria na fase posterior, com clamorosa derrota para o Schalke 04. Os alemães aplicaram 5 a 2 em pleno Giuseppe Meazza e passaram com 7 a 3 no agregado.
Com altos e baixos, a temporada da Inter terminou com o título da Coppa Italia sobre o Palermo. A taça, inclusive, seria a pá de cal nos anos vitoriosos da Beneamata, que entrou em decadência na medida em que o seu elenco envelhecia e os heróis da tríplice coroa eram vendidos pela equipe de Milão ou se aposentavam. Em meio a tudo isso, em 2013, ainda se encerrou a era Massimo Moratti. Diversos fatores levaram a este período de melancolia e ostracismo para a agremiação, mas vários dos sinais de que o fim estava próximo ficaram evidentes naquele 20 de outubro de 2010, quando Bale brilhou em San Siro.
Inter 4-3 Tottenham
Inter: Julio Cesar; Maicon, Lúcio, Samuel, Chivu (Pandev); Zanetti, Stankovic (Santon); Biabiany (Córdoba), Sneijder, Philippe Coutinho; Eto’o. Técnico: Rafa Benítez.
Tottenham: Gomes; Hutton, Gallas, Bassong, Assou-Ekotto; Lennon, Jenas, Huddlestone (Palacios), Bale; Modric (Cudicini); Crouch (Keane). Técnico: Harry Redknapp.
Gols: Zanetti (2′), Eto’o (11’e 35′) e Stankovic (14′); Bale (52′, 90′ e 90+1′)
Cartão vermelho: Gomes
Árbitro: Damir Skomina (Eslovênia)
Local e data: estádio Giuseppe Meazza, Milão (Itália), em 20 de outubro de 2010