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Riccardo Garrone patrocinou a Sampdoria por anos e ainda a reergueu quando foi presidente

Com a morte de Paolo Mantovani, em 1993, a Sampdoria passou a ser comandada pelo filho do magnata, Enrico, que não soube administrar a estabilidade deixada por seu pai. Com menos recursos financeiros, o clube passou a viver anos decadentes, quando finalmente foi rebaixado da primeira divisão em 1999. Após a queda, a situação se tornou impraticável: em 2002, 12 temporadas depois da conquista do scudetto, os antigos campeões estavam perto da falência.

No entanto, como numa peça dramática, um “príncipe” apareceu como uma luz no fim do túnel, com a promessa de resgatar o clube da falência. Na verdade, o tal nobre saudita não existia: era uma ficção criada por Giuseppe Dossena, ex-jogador e dirigente doriano, que visava aplicar um golpe na agremiação. Ao mesmo tempo, um velho conhecido dos genoveses participava do esforço de salvação da Sampdoria: Riccardo Garrone, dono da ERG, patrocinadora do time nos seus maiores momentos. No fim das contas, o empresário adquiriu a Samp, evitou que a fraude se consumasse e ainda deu início a uma dinastia.

Riccardo nasceu em berço de ouro: seu pai, Edoardo Garrone, dava os primeiros passos no setor de extração de petróleo quando o filho veio ao mundo, em Gênova, no ano de 1936. O garoto era um admirador da arte erudita e da cultura italiana, mas, por influência paterna, seguiu o caminho do genitor e, em 1961, se graduou em química industrial. Devido ao boom econômico na Itália e à intensificação da industrialização do país no pós-guerra, a ERG – Edoardo Raffiniere Garrone, companhia petrolífera fundada por Edoardo, em 1938 – viveu crescimento meteórico, o que permitiu ao jovem a aplicação imediata de seus conhecimentos universitários e o exercício de um papel importante nos negócios familiares.

Em junho de 1963, Edoardo anunciou sua candidatura à presidência do Genoa. No mês seguinte, sairia vitorioso das eleições, mesmo enquanto tirava férias na Noruega. Antes mesmo de voltar à Itália para tomar posse do cargo, o empresário de 57 anos sofreu um infarto fulminante e deixou a maior parte dos bens como herança para o primogênito Riccardo – inclusive a petroleira. Aos 27, o químico recém-formado assumiria a diretoria da companhia. Na década de 1970, Duccio, como era conhecido, participou da construção de uma importantíssima refinaria em Siracusa e, mais tarde, com a aquisição dos direitos de duas relevantes petrolíferas, a ERG se transformou numa das principais empresas italianas do ramo energético.

Amante de artes como a pintura e a música, Garrone patrocinou diversas iniciativas culturais ao longo de sua vida, sobretudo as que tinham o objetivo de preservar o patrimônio cultural italiano. Em 1991, financiou a reabertura do Teatro Carlo Felice – o principal da cidade de Gênova. Ademais, criou, no ano de 2004, a Fundação Edoardo Garrone, instituição filantrópica dedicada ao desenvolvimento sociocultural da população genovesa.

A primeira empreitada de Duccio no mundo do futebol se deu em 1988. A audaciosa iniciativa só aconteceu porque ele descumpriu a promessa feita ao pai de jamais se envolver com o esporte, setor de cuja gestão pouco entendia. No entanto, uma promissora parceria entre ERG e Sampdoria foi firmada, e o time genovês passou a estampar o nome da companhia no uniforme. Com isso, o clube comandado por  Mantovani pode gozar do volumoso patrocínio acertado com o grupo industrial e manter estrelas, além de se sagrar vencedor da Serie A 1990-91. A marca da companhia adornou as vestes dorianas até 1995.

Um dos grandes acertos de Garrone foi contratar Marotta para comandar o futebol da Sampdoria (imago/IPA)

A turbulenta compra da Sampdoria e o começo da era Garrone

Duccio manifestou publicamente o desejo de se envolver mais contundentemente com futebol em 2000, quando propôs a fusão entre Genoa e Sampdoria – na época, ambos estavam na Serie B e corriam risco de ir à falência. Evidentemente, a intenção do empresário não foi bem aceita. Contudo, um ano depois, o jornal italiano Corriere della Sera anunciava a compra da Samp, ainda de propriedade dos Mantovani, pela família Garrone, em parceria com um príncipe árabe chamado Omer Masoud. Na nova gestão, o dono da ERG seria presidente honorário, enquanto Dossena, ídolo do clube, ocuparia o cargo de gerente geral. O investimento passaria em torno de 155 bilhões de velhas liras.

Assinados os papéis – mas ainda sem a circulação de verbas –, cerca de 90% das ações do clube iriam para uma empresa controlada por Masoud, em terras britânicas. No entanto, incongruências começaram a surgir no processo: Dossena, Antonino Pane, Andrea Stagni e Mauro Gagliardi, os “porta-vozes” do príncipe, ofereceram a Riccardo o papel de fiador da transação entre a família Mantovani e os sauditas. Segundo eles, o rico árabe gostaria de manter o anonimato, mas enviaria uma garantia de milhões ao banco San Giorgio, de propriedade de Garrone.

Porém, as semanas se passavam e o dinheiro não chegava. Os intermediadores alegavam que os bancos estavam barrando a transferência, e solicitam uma antecipação de 5 milhões de dólares do banco do empresário. Inevitavelmente, as suspeitas começaram a pairar sobre as tratativas. Tempos depois, a fraude foi descoberta: não existia príncipe algum envolvido na compra, e o quarteto tentava dar um golpe que levaria o clube à falência. Garrone, especialista nos trâmites empresariais, soube escapar das garras dos farsantes.

Finalmente, em janeiro de 2002, Garrone efetivou a compra da Sampdoria por sete bilhões de velhas liras – quase ao mesmo tempo, o empresário deixava a presidência da ERG –, salvando o clube da falência. Depois de 23 anos, a família Mantovani encerrava sua trajetória inigualável com o time genovês: todos os títulos da agremiação foram conquistados nesse período.

No início da temporada 2002-03, a primeira iniciada sob a tutela da nova gestão, Giuseppe Marotta chegou para o cargo de dirigente esportivo, ao passo que Walter Novellino assumiu o posto de técnico. Nomes importantes, como Sergio Volpi, Fabio Bazzani e o futuro capitão Angelo Palombo também reforçaram o time ainda militante da Serie B. Os blucerchiati fizeram boa campanha, faturaram o segundo lugar na classificação final e voltaram à primeira divisão com euforia.

Vitorioso: o dirigente conduziu a Sampdoria da Serie B à Champions League (imago/Gribaudi/IPA)

Apesar de, naquela época, a formação titular ser composta por jogadores jovens e desconhecidos, o time comandado pelo pragmático Novellino mostrou sua força ao conquistar um 8º lugar na temporada de retorno à Serie A. Com certa ambição, Garrone contratou mais um nome técnico que seria importantíssimo para o crescimento da equipe na década. Fabio Paratici assumiria o cargo mais alto do departamento de scouting, trabalhando ao lado de Marotta.

Com o impulso promovido pelo proprietário da ERG, agora comandada pelo filho Edoardo, a torcida voltava a lotar o estádio Marassi, empolgada ainda mais com o quinto lugar conquistado na temporada 2004-05, quando a Samp ficou a apenas um ponto da Udinese, quarta colocada. O posicionamento do time no campeonato ao menos garantiu a volta a equipe às competições europeias após uma década de ausência.

A temporada marcada pelo escândalo do Calciopoli seria a mais fraca da era Novellino. Na Copa Uefa, o time caiu na fase de grupos; na Serie A, houve até um pequeno risco de rebaixamento após uma péssima sequência de derrotas, mas a salvezza foi confirmada na antepenúltima rodada, contra a Udinese. O técnico toscano deixou o clube ao final do campeonato 2006-07, em que um jovem Fabio Quagliarella se destacaria. Este, inclusive, rumaria para Údine pouco depois. Na batalha pelo atacante, os bianconeri desembolsaram 7 milhões de euros contra 6,5 mi da Sampdoria. Garrone não fez maiores esforços financeiros, cumprindo o que prometera inicialmente: “fazer um investimento leve e sem gastos excessivos”, num modelo inspirado no Chievo de Luca Campedelli.

O verão de 2007 ficaria marcado pela chegada da mais memorável contratação da era Garrone, e, indiscutivelmente, do melhor jogador da gestão: Beppe Marotta resolveu apostar no fantasista Antonio Cassano, na época, jogador do Real Madrid. Walter Mazzarri foi a escolha para o cargo técnico. Somados, Cassano e o veterano Claudio Bellucci marcaram 23 gols e o time conquistou um sexto lugar na Serie A, o que lhe garantiu a vaga para a Copa Uefa da temporada posterior.

Mais uma contratação expressiva foi efetuada pela gestão de Garrone no verão de 2009: Giampaolo Pazzini chegava da Fiorentina, numa negociação de cerca de 9 milhões de euros. Cassano, já contratado definitivamente, recomendaria o mais novo parceiro a camisa 10. Ele aceitou prontamente, e os dois levaram o time genovês a uma épica final de Coppa Italia, perdida nos pênaltis para a Lazio.

No auge da era Garrone, temporada 2009-10, a formação que tinha Palombo, bandeira blucerchiata, a feroz dupla formada por Pazzini e Cassano, além de algumas outras peças interessantes, como Daniele Gastaldello, foi potencializada pelo bom trabalho do técnico Luigi Delneri e alcançou um épico quarto lugar na Serie A. Após 19 anos da primeira e única experiência na Liga dos Campeões, os esforços de Riccardo davam frutos e a Sampdoria poderia disputar a competição máxima da Europa. Todavia, os acontecimentos seguintes marcariam, ao contrário, o período mais complicado de sua gestão.

Garrone teve relação paternal com Cassano, mas rompeu com o jogador antes da morte (Getty)

Caso Cassano, debandada e o trágico rebaixamento

Cassano era um “filho” querido e o preferido de Garrone. Sempre que podia, o empresário deixava isso claro – como quando defendeu o atacante mesmo depois que ele, nervoso, decidiu deixar o campo de maneira súbita, com um jogo em andamento, e prejudicou o time. O problemático Fantantonio, porém, logo se revelaria l’enfant terrible (“a criança terrível”) do grupo.

O conflito teria tido seu início em 26 de outubro de 2010, na época do prêmio Rete d’Argento, concedido ao melhor jogador do time na temporada. Ao convidar Cassano para o evento, no qual seria laureado, Garrone foi surpreendido com a recusa do fantasista, que definiu a premiação como “merda” e ainda afirmou que preferia ganhar o Tapiro d’Oro, troféu satírico dado por um canal de TV italiano. As réplicas teriam levado Duccio ao estado de fúria. Logo depois, o clube levou o fato ao conhecimento público e anunciou o afastamento do barês.

A novela continuou e Garrone chegou, inclusive, a entrar com uma ação judicial para o encerramento imediato do contrato de Cassano, mas recebeu a negativa da corte. Em entrevista concedida à Rai, afirmou que o jogador era um “delinquente” e também garantiu que ele jamais vestiria a camisa do time outra vez. Em uma carta ao presidente, as torcidas organizadas, enfurecidas com a situação, solicitaram uma conversa com o empresário, que recusou o diálogo.

Não bastasse a crise extracampo, o clube vivia um pesadelo dentro das quatro linhas. No início da temporada 2010-11, Delneri, Marotta e Paratici rumaram, todos eles, para a Juventus. Pazzini sairia para a Inter no mercado de inverno; mas antes o time já havia caído nos playoffs da Liga dos Campeões. O pior aconteceria na Serie A, onde, por consequência da debandada, das más escolhas de técnicos – quatro treinadores ocuparam o banco blucerchiato ao longo da campanha, contando com os interinos – e do imbróglio com Cassano, a equipe sofreria uma dramática queda para a segunda divisão.

Os últimos momentos da dinastia Garrone foram pouco brilhosos. Ainda sob a gestão de Riccardo, houve o retorno à Serie A em 2012. Em janeiro de 2013, dias antes de completar 77 anos, Duccio perdeu a batalha contra um câncer pancreático, que já o assolava há certo tempo. Os elencos de Genoa e Sampdoria compareceram a cerimônia fúnebre, assim como Marotta, Pazzini, Massimo Moratti e diversas outras personalidades do futebol. Cassano, além de comparecer ao cortejo e ao enterro, lamentou a morte do ex-chefe e revelou-se “destruído” e “inconsolável” após tomar conhecimento do ocorrido.

Edoardo Garrone, filho de Riccardo, assumiu o controle acionário da ERG, que já dirigia, e a presidência da Sampdoria, assim como Enrico Mantovani fizera após a morte do pai. Permaneceu no cargo até 2014, quando vendeu o time a Massimo Ferrero, mandatário do clube até dezembro de 2021. Antes da transação, a família Garrone deixou alguns milhões de euros no cofre doriano, ratificando a responsabilidade que caracterizou a gestão.

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