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Lionello Manfredonia, o ‘traidor’ que quase morreu em campo

Se existe uma pessoa que pode alegar que viveu quase de tudo no futebol esse alguém é Lionello Manfredonia, um dos poucos jogadores que atuaram por Lazio e Roma. Antes de virar casaca, o defensor já havia ficado em maus lençóis com a torcida celeste por conta do envolvimento num esquema de apostas ilegais que levou a equipe para a segunda divisão cinco anos após o seu primeiro título italiano. Lionello ainda teve entreveros com Enzo Bearzot, se transformou em meio-campista, conquistou títulos pela Juventus e se aposentou ao ser vítima de um ataque cardíaco durante uma partida.

Romano nascido nas cercanias do Olímpico, em 1956, Manfredonia jogava na amadora Don Orione quando, aos 15 anos, foi selecionado em uma peneira da Lazio. Enquanto evoluía nos juniores do clube biancoceleste, o zagueiro Lionello pode aprender com alguns dos mais duros defensores da história do futebol italiano: entre os profissionais, fardavam nomes como Giuseppe Wilson, Giancarlo Oddi, Luigi Martini, Sergio Petrelli e Luigi Polentes.

Esses zagueirões foram protagonistas de um grande time da Lazio, que se notabilizou por ter dado o primeiro scudetto ao clube. Aquele elenco também era famoso por sua virulência, simbolizada pelas inúmeras brigas de um vestiário rachado e pelas pistolas que os jogadores carregavam nas cinturas. Com esse exemplo ante seus olhos, Manfredonia foi criado com a rispidez que o período – os anos de chumbo italianos – carregava, mas sem deixar a técnica de lado. Com qualidade acima da média para a posição, o canhoto virou líbero.

Pela base dos aquilotti, o jovem romano faturou o Campeonato De Martino (sub-23) e o Primavera (sub-20). Como tinha grande perspectiva de vingar como jogador, estreou cedo entre os profissionais – pouco antes de completar 19 anos. Lionello teve seu batismo de fogo em 1975, quando substituiu o capitão Wilson diante do Bologna, num Olímpico lotado. Agradou.

Depois do scudetto, porém, a Lazio não era mais a mesma. Luciano Re Cecconi e o técnico Tommaso Maestrelli faleceram tragicamente, Giorgio Chinaglia foi para o New York Cosmos e o time despencou na tabela. Mesmo num ambiente atribulado, Manfredonia se destacou individualmente: ganhou convocações para a seleção sub-21, com a qual disputou o Europeu da categoria, e também para a principal.

Na Lazio, Manfredonia mostrou qualidade e chegou à seleção (Getty)

Como líbero, Manfredonia disputou quatro partidas pela Nazionale, então comandada por Bearzot. O técnico vinha tentando renovar o elenco e chegou a incluir Lionello, de 22 anos, na lista para a Copa do Mundo de 1978: o laziale iria à Argentina na condição de reserva do experiente Mauro Bellugi, do Bologna. Aos 6 minutos do terceiro jogo da competição, contra os donos da casa, o titular se machucou. O zagueiro pensou que entraria em campo, mas o treinador optou pelo experiente e versátil Antonello Cuccureddu. Era o fim da passagem de Manfredonia pela seleção.

O líbero celeste ficou chateado com a escolha de Bearzot e, depois da partida, encarou o técnico com arrogância. “A minha impulsividade me traiu. Falei a ele: ‘Eu não vim para ser turista. No futuro, trate de não me chamar mais se não for me colocar para jogar’. Ele atendeu ao meu pedido e eu não fui mais convocado”, contou Manfredonia ao site Pianeta Calcio.

A verdade é que Lionello tinha muito futebol nos pés e poucos miolos na cabeça. Na Lazio, o romano continuava a se destacar mesmo durante a fase negativa e se consolidava como um dos mais importantes defensores da Itália no fim da década de 1970. Contudo, em 1979-80, eclodiu o escândalo Totonero: ao participarem de apostas ilegais, jogadores fraudaram resultados em partidas das séries A e B. Manfredonia era um deles.

De início, 13 atletas foram detidos provisoriamente. Quatro eram da Lazio: além de Manfredonia, a polícia foi atrás de Wilson, Massimo Cacciatori e Bruno Giordano. Ao longo das investigações, o celeste Maurizio Montesi também foi indiciado. Todos aguardaram ao julgamento em liberdade e acabaram condenados apenas na esfera esportiva.

Num dérbi capitolino, Manfredonia usa sua malícia característica para bloquear o brasileiro Falcão (Bartoletti)

Lionello recebeu um gancho de três anos e meio, ainda que alegasse que não apostava nas partidas de seu próprio time. Para a defesa do jogador, ele teve uma responsabilidade desproporcional ao tamanho da pena. O júri, porém, não acolheu a tese e nem mesmo qualquer recurso peticionado por Manfredonia. No tribunal, clubes também foram punidos. Lazio e Milan receberam as sentenças mais duras e foram rebaixados para a Serie B, enquanto outras cinco equipes tiveram apenas pontos deduzidos.

Com apenas 24 anos, Manfredonia havia vivido de forma bastante acelerada. No período em que ficou afastado dos campos, porém, freou muitos de seus ímpetos: continuou treinando, voltou a estudar e até se graduou em direito. Em 1982, recebeu uma grande notícia. Após o tricampeonato mundial da Itália, a Federação Italiana de Futebol (FIGC) concedeu anistia a todos os envolvidos no Totonero, de forma que nenhuma das penas anteriormente aplicadas passou de 24 meses.

O zagueiro foi reintegrado ao elenco da Lazio, que ainda disputava a Serie B em 1982-83. Enquanto ficou parado, Manfredonia se aprimorou enquanto jogador e passou a atuar mais vezes como volante. Se dividindo entre a defesa e a entrada da área, Lionello ajudou o time romano a conquistar o acesso, mas não foi capaz de fazê-lo subir de patamar. As águias tiveram dois anos ruins na elite e amargaram um novo rebaixamento, em 1985.

A Lazio não vivia uma situação econômica favorável e, novamente na segundona, decidiu vender alguns de seus principais jogadores. Manfredonia, que já tinha quase 29 anos, foi colocado no mercado e, depois de uma década e 234 partidas pelo lado biancoceleste da capital, acabou negociado com a Juventus. Uma transferência que poderia ter ocorrido antes, a propósito.

Já na Juventus, Manfredonia atuou como volante e foi campeão mundial (imago/AFLOSPORT)

Gianni Agnelli, proprietário do clube bianconero, era um admirador do futebol de Lionello e chegou a sondá-lo quando ele começou a se destacar, na década de 1970. O versátil jogador, porém, ainda era jovem e optou por permanecer em sua cidade natal. Em 1984, capitolinos e piemonteses também já haviam conversado para concretizar a ida de Manfredonia para Turim, mas as tratativas não avançaram.

O caminho foi tortuoso, mas finalmente Manfredonia aportava num clube que lhe poderia dar maior projeção do que a Lazio daqueles anos. E títulos, também. Afinal, a Juventus treinada por Giovanni Trapattoni e liderada por Michel Platini acabara de ser campeã europeia. A defesa da Velha Senhora contava com Sergio Brio, Gaetano Scirea, Luciano Favero e Antonio Cabrini, de modo que o romano não encontraria lugar na retaguarda alvinegra. Lionello, portanto, fora contratado para substituir Marco Tardelli e formar uma dupla de meio-campo com o samarinês Massimo Bonini. Ao contrário do tricampeão mundial, porém, o romano era canhoto e faria a função de volante pela esquerda.

Manfredonia contribuiu para as oito vitórias consecutivas da Juventus no início da Serie A e, em dezembro de 1985, alcançou seu primeiro título como profissional: o Mundial Interclubes, conquistado após triunfo sobre o Argentinos Juniors, em Tóquio. Em alta, Lionello só perderia jogos em 1985-86 por conta de suspensões e de uma lesão na costela, que comprometeu parcialmente o seu rendimento. Ao fim da campanha, ele também se sagraria campeão italiano.

Mais maduro do ponto de vista psicológico, o volante viveu seu auge em 1986-87. A Juventus iniciaria aquela temporada com um elenco pouco modificado, mas novo comandante: Trapattoni decidiu encerrar seu longo ciclo e abriu espaço para Rino Marchesi. O técnico manteve parte das premissas do antecessor, mas Manfredonia ganhou mais atribuições ofensivas – tanto é que marcou nove gols na campanha, sendo sete deles na Serie A. A sua especialidade era o posicionamento nas bolas levantadas na área: ele estava sempre no lugar certo para cabecear ou aproveitar os rebotes. Foi assim que anotou o seu tento mais importante, numa vitória por 1 a 0 no clássico com o Torino.

Lionello conquistou todos os seus títulos como profissional enquanto vestia a camisa bianconera (Arquivo/Juventus)

O grande desempenho pela Juventus fez com que a imprensa cogitasse o seu retorno à seleção. Desde 1986, a Itália era comandada por Azeglio Vicini, com quem Lionello não tinha problemas. Porém, sua idade era o entrave da vez. O treinador renovava a Nazionale e tentava construir um elenco forte para a disputa da Copa de 1990, em solo italiano. Manfredonia, então, acabou ficando fora dos planos.

Lionello poderia se contentar com o novo posto de pilar juventino. Mas, como era de praxe não fez aquilo que dele se esperava. Giampiero Boniperti, presidente da agremiação de Turim, lhe ofereceu a renovação contratual, mas com vínculo de apenas uma temporada – que seria repactuado, eventualmente, a cada campanha. Manfredonia, que estava prestes a completar 31 anos, não aceitava: queria um contrato de três. A Roma não se importava em satisfazer a sua vontade e, dessa maneira, o ex-laziale consumou a traição.

Embora o volante tenha agido como um profissional, a transferência não foi bem aceita por nenhuma das torcidas da capital. Facções ultras romanistas, por exemplo, criaram o Grupo Anti-Manfredonia. Lionello, porém, já conhecia muito bem o clima da sua cidade natal e, mesmo com tal antagonismo, não se sentiu intimidado ou sequer se dobrou a pressões. Jogando como defensor ou volante, teve duas temporadas razoáveis pelos giallorossi e ajudou o time a conclui-las na parte de cima da tabela.

O veterano também começou a campanha de 1989-90 como titular na defesa formada pelo técnico Luigi Radice. Era absoluto no setor, a ponto de ter ficado de fora de apenas duas das 17 rodadas do primeiro turno da Serie A. A que encerrava esta fase do campeonato, contra o Bologna, calharia de ser a derradeira de sua trajetória profissional. Justamente diante do time contra o qual estreara, no já longínquo ano de 1975.

Manfredonia era visto com ceticismo por parte da torcida romanista (imago)

Fazia muito frio na Emília-Romanha naquele 30 de dezembro de 1989. A Roma viajou de trem para encarar o Bologna e Manfredonia, de 33 anos, estava escalado. Aos 5 minutos de jogo, contudo, Lionello sofreu uma parada cardíaca e caiu estatelado no campo, com a clara necessidade de um atendimento de urgência. Quem lhe prestou os primeiros socorros foi Giordano, ex-companheiro de Lazio e um de seus melhores amigos – de quem estava afastado por conta de alguns desentendimentos.

Para a sorte de Manfredonia, Giordano era mesmo um parceiro. Também contava a seu favor a existência de um desfibrilador à beira do gramado, fato incomum para a época. O jogador foi levado ao principal centro médico da cidade, que, (mais uma vez) afortunadamente, fica próximo ao estádio Renato Dall’Ara. Foram necessárias cinco descargas elétricas, além de um trabalho de massagem cardíaca e ventilação boca a boca para que Lionello reagisse. Precisou, também, ficar em coma induzido. O jogador não fumava nem bebia; também não tinha problemas de saúde. Porém, estava com febre e sob bastante estresse por motivos pessoais, como a morte de sua mãe, que ocorrera dias antes.

São e salvo depois do susto, Lionello acordou alguns dias depois. Em recuperação, recebeu a notícia de que foi visitado por jogadores e técnicos de toda a Itália. Foi informado, também, que a partida continuou a ser jogada (algo impensável para os dias de hoje) e que acabou empatada em 1 a 1. Por fim, soube que não defenderia mais a Roma ou qualquer outro clube: os médicos não permitiram que ele voltasse a atuar profissionalmente. Obrigado a anunciar sua aposentadoria, Manfredonia teve de abrir mão de uma desejada experiência no futebol de outros países.

Fora dos gramados, o romano continuou ligado ao futebol, mas apenas em seus bastidores. Afinal, já tinha passado por poucas e boas, com fortíssimas emoções, e não tinha recomendação médica para repeti-las. Manfredonia atuou como diretor esportivo de Cosenza, Cagliari, Vicenza e Ascoli, até se tornar agente Fifa, em 2004. Desde 2015, retornou ao papel de cartola e ocupou a função de coordenador das divisões de base no Brescia e no Vicenza.

Lionello Manfredonia
Nascimento: 27 de novembro de 1956, em Roma, Itália
Posição: zagueiro e volante
Clubes como jogador: Lazio (1975-85), Juventus (1985-87) e Roma (1987-90)
Títulos: Campeonato De Martino (1974), Campeonato Primavera (1976), Mundial Interclubes (1985) e Serie A (1986)
Seleção italiana: 4 jogos

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