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A ‘enguia’ Angelo Anquilletti foi sinônimo de solidez e devoção ao Milan

Exemplo de longevidade e dedicação, Angelo Anquilletti foi um dos grandes nomes do Milan nos anos 1960 e 1970. Não era um primor técnico, e nem precisava ser. Tratava-se de um exímio defensor que, com sua sobriedade, facilitava a vida dos companheiros em campo. Como bem definiu o jornalista Gianni Brera: “Anquilletti não é exatamente um estilista, mas prático”. Leal, jamais foi expulso ao longo de todas as 515 partidas que disputou na carreira. Era uma figura um tanto quanto peculiar: com seu inconfundível dialeto, dava declarações como “mi pichi” (io picchio), que é “eu acertei”, quando falava de algum lance bem sucedido na marcação.

Da Serie D à Serie A

Nascido na Lombardia, mais precisamente em San Donato Milanese, foi um grande lateral direito. Curiosamente, sempre defendeu equipes da região ao longo da carreira. Clássico camisa 2, foi um dos pilares no histórico time do Milan dos anos 1960, treinado por Nereo Rocco.

Estreou a nível profissional atuando pela Solbiatese, que disputava a Serie D. Em sua primeira temporada, ajudou o time a chegar perto da promoção para a terceira divisão, quando os nerazzurri ficaram na segunda colocação do Grupo B de sua categoria, a somente um ponto do Rizzoli, que subiu.

O acesso foi obtido pelos lombardos no ano seguinte, que também marcaria os últimos capítulos do defensor pelo clube. A Solbiatese teve um desempenho satisfatório e fechou a terceira divisão na quarta colocação do Grupo A. Apesar do bom lugar na tabela, 20 pontos separavam a equipe da líder Reggiana, que garantiu vaga na Serie B ao lado de Livorno e Trani.

Com atuações regulares, aliadas a uma solidez demonstrada nos três anos anteriores, Anquilletti foi contratado pela Atalanta para jogar a Serie A. Ele fez sua estreia na competição em meados de novembro, com uma vitória fora de casa diante do Cagliari, por 1 a 0. No biênio em Bérgamo e, apesar da pífia produção ofensiva dos orobici naquele período, o sistema defensivo chamou a atenção: sofreu somente 28 gols em 1964-65, um a menos do que a campeã Inter e, na temporada 1965-66, foi vazado 37 vezes, um índice ainda muito interessante em relação à média geral das equipes. O lateral-direito se mostrava cada vez mais uma verdadeira força na contenção, ao proteger seu setor com extrema perícia.

No Milan, Anquiletti (dir.) formou forte defesa, ao lado de nome como Schnellinger e Rosato (imago)

Angelo e Milan: feitos um para o outro

Foi quando surgiu o interesse do Milan, que havia conquistado a Copa dos Campeões três anos antes, mas não vivia um grande momento: a campanha na Serie A foi aquém do esperado (7º lugar) e a eliminação para o Chelsea, na segunda rodada da Copa das Feiras, ainda que mediante um sorteio – aliás, fora assim que os rossoneri avançaram na primeira fase –, marcaram uma temporada decepcionante.

O Diavolo fez duas contratações que ajudaram o time a ter êxito em pouco tempo: o atacante Pierino Prati, vindo da Salernitana, e o próprio Anquilletti. A primeira temporada do defensor enquanto atleta rossonero foi coroada com o seu primeiro título na carreira; o Milan faturou a Coppa Italia ao bater o Padova na decisão, com um gol solitário do atacante brasileiro Amarildo, campeão mundial pelo Brasil em 1962. A conquista garantiu uma vaga na Recopa Uefa no ano seguinte.

A temporada 1967-68 foi inesquecível para Anquilletti. E para o Milan, que quase conseguiu emplacar três títulos. Após cinco anos, os rossoneri voltaram a conquistar o scudetto, e com folga – nove pontos de diferença para o vice-campeão Napoli. Isso foi possível muito por conta do lateral-direito, que deu solidez ao setor defensivo, e dos 15 gols marcados por Prati, artilheiro da competição. A segunda taça veio através da Recopa Uefa, ao vencerem o Hamburgo com uma doppietta do sueco Kurt Hamrin. Já na Coppa Italia, os milanistas avançaram à fase final, em um quadrangular que reuniu, além do Diavolo, Torino, Inter e Bologna; o clube granata foi o vitorioso de forma invicta. Angelo, cada vez mais imprescindível para o esquema de Rocco, foi quem mais vezes atuou pela equipe, com 50 aparições.

As glórias não cessaram. No ano subsequente, os rossoneri chegaram perto do segundo scudetto consecutivo quando empataram em pontos com o vice-líder Cagliari (mas perderam nos critérios de desempate) e ficaram a quatro pontos da campeã Fiorentina. Mas algo especial, digamos, continental, aguardava pelo Milan. Na Copa dos Campeões, os italianos eliminaram Malmö, Celtic (de Kenny Dalglish), Manchester United (de Bobby Charlton, George Best, Denis Law e mais). Uma das melhores exibições de Anquilletti pelo Diavolo foi em Glasgow, contra o forte time do Celtic, quando anulou o ótimo ala escocês Jimmy Johnstone.

Ao longo de 11 anos, Anquilletti faturou nove taças pelo Milan (Liverani)

Na finalíssima, o Milan enfrentou o poderoso Ajax, comandando pela lenda Johan Cruyff, que dominaria o cenário europeu no princípio da década seguinte. Com uma atuação arrebatadora, o Diavolo moeu os holandeses, aplicando uma goleada por 4 a 1, com direito a tripletta de Prati, que foi o vice-artilheiro da competição ao lado de Cruyff, com seis gols cada – Law foi o goleador máximo, com nove. Angelo Sormani deu números finais para o lado rossonero, e Velibor Vasovic marcou o único gol do Ajax. Anquilletti começou o confronto tendo um pouco de dificuldade, mas logo se recuperou, contribuindo diretamente para a glória rubro-negra.

Com o Milan no topo do continente pela segunda vez (a primeira foi em 1962), as atenções se voltaram para a temporada seguinte, que contaria com a disputa da Copa Intercontinental. Em nível nacional, os resultados deixaram a desejar, mas o destaque ficou para o torneio internacional, que pôs os rossoneri contra o campeão da Libertadores, o Estudiantes. O catenaccio italiano havia derrubado times argentinos em encontros prévios, quando a Inter, por duas vezes, bateu o Independiente. No primeiro duelo, em Milão, os donos da casa se impuseram e venceram com autoridade: 3 a 0, com doppietta de Sormani e um gol marcado pelo franco-argentino Néstor Combín. Anquilletti anulou o meia Juan Ramón Verón, principal nome da equipe platense e pai de Juan Sebastián Verón.

A partida de volta aconteceu em Buenos Aires, na Bombonera. Os ânimos se mantiveram exaltados e a capital argentina presenciou uma batalha travada no campo do Boca Juniors. Os jogadores do Milan foram recebidos com uma chuva de moedas e café quente atirados pela torcida local. Gianni Rivera abriu o placar para os visitantes aos 30 minutos do primeiro tempo, e os anfitriões viraram o placar ainda nos primeiros 45 minutos, com dois gols em um intervalo de 70 segundos: Marcos Conigliaro e Ramón Aguirre Suárez foram os autores. Na etapa complementar, vendo que não reverteriam a vantagem, os argentinos perderam o controle.

Houve alguns momentos tensos, como quando o zagueiro Aguirre Suárez deu duras entradas em Sormani, ou quando o mesmo aplicou uma cotovelada em Combín (acusado de “traidor da pátria”), fraturando-lhe o nariz e deixando-lhe completamente ensanguentado e inconsciente. Como resposta, Rivera deu forte entrada em Juan Echecopar até ser agredido pelo descontrolado Aguirre Suárez, enfim expulso. Rivera ainda arrumou mais um cartão vermelho, quando fez cera e tirou Eduardo Manera do sério – e do jogo. Para completar, após o apito final, o arqueiro argentino Alberto José Poletti interrompeu um cumprimento entre Daniel Romeu e Giovanni Lodetti, agredindo o meio-campista rossonero.

Pela sua longevidade no Milan, Anguilla chegou a usar a faixa de capitão algumas vezes (imago/WEREK)

Graças à larga vantagem construída no San Siro, o Milan chegou ao topo do futebol mundial, mas não pode nem comemorar, porque alguns jogadores do Estudiantes queriam causar mais confusão. A polícia teve que intervir e o elenco rossonero precisou aguardar um tempo no vestiário. Para se ter uma ideia do quão violenta foi essa partida, a ditadura argentina puniu os três atletas do Estudiantes (Aguirre Suárez, Manera e Poletti) deixando-os detidos por um mês em uma penitenciária em Buenos Aires.

Vivendo o melhor momento da carreira, Anquilletti atuou duas vezes pela Nazionale, ambas contra o México, em janeiro de 1969 – 3 a 2 no primeiro encontro e 1 a 1 no segundo. Mesmo sem ir a campo, já havia feito parte do time campeão europeu em 1968, e estava pronto para fazer parte da lista de convocados para a Copa do Mundo de 1970, no México, mas machucou o tornozelo contra a Juventus, pela penúltima rodada da Serie A. Depois disso, não teve mais chances na seleção, muito pelo fato de disputar posição com o lendário Tarcisio Burgnich, da Inter.

Anquilletti passou a se notabilizar, também, pelo lado estudioso. Podemos traçar um paralelo com a análise de dados hoje, mas de uma forma bastante embrionária. Ele analisava e observava atentamente os jogadores adversários, lia jornais esportivos e sabia qual era o pé bom do atacante que iria enfrentar ou como o rival se posicionava dentro da área. Implacável marcador, jogava com os dois pés e era firme nos duelos terrestres e aéreos. Apelidado de “enguia” (Anguilla) por conta de um trocadilho com seu sobrenome e da marcação sufocante que aplicava, era formidável na antecipação e costumava fechar bem os espaços de quem estivesse marcando, deixando que o oponente conduzisse a bola próximo à linha de fundo, sem ter espaço para cortar para dentro.

No topo do mundo, o Milan consolidou um grande momento. Com dois vices, tanto na Serie A quanto na Coppa Italia (perdeu para Inter e Torino, respectivamente), não ergueu taças um ano mais tarde, mas sempre se manteve competitivo. Em 1971-72, o scudetto bateu mais uma vez na trave quando o Diavolo ficou a um ponto da campeã Juventus, mas na copa nacional as coisas foram diferentes e o título veio após um triunfo por 2 a 0 diante do Napoli de Dino Zoff, do ex-companheiro Sormani e companhia.

Defensor muito físico, Anquilletti faturou quatro taças internacionais pelo Milan (imago)

Mais uma temporada se anunciava, e, com ela, mudanças no corpo técnico. Rocco assumiu a direção técnica e Cesare Maldini, há cinco anos aposentado, assumiu como treinador rossonero. Começou bem, dando ao Milan mais um título de Coppa Italia (agora contra a Juventus, nas penalidades máximas) e da Recopa Uefa (batendo o Leeds United por 1 a 0 na final). A Serie A foi uma repetição da anterior: a Juve levou o caneco ao somar um ponto a mais do que o Diavolo, que sofreu uma traumática derrota para o Verona na última rodada (5 a 3) e viu a Velha Senhora bater a Roma (2 a 1). Na ocasião, o sempre quieto Anquilletti, que raramente era visto sorrindo e jogava com frieza e seriedade, foi atrás de um jornalista que havia proferido comentários impróprios contra ele. Furioso e pronto para partir para a agressão física, escorregou e bateu com a cabeça no chão, tendo que levar dois pontos.

Em sua segunda temporada à frente da equipe, Maldini viu os rossoneri atravessarem momentos de instabilidade e deu lugar a Giovanni Trapattoni. O Milan fechou o ano com um 7º lugar na Serie A e dois vice-campeonatos, na Recopa e na Supercopa Uefa. Anquilletti foi, novamente, quem mais atuou, com 43 partidas.

Gustavo Giagnoni, ex-Torino, assumiu como treinador para a nova época, mas os títulos não voltaram: 5ª colocação na Serie A e vice na Coppa Italia, vencida pela Fiorentina. Anquilletti continuava atuando em alto nível, mas coletivamente as coisas não iam tão bem. Em 1975-76, maus resultados deram início a uma verdadeira dança das cadeiras entre os treinadores. O time começou com Giagnoni, voltou para Trapattoni e terminou com Paolo Barison. Após 11 temporadas vestindo vermelho e preto, Angelo conquistou uma última taça naquela que foi sua campanha derradeira pelo Milan, agora sob o comando de Giuseppe Marchioro. Foi na Coppa Italia e com um sabor especial, pois a final foi contra a Inter (2 a 0).

Aposentadoria e dívidas

Idolatrado pelo torcedor rossonero por conta da devoção no gramado, tinha como marca a “caça” a quem quer que partisse com a bola dominada em sua direção, sem desistir um instante sequer. Foi fundamental para o sucesso que o Milan vinha tendo em tempos recentes e era peça valiosa no histórico setor defensivo, que contava com nomes como Fabio Cudicini, Karl-Heinz Schnellinger, Roberto Rosato e o já citado Trapattoni. Um dos queridinhos de Rocco, que confiava piamente nele para proteger o lado direito da defesa. Inclusive, ao lado de Alberto Bigon, era uma das vozes do treinador em campo.

No Monza, pela Serie B, Anquilletti encerrou sua trajetória profissional (imago)

Aos 34 anos de idade, deixou o Milan. Ao todo, foram 418 aparições pelos rossoneri, sendo 278 pela Serie A, além de nove taças vencidas e dois gols marcados – ambos na mesma partida, contra o Levski Sofia, pela primeira fase da Recopa da Uefa, em 1967. Seu último jogo vestindo vermelho e preto foi contra a Spal, no dia 22 de junho de 1977, em um triunfo por 2 a 0 pela Coppa Italia. O defensor foi atuar no Monza, que disputava a Serie B. No biênio em que representou os biancorossi, o time teve campanhas idênticas na competição nacional ao terminar duas vezes na quarta colocação – um feito inédito para os brianzoli, que por pouco não chegaram à elite pela primeira vez. Aos 36, e sentindo o peso da idade, optou por pendurar as chuteiras.

A vida de Anquilletti depois da aposentadoria foi marcada por empreendimentos que fracassaram. Empreitadas esses que começaram, na verdade, nos tempos de jogador, quando estava no Monza e inaugurou uma clínica odontológica. Sem sucesso, posteriormente abriu um comércio de ferro velho, mas as coisas não melhoraram. Com o filho William, abriu um lava-jato que teve momentos prósperos até que um problema envolvendo o terreno mudou tudo. Angelo detinha a planta do local, mas a terra pertencia à família Bracco. Quando o clã precisou realizar uma construção, o ex-defensor não conseguiu renovar o arrendamento do terreno e teve de encerrar o negócio. Com o outro filho, Roberto, ainda tentou tocar uma corretora de imóveis. Não deu certo, novamente.

Em 2014, aos 71 anos, foi diagnosticado com um tumor no duodeno. Quando a notícia veio a público, o Milan se prontificou a oferecer ao eterno ídolo um cargo simbólico de observador, com um salário mensal de dois mil euros. No entanto, faleceu no dia 9 de janeiro de 2015, em decorrência do agravamento no estado de saúde. Esmagado pelas dívidas, Anquilletti sempre guardou os problemas financeiros para si. Sem recursos, a família (a esposa Elsa e os filhos Roberto e William) não pode pagar pelo funeral, que só foi realizado graças a um grupo de voluntários de Veneza; estiveram presentes no velório Cudicini, Schnellinger, Prati, Lodetti, Franco Baresi, Walter De Vecchi e outros.

Dois dias depois, os Anquilletti receberam a notícia de que a casa em que moravam seria hipotecada. Ninguém apareceu nos dois primeiros leilões; no terceiro, os promotores imobiliários esperavam pagar por um terço do valor inicial até que Roberto Donadoni, então treinador do Bologna, desembolsou a quantia necessária (50 mil euros) e a dívida foi extinta, salvando o patrimônio da família. Angelo, nos tempos em vestia a camisa da Atalanta, era um exemplo para o comandante, que também passou pela Dea antes de se imortalizar no Milan. Tal como enfrentou os adversários em campo, o ex-lateral encarou as agruras da vida com coragem: “Sempre resolvi meus problemas sozinho”, disse uma vez. Porém, certamente teria apreciado a generosa atitude de Donadoni.

Mario Angelo Anquilletti
Nascimento: 25 de abril de 1943, em San Donato Milanese, Itália
Morte: 9 de janeiro de 2015, em Milão, Itália
Posição: lateral-direito
Clubes: Solbiatese (1961-64), Atalanta (1964-66), Milan (1966-77) e Monza (1977-79)
Títulos: Copa Intercontinental (1969), Copa dos Campeões (1969), Recopa Uefa (1968 e 1973), Serie A (1968), Coppa Italia (1967, 1972, 1973 e 1977), Serie D (1963) e Eurocopa (1968)
Seleção italiana: 2 jogos

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