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Gaetano Anzalone lançou bases para uma Roma forte, mas só foi compreendido anos depois

Um bom agricultor sabe que, para colher frutos, é preciso deixar a terra fértil. Quando o terreno é duro e seco, é ainda mais importante ter persistência e coragem, mesmo que ninguém entenda porque insistir naquele lugar. Gaetano Anzalone, nascido na comuna de Roiate, num 5 de outubro de 1930, foi o grande agricultor da história da Roma. O presidente visionário fundou o alicerce vencedor dos anos 1980 ao contratar jogadores fundamentais, investir na base, reformular o marketing e dotar o clube de infraestrutura.

Apelidado carinhosamente pela torcida de “Il presidente gentiluomo”, por seu jeito cavalheiro de tratar as pessoas, Anzalone não conquistou nenhum título de expressão durante sua gestão, entre 1971 e 1979, mas nem por isso é menos lembrado. O papel de Gaetano foi o de pavimentar o futuro, com ações pioneiras e que geram impacto até os dias de hoje.

Nasce a “Rometta”

Sua carreira no futebol começa em Óstia, fração litorânea da capital italiana, como dirigente esportivo da Ostiense. Filiado à Democracia Cristã (o mesmo partido político de Franco Evangelisti, Giuseppe Ciarrapico e Franco Sensi, que também foram presidentes da Roma), Anzalone foi vereador na Cidade Eterna e conheceu Alvaro Marchini, então mandatário do clube giallorosso. Essa conexão o levou a ser dirigente romanista, focando seus esforços nas categorias de base – área importante em sua história.

De dentro, acompanhou o calvário de Marchini, que já não conseguia suportar os problemas financeiros que quase levaram a Roma à falência em 1964 – até uma vaquinha foi organizada pelo técnico da época, o argentino Juan Carlos Lorenzo, para custear a entrada do time na Coppa Italia.

Em junho de 1971, aos 41 anos, comprou o clube do ex-presidente. Ali, sabia que o desafio ia além das finanças: era fundamental voltar a vencer.

Na gestão Marchini, a Roma conquistou a Coppa Italia de 1969, sob a liderança de Fabio Capello. Sua venda foi dolorida para a torcida, não só porque o destino era o lado preto e branco de Turim, mas também porque foi acompanhada da saída de outras jovens estrelas: Fausto Landini e Luciano Spinosi. Os três foram cedidos sem a devida compensação, uma vez que Roberto Vieri, Luis del Sol e Gianfranco Zigoni, envolvidos na troca, pouco fizeram na capital.

Anzalone cumprimenta Herrera: o ícone argentino foi o primeiro técnico da gestão do presidente (Arquivo/AS Roma)

Foi o derradeiro e melancólico último ato do antigo presidente antes de passar o bastão. Nesse cenário de incertezas, as primeiras temporadas de Anzalone não foram boas.

No banco, promoveu a volta de Helenio Herrera ao comando do time. O histórico mestre do catenaccio foi demitido pelo antigo mandatário por falar demais e irritar a torcida, associando, em uma entrevista, o único scudetto da Roma até então, conquistado em 1941-42, a uma “benesse” do ditador fascista Benito Mussolini. É claro, Herrera fracassou.

Em 1971-72, o time terminou na sétima posição, fora das competições europeias. A temporada seguinte foi ainda pior: 11ª colocada no campeonato, perdendo para a Lazio no turno e no returno – com o agravante de que a rival tinha sido promovida da Serie B. Aliás, na década de 1970, a Roma conseguiu somente quatro vitórias no Derby della Capitale, contra sete dos celestes e outros sete empates. Os laziali, inclusive, foram campeões italianos em 1974.

Mesmo as vitórias não empolgavam. Depois de bater o Rimini por 3 a 2, pela Coppa Italia de 1977, a manchete do jornal do dia seguinte estampava um duro “decepção para 40 mil”, explicando que a torcida vaiou o time no Olímpico pela péssima atuação no segundo tempo.

Com resultados como esses, nascia a “Rometta” – ou “Rominha”, em bom português. O apelido pejorativo resumia o sentimento de um time que fazia rir de nervoso e chorar de desespero, com atletas muito inexperientes ou já maduros demais. A ácida alcunha durou até o início da década de 1980 e perseguiu Anzalone até mesmo depois de sua morte.

Vieri foi trazido por Marchini, antecessor de Anzalone na presidência, mas não rendeu o esperado (Arquivo/AS Roma)

A espinha dorsal do scudetto

Em 1973, o presidente levou o técnico Nils Liedholm para sua primeira passagem pelos giallorossi. É a partir desse ponto que Anzalone começa a construir a espinha dorsal da Roma que venceria o scudetto na temporada 1982-83.

O mandatário também investiu com mais força na categoria de base do clube, trabalho que desenvolvia nos seus tempos de dirigente. A Primavera romanista de Anzalone semeou talentos e colheu Agostino Di Bartolomei e Bruno Conti, grandes ídolos da Roma e fundamentais em 1982-83 – além de Francesco Rocca, que fatalmente estaria naquele time se não tivesse se aposentado com apenas 26 anos, devido a uma gravíssima lesão no joelho. Não é preciso lembrar que a base giallorossa também revelou, anos mais tarde, Francesco Totti e Daniele De Rossi, bandeiras romanistas.

No mercado, deu tiros certeiros para reforçar a equipe. Foi buscar Franco Tancredi no Rimini, que disputava a Serie B – goleiro chegou ao clube em 1977 e só foi deixar os giallorossi em 1990. Para o ataque, acertou com aquele que mudaria a história do clube: Roberto Pruzzo, a contratação mais disputada para a temporada 1978-79. A Juventus chegou a oferecer quatro de seus talentos da base (entre eles Paolo Rossi) para arrancar o artilheiro do Genoa, mas o negócio não prosperou. Já Anzalone apostou todas as fichas, pagando três bilhões de liras, uma quantia astronômica na época – tão grande que se tornou o recorde de uma aquisição feita por um clube italiano até então.

O fantasma do rebaixamento

Nada disso, porém, refletia em campo. Salvo em 1975-76, quando Liedholm conduziu a equipe para um terceiro posto que foi comemorado como um título devido à distância de apenas quatro pontos para a campeã Juventus, o desempenho da Rometta era pífio. O time orbitava no meio da tabela, flutuando entre a 10ª e a 8ª posição. Uma década de resultados medíocres.

A última temporada com Anzalone na presidência quase termina em tragédia. Pruzzo, em seu debute na Cidade Eterna, contribuiu com 12 gols em 1978-79, mas a Roma acumulou 12 derrotas e 10 empates em um campeonato que tinha 30 rodadas. As três últimas partidas foram de tirar o fôlego. Rondando a zona de rebaixamento, a Loba teve um alívio quando venceu a Inter, fora de casa, com gols do seu centroavante (pegando o rebote do goleiro após falta cobrada por Di Bartolomei) e de Michele De Nadai, que aproveitou outra cobrança de falta de DiBa.

No jogo seguinte, na penúltima rodada, enfrentou uma desesperada Atalanta, no Olímpico. A Roma abriu o placar com um gol contra de Giovanni Vavassori. Entretanto, em 10 minutos, tudo mudou: Ezio Bertuzzo aproveitou a espalmada bisonha de Paolo Conti e empatou. Depois, Cesare Prandelli acertou um belo chute de fora da área e virou a partida. No segundo tempo, Pruzzo mostrou mais uma vez seu faro artilheiro, se antecipou à zaga e empatou novamente.

Com o apito final, a torcida invadiu o gramado para comemorar o sopro de esperança. Só faltava um ponto, na última rodada, contra um desinteressado Ascoli – embora matematicamente ainda com risco de cair. Dessa forma, o empate era bom para as duas equipes. Houve quase um pacto de não agressão, que deixou o jogo frio e constrangedor. Não houve disputa. Tão ruim que a crônica esportiva da época só conseguiu separar dois lances para classificar como “melhores momentos” de um 0 a 0 sem sal, mas suficiente. A Rometta permanecia na Serie A.

Entre as inovações do presidente romanista, se destaca a construção do CT de Trigoria (Arquivo/AS Roma)

A criação de Trigoria

Se em campo os resultados eram pífios, fora dele tudo se desenhava de forma pioneira. Em 1974, Anzalone comprou 30 hectares de terra de Francesco Marini-Dettina, ex-presidente da Roma. O motivo? Construir uma nova casa para os giallorossi, que tinham sua sede no Circo Massimo.

A área ficava localizada no bairro de Trigoria, no sul da capital, bem afastada do centro histórico. Para se ter uma ideia, ao sair do coração de Roma, só se chega lá de carro ou, nos tempos atuais, através do seguinte itinerário: embarque na linha B do metrô até a estação final de Laurentina, baldeação para um ônibus com destino a Trigoria e, de lá, outro ônibus para a Praça Dino Viola. Se hoje dá trabalho (o trajeto, de quase 20km, é percorrido em cerca de 1h30), imagina naquela época.

As obras do futuro Centro Esportivo Fulvio Bernardini, extremamente moderno para a época, começaram em abril de 1975 e só foram terminar na década de 1980, já sob a presidência de Dino Viola. Como pai da ideia e da execução, Anzalone inaugurou o campo de treino em julho de 1979, em um de seus últimos atos como presidente. “Trigoria é de algo que me orgulho. Naquela época, custou 2 bilhões de liras. Imagina quanto isso vale hoje”.

O Lupetto e o marketing

Piero Gratton nasceu em Milão, mas foi em Roma que seu talento para as artes gráficas ganhou o mundo. Foi nele que Gaetano Anzalone apostou para construir uma nova identidade para o clube.

A estratégia do presidente era um dos passos para impulsionar o marketing do clube e, com ele, as receitas, sempre escassas. Desde 1927, os torcedores da Roma se acostumaram com o acrônimo “ASR” estampando os escudos do clube – via de regra com a loba amamentando Rômulo e Remo, os dois irmãos que, segundo a lenda, fundaram a Cidade Eterna.

Assim, Gratton desenhou o Lupetto, uma cabeça de lobo, eventualmente cercada por dois círculos: um amarelo e outro vermelho. A mudança radical tornou-se o emblema oficial do clube por duas décadas, entre 1977 e 1997. Ainda hoje é querido e utilizado, principalmente na segunda camisa, para jogos fora de casa.

E se há marketing, há vendas. Foi na gestão de Anzalone que o clube inaugurou a primeira Roma Shop no Estádio Olímpico, uma loja exclusiva para vender produtos licenciados do clube, como as camisas de jogo com o Lupetto desenhado.

A Roma Shop foi o embrião do que hoje é a AS Roma Store, que conta com nove lojas espalhadas por várias partes da capital italiana. A principal delas, na luxuosa Via del Corso, tem até um minimuseu com taças, os escudos e um pouco da história do clube.

Anzalone foi muito criticado durante sua presidência, mas provou que suas escolhas estavam certas (Arquivo/AS Roma)

A taça solitária

Se Anzalone não triunfou no comando da Roma, ao menos teve o gosto de levantar uma taça, ainda que de menor prestígio. Em 1972, a Roma participou da Copa Anglo-Italiana, que reunia seis times da Inglaterra e seis da Itália. Na ocasião, os ingleses foram representados por Birmingham, Blackpool, Carlisle United, Leicester, Stoke City e Sunderland, enquanto os participantes italianos eram Roma, Atalanta, Cagliari, Catanzaro, Sampdoria e Vicenza.

O torneio, com duração de menos de um mês, tinha uma fórmula curiosa: os clubes eram divididos em três grupos, mas times do mesmo país não se enfrentavam. Ao final dos quatro jogos, o melhor inglês e o melhor italiano faziam a final.

Assim a Roma chegou ao Olímpico em 24 de junho de 1972 para enfrentar o Blackpool, atual campeão. Os gols saíram só no segundo tempo, e de maneira parecida: Francesco Scaratti e Zigoni acertaram chutes de fora da área, enquanto Renato Cappellini aproveitou rebote da zaga, que não conseguiu afastar outro disparo realizado de longe. O 3 a 1, em casa, garantiu o primeiro e único título da Roma na década de 1970.

O adeus de Anzalone

A trágica temporada de 1978-79 deixaria cicatrizes. Anzalone enfrentava um terremoto interno: um grupo de diretores pediu demissão e a situação estava insustentável. O presidente cavalheiro faria seu último gesto de grandeza ao vender o clube para Dino Viola, um dos diretores remanescentes, por uma quantia próxima daquela que tinha investido uma década antes.

Nessa operação financeira, Anzalone perdeu dinheiro, mas não ganhou, necessariamente, o respeito de todos. Em uma entrevista para Franco Dominici, explicou: “Comprei a Roma de Marchini por 1 bilhão e 480 milhões [de liras] e vendi para Viola por 1 bilhão e 600 milhões liras, incluindo Trigoria e uma academia de jovens talvez única na Itália; foram oito anos de desvalorização desenfreada. Parece-me que fui prudente e honesto, não tentei ganhar com a especulação. Fui um bom administrador, deixei uma Roma jovem, com um orçamento saudável, sem problemas. Se parece pouco para você, desculpe. Mas não ganhei e por isso saí”, analisou.

A fala expressa o ressentimento pela futuras administrações, que, segundo ele, o relegaram ao esquecimento. “Foi a Roma que se afastou de mim: ninguém me procurou, me chamou; como se eu, oito anos como presidente, nunca tivesse existido”.

Gaetano Anzalone morreu em Roma, aos 87 anos. O legado do presidente cavalheiresco é do tipo difícil de reconhecer em uma fria análise de números. À frente do seu tempo, viveu uma relação de amor e de protestos com a torcida, que hoje reconhece seu tamanho dentro da história da Roma. Um tamanho imensamente maior do que uma Rometta pode pressupor.

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