Jogos históricos

Em 1994, a eficiência do Milan de Fabio Capello superou o cruyffismo do Barcelona

A transição entre as décadas de 1980 e 1990 foi mesmo dourada para o Milan: nesse período, o time foi quatro vezes finalista da Liga dos Campeões. Uma derrota por 1 a 0 para o Olympique de Marseille de Jean-Pierre Papin e Didier Deschamps freou a locomotiva que atravessava a Europa, mas o Diavolo logo se reergueu. Com seu trabalho, Don Fabio Capello teve a audácia de envolver o Barcelona em uma dança frenética, que resultou num triunfo por 4 a 0, em 1994. A goleada deu ao clube italiano o quinto título da competição em sua história e o terceiro naqueles anos.

O caminho rossonero até o triunfo

A temporada 1992-93 não foi tudo o que os torcedores rossoneri, acostumados com as glórias dos anos anteriores, sonhavam. A conquista do 13º scudetto garantia que o time era forte, mas o Milan teria de lidar com um novo panorama em 1993-94: um cenário que envolvia as saídas de Frank Rijkaard, Ruud Gullit e Alberico Evani, além da ausência de Marco van Basten, em decorrência de sérias lesões que lhe levariam à aposentadoria precoce, em 1995.

A saída de Arrigo Sacchi no começo dos anos 1990, marcada pelas desavenças e pela personalidade forte do treinador, deu espaço para a ascensão de Capello. Ele comandava a formação de atletas na equipe Primavera rubro-negra e já tinha passado pelo clube como atleta. Em 1991, o bom volante recebeu a oportunidade decisiva para o sucesso de sua carreira: comandar um Milan que queria ganhar a Itália e gostava de viver as noites europeias. Sacchi havia perdido a corrida pelo título italiano em duas temporadas consecutivas. Era hora de a taça voltar para casa e Don Fabio conquistou um bicampeonato nacional.

Encaixotado pela eficiente marcação rossonera, Romário teve poucas chances em Atenas (imago/WEREK)

No entanto, era necessário inovar para que a Europa pudesse voltar a se colorir de vermelho e preto. Isso ficou claro após a derrota por 1 a 0 para o Olympique de Marseille, na final continental de 1993. Os franceses haviam batido na trave por muitos anos, inclusive contra o Milan, mas foram o motivo da tristeza dos italianos em Munique, no Olympiastadion. Na tentativa de construir um novo caminho, o Diavolo pescou justamente no OM e buscou Marcel Desailly para substituir Rijkaard. Assim como o holandês, o francês nasceu como zagueiro e foi adaptado para atuar como volante.

Além de Desailly, o único novo contratado que teria espaço como titular seria o jovem lateral Christian Panucci, adquirido junto ao Genoa. No fim das contas, dois dos principais “reforços” para 1993-94 já estavam no time e ganharam mais chances com as saídas de Gullit e Rijkaard, além da não inscrição de Van Basten. Zvonimir Boban e Dejan Savicevic, que pouco podiam atuar devido à limitação de três estrangeiros por partida, foram alçados por Capello ao onze inicial rossonero.

Na temporada 1993-94, foi implementado um novo formato da Liga dos Campeões. Nele, existiam duas etapas de mata-mata; uma fase com dois grupos de quatro equipes, denominada Champions League; e, depois, disputas de semifinal e final – ambas em jogo único. No primeiro estágio eliminatório, o time de Milão passou por Aarau, da Suíça, e Kobenhavn, da Dinamarca. Depois, liderou sua chave, que ainda contava com Werder Bremen, Anderlecht e Porto, segundo colocado. Na semi, os rossoneri prevaleceram com um sonoro 3 a 0 sobre o Monaco.

Providencial, como sempre, Massaro colocou os italianos em vantagem com dois gols no primeiro tempo (imago)

Os blaugranas de Cruyff

A engrenagem do futebol moderno foi acionada por Johan Cruyff, nome indiscutível nas rodas de conversas e análises quando o assunto é a revolução do esporte – no que contribuiu tanto como atleta quanto como treinador. Em 1988, quando retornou ao Barcelona, após comandar o Ajax, pediu por poder sobre o vestiário e também uma reformulação de elenco. A competição dentro da Espanha era difícil, mas o técnico sonhava com o sucesso nas noites de Copa dos Campeões e buscou aperfeiçoar o time para disputar a competição.

Assim, o neerlandês montou o Dream Team europeu, com jogadores como Pep Guardiola, Ronald Koeman, Julio Salinas, Michael Laudrup e Hristo Stoichkov. Uma de suas prioridades era a formação dos atletas nas categorias de base, demonstrando uma liderança visionária e considerando que colher resultados a longo prazo também era importante dentro do esporte.

Foi sob comando de Cruyff que, em 1991-92, o Barcelona entrou no disputado hall de clubes campeões europeus. Em Wembley, a adversária foi a emergente Sampdoria, num repeteco da final da Recopa Uefa de 1989, vencia pelos catalães. A equipe de Vujadin Boskov contava com o brasileiro Toninho Cerezo e também com uma dupla que fez história não apenas no clube, mas na Squadra Azzurra: Gianluca Vialli e Roberto Mancini. O gol de Koeman, já na prorrogação, garantiu o título do Barça e rendeu um pesadelo aos blucerchiati.

Sem dúvidas, Massaro foi o grande nome da final de Atenas (imago/Buzzi)

Na temporada 1993-94, o Barcelona chegava forte em busca do bi, que daria um gosto ainda mais especial à trajetória do holandês como técnico – com Cruyff, os catalães foram tetracampeões consecutivos de La Liga, entre 1991 e 1994. Naquela campanha, a chegada de Romário elevou o patamar do ataque blaugrana. Além do Baixinho, o treinador contava ainda com Salinas, Laudrup, Stoichkov, Txiki Begiristain e Andoni Goikoetxea.

Pela Liga dos Campeões, o timaço do Barcelona teve um susto logo na primeira fase: estreou com derrota por 3 a 1 para o Dynamo Kyiv, fora de casa. Na volta, dentro do Camp Nou, os catalães venceram por 4 a 1 e respiraram aliviados. A segunda fase foi mais tranquila, com duas vitórias sobre o Austria Vienna. Já na fase de grupos, o Barça liderou uma chave com Monaco, Spartak Moscou e Galatasaray. O triunfo sobre o Porto, nas semifinais, também foi protocolar e carimbou a ida à decisão, em Atenas, na Grécia.

A batalha de um time só dentro de campo

As ausências, muito em virtude da limitação de três estrangeiros que podiam ser utilizados por jogo, demonstravam a qualidade que a final apresentaria. Só para se ter uma ideia do nível dos times, Cruyff optou por não relacionar Salinas e Laudrup na lista de 16 jogadores, enquanto Capello não convocou atletas como Papin e Brian Laudrup – irmão do dinamarquês do Barça. O Milan ainda precisou lidar com os desfalques de Franco Baresi, suspenso, e Alessandro Costacurta, machucado.

Eficaz na marcação e nas estocadas ofensivas, Desailly foi vital para o triunfo do Milan sobre o Barcelona (Getty)

Em campo, figuravam duas das mais glamourosas escalações da década de 1990. No Barcelona, Andoni Zubizarreta seria o homem embaixo das redes. Albert Ferrer, Koeman, Miguel Ángel Nadal e Sergi fechavam a defesa, atrás do meio composto por Guardiola, Guillermo Amor e José Mari Bakero – com as subidas de Sergi e a liberdade dada a Bakero, às vezes o setor ficava com o desenho de um losango. Na frente, Cruyff contava com tridente formado por Stoichkov, Romário e Begiristain.

Do outro lado, um Milan que conseguiu se sobressair das baixas e trouxe nomes de peso para compor seu elenco. Sebastiano Rossi fechava o gol, protegido pela dupla formada por Paolo Maldini e Filippo Galli, com Mauro Tassotti e Panucci nas laterais. Demetrio Albertini, Desailly, Boban e Roberto Donadoni ocupavam o meio e distribuíam a bola para o furioso ataque formado por Daniele Massaro e Savicevic.

No estádio Olímpico de Atenas, o Milan se apresentou todo de branco, enquanto o Barcelona foi a campo com seu tradicional uniforme blaugrana. A defesa catalã era consistente, mas o time italiano unia a formação tática de Capello com Giovanni Trapattoni às inovações que Sacchi havia entregado no fim dos anos 1980. Dessa forma, o Diavolo foi ofensivo desde os primeiros momentos do jogo.

Autor de golaço na decisão, Savicevic comemora com a orelhuda (Allsport/Getty/Hulton Archive)

Não demorou para que a bola balançasse as redes pela primeira vez. Aos 10 minutos, Donadoni cruzou a bola na área, nas costas da defesa do Barcelona, e Panucci apareceu para cabecear forte, vencendo Zubizarreta. Porém, o gol foi anulado por impedimento, de forma grotesca. Seis jogadores adversários davam condição ao italiano, que estava em posição legal por cerca de três metros. O único milanista que estava fora de jogo era Massaro, que não interferia no lance.

Aos 22 minutos, o Milan deu justiça ao placar. Savicevic arrancou pela ponta direita, deixou Nadal no chão e, quando era pressionado por Guardiola, inverteu a jogada para Massaro antes de Zubizarreta fechar o ângulo. Diante da baliza desguarnecida, o versátil italiano só fez empurrar para as redes.

O êxtase milanista ainda estava começando, assim como o pesadelo do Barcelona. Donadoni teve a chance de ampliar, após uma cobrança de falta sobrar na área para que ele chegasse finalizando, mas Zubizarreta encaixou. O Barça tentava verticalizar as jogadas com rapidez, no intuito de vencer a defesa rossonera em velocidade, mas a retaguarda estava atenta. Uma prova disso ocorreu quando Romário tentou um arremate improvável, que ia no canto de Rossi, mas foi bloqueado por Galli com o biquinho da chuteira.

Já consagrado em território italiano, Capello finalmente alcançou a glória continental (Bongarts/Getty)

Para jogar um balde de água fria na tentativa de reação do Barcelona e provocar um golpe psicológico no adversário, o Milan não pensou apenas em segurar o resultado que tinha: ao contrário, procurou ampliar a vitória parcial e, assim, chegou ao segundo gol antes do intervalo. Nos acréscimos da etapa inicial, Donadoni chegou à linha de fundo e efetuou o passe para a entrada área. Novamente, Massaro – que estava desmarcado – pegou em cheio e deixou o Diavolo ainda mais confortável.

Capello preparou um time ofensivo e que, ao mesmo tempo, sabia aproveitar os erros de marcação e de passe do adversário. A defesa também sabia como se comportar e a máquina ofensiva do Barcelona pouco conseguia fazer. Os comandados de Don Fabio tinham ainda mais ritmo na segunda etapa e, graças a um erro crucial de Nadal na dividida de Savicevic, aos 47 minutos, saiu o terceiro gol rossonero. O camisa 10 aproveitou o posicionamento adiantado de Zubizarreta e anotou um golaço: com a bola pingando na quina da área, efetuou um balão e contou com a lentidão do arqueiro para encobri-lo.

Para fechar o caixão e impedir uma possível reação do Barcelona, Albertini conseguiu enfiar a bola entre os defensores para Desailly deixar o seu gol, aos 58 minutos. O francês foi inteligente para não ficar em posição de impedimento e bateu com categoria, sem dar chances para Zubizarreta. Além do peso ofensivo, o volante ainda fazia uma partida autoritária na retaguarda, anulando Bakero e também dobrando a marcação sobre Romário, quando o Baixinho buscava jogo na intermediária.

Ainda restava pouco mais de meia hora para a partida terminar, mas não havia mais disputa. Esmorecido, o Barcelona não conseguia criar nada e o Milan ainda teve duas chances de deixar o chocolate ainda mais saboroso. Quando o jogo acabou, o estádio vibrou com o massacre que Capello infligiu a Cruyff. Na beira do campo estava Baresi, ídolo que passou toda sua carreira no clube e estava pronto para comemorar com seus companheiros. Uma vez rossonero, sempre rossonero. E o Diavolo, novamente, fazia a Europa vibrar em vermelho e preto, ratificando a vocação de Milão em ser uma das capitais da Champions League.

Milan 4-0 Barcelona

Milan: Rossi; Tassotti, Galli, Maldini (Nava), Panucci; Boban, Albertini, Desailly, Donadoni; Savicevic, Massaro. Técnico: Fabio Capello.
Barcelona: Zubizarreta; Ferrer, Koeman, Nadal, Sergi (Estebaranz); Amor, Guardiola, Bakero; Stoichkov, Romário, Begiristain (Eusebio). Técnico: Johan Cruyff.
Gols: Massaro (22′ e 45+2′), Savicevic (47’) e Desailly (58’)
Árbitro: Philip Don (Inglaterra)
Local e data: estádio Olímpico, Atenas (Grécia), em 18 de maio de 1994

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