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Apesar de desengonçado, Zeljko Kalac conseguiu colocar Dida no banco do Milan

Yuri Said

Zeljko Kalac foi mais um daqueles goleiros australianos de grande estatura – a ponto de ser chamado de Spider, ou aranha, em português, devido a seus longos braços. De origem croata, mas radicado em Sydney, maior cidade da Austrália, o arqueiro começou a sua passagem na Itália pelo Perugia, no início dos anos 2000, e atingiu o ápice da sua carreira ao se transferir para o Milan. Em sua trajetória, o grandalhão de 2,02 m competiu com nomes como Mark Schwarzer, na seleção, e o lendário Dida, no Diavolo, embora tenha conseguido momentos de protagonismo mesmo tendo essa concorrência.

Nascido em 1972, o goleiro deu início a sua carreira na grande comunidade croata que emigrou para a Austrália. Foi no Sydney Croatia – atualmente Sydney United – que Kalac deu seus primeiros passos, a partir de 1988. No clube, chegou a concorrer com Mark Bosnich, que também seria seu colega na seleção, mas, mais experiente, ganhou a posição e começou a sua jornada com os Socceroos: debutou em 1992, um ano após ter integrado o elenco que ficou com o quarto lugar no Mundial Sub-20.

Kalac permaneceu como goleiro titular do Sydney United até 1995, quando foi comprado pelo Leicester, então militante na segunda divisão, e se transferiu para a Inglaterra. Sua passagem pelo Reino Unido foi breve, com apenas três partidas disputadas. O momento mais lembrado dela, porém, não envolveu uma defesa impressionante: no final da temporada, na partida decisiva dos playoffs de promoção para a Premier League, com o jogo ante o Crystal Palace empatado em 1 a 1, foi colocado em campo pelo técnico Martin O’Nelli nos últimos minutos da prorrogação para as penalidades. Contudo, nos acréscimos, Steve Claridge, seu companheiro de time, marcou o gol da vitória e do acesso dos Foxes.

O goleiro não permaneceu no Leicester e chegou a acertar com o Wolverhampton, mas a transferência melou porque ele não teve um visto de trabalho aceito. Com isso, Kalac voltou ao Sydney United e passou um biênio por lá, até retornar à Europa, comprado pelo Roda, dos Países Baixos – antes, um negócio com o Portsmouth também não foi adiante.

O Roda vivia o seu melhor momento em toda a história e Kalac chegava como herdeiro de Ruud Hesp, vendido ao Barcelona um ano antes. Durante sua passagem pela Holanda, sua performance em campo foi extremamente positiva e fundamental para que os aurinegros fizessem boas campanhas em todas as competições que disputaram nas quatro temporadas em que Zeljko guardou a meta.

Kalac acertou com o Perugia após ter uma grande atuação num jogo contra o Milan (imago/WEREK)

Entre 1998-99 e 2001-02, os mineiros obtiveram três classificações para competições continentais, chegaram a terminar a Eredivise na quarta posição (2000-01) e ganharam a Copa da Holanda, em 2000. Além disso, Kalac brilhou nas oitavas de final da Copa Uefa 2001-02, em San Siro. O Roda conseguiu bater o Milan por 1 a 0 e, ao igualar o placar do jogo de ida, levar a decisão para os pênaltis. O australiano defendeu as cobranças de José Mari e Kakha Kaladze, mas os rossoneri acabaram se classificando assim mesmo – e avançaram até as semifinais, quando foram eliminados pelo Dortmund. O fato é que aquela exibição abriu as portas do futebol italiano para o grandalhão.

Suas excelentes atuações, com a cereja do bolo colocada na viagem a Milão, chamaram a atenção da direção do Perugia, então na Serie A. A transferência para o clube da Úmbria foi concretizada na janela de verão europeu de 2002, três meses depois da inesquecível noite de San Siro. E o Kalac que chegava à Itália era um atleta bastante experiente. Com quase 30 anos, havia integrado o elenco da Austrália na campanha do terceiro lugar na Copa das Confederações de 1997 e tinha o bicampeonato da Copa Oceania no currículo – e ainda seria tri, em 2004.

Sob o comando de Serse Cosmi, o Perugia era um time bastante competitivo e vinha de sucessivas campanhas de meio de tabela na Serie A, com direito a participação na Copa Intertoto. Em 2002, porém, os grifoni haviam perdido seus dois goleiros, Andrea Mazzantini e Óscar Córdoba, que foram substituídos por Kalac e Sebastiano Rossi, ex-Milan – que estava sentado no banco no duelo com o Roda. A disputa para convencer o treinador estava aberta.

O australiano foi escolhido para iniciar a temporada como titular. Entretanto, o veterano Seba, em seu derradeiro ano como profissional, tomou o seu lugar por algumas rodadas. Spider reassumiu seu posto na 15ª jornada da Serie A e ajudou a equipe que ainda tinha Zé Maria, Fabio Grosso e Fabrizio Miccoli a ficar com o nono posto no campeonato. E, principalmente, a ter notável campanha na Coppa Italia. Em 2002-03, o Perugia chegou às semifinais do mata-mata nacional, enfrentando, quem diria, o Milan na fase anterior à decisão. O primeiro confronto, no estádio Renato Curi, terminou num empate sem gols, mas os rossoneri levaram a melhor com um triunfo por 2 a 1 no jogo de volta.

O desempenho consistente de Kalac em seu ano de estreia na Itália assegurou sua continuidade como titular no time da Úmbria, que se classificou para a Copa Intertoto. Mesmo enfraquecido após perder muitas peças, o Perugia venceu a competição que abria a temporada continental, em 2003-04, sem sofrer nenhum gol – muito por méritos de Spider, é claro. Vitoriosos, os biancorossi ganharam o direito de disputar a Copa Uefa, mas o seu sonho europeu terminou na Holanda, frente ao PSV Eindhoven, na fase de 16-avos de final.

Nas competições nacionais, o Perugia teve menos sorte. O time de Kalac foi eliminado pela Juventus nas oitavas da Coppa Italia e passou a temporada inteira lutando na parte inferior da tabela da Serie A. Os umbros ficaram na 15ª posição e tiveram de disputar a repescagem contra o sexto colocado da segundona, já que a primeira divisão teria o número de participantes aumentado de 18 para 20. Uma Fiorentina em recuperação foi a adversária e levou a melhor sobre os biancorossi, empurrando-os para a categoria inferior.

Kalac ficou no Perugia para a disputa da Serie B e só deixou o clube após sua falência (imago/IPA)

Kalac permaneceu na Úmbria em 2004-05, como titular do Perugia. O time teve uma excelente campanha e terminou o certame nos playoffs, podendo comemorar o retorno à elite justamente no ano de seu centenário. Contudo, além de não ter obtido o acesso frente ao Torino, o presidente Luciano Gaucci – que já não vinha honrando os pagamentos para os funcionários – deixou um rombo nas contas do clube e da conglomerado que o gerenciava, juntamente a outras empresas. O imbróglio resultou na falência dos biancorossi e em seu rebaixamento para a terceirona, mas não só: motivou a fuga do cartola para a República Dominicana, onde morreria como foragido da justiça, em 2020. Desde então, os grifoni não conseguiram disputar a Serie A outra vez.

Em meio a essa reviravolta, o destino sorriu para Kalac, que tinha 104 aparições e 37 partidas sem sofrer gols pelos umbros. Com a falência do Perugia, todos os jogadores ficaram sem contrato e o poderoso Milan, que já conhecia muito bem os seus atributos, adquiriu seus serviços sem pagar qualquer valor pela transferência. O goleiro australiano chegou para compor o elenco do gigante da Lombardia, uma vez que o brasileiro Dida já era consagrado no time e, claro, tecnicamente superior em comparação ao reforço.

Mesmo sabendo do seu lugar como reserva, Kalac não poderia dizer não ao Milan. Afinal, tinha a oportunidade única de disputar grandes títulos e, claro, de ser colega de lendas do futebol. Ao chegar em Milão, o australiano encontrou um vestiário formidável. Além de contar com Dida em seu sistema defensivo, o Diavolo dispunha de nomes como Cafu, Paolo Maldini, Alessandro Costacurta, Jaap Stam, Alessandro Nesta e Kaladze. Do meio para frente, o time treinado por Carlo Ancelotti ainda contava com Andrea Pirlo, Gennaro Gattuso, Rui Costa, Kaká, Clarence Seedorf, Andriy Shevchenko e Filippo Inzaghi.

Em 2005-06, sua primeira temporada pelo Milan, Kalac participou de apenas duas partidas na Serie A e estreou na Champions League, substituindo Dida no segundo tempo do jogo contra o Bayern Munique, pela ida das oitavas de final. No fim das contas, Spider totalizou sete jogos e manteve suas redes intactas em quatro deles.

Os números e a qualidade daquele elenco do Milan, entretanto, podem enganar. A temporada do time de Ancelotti foi muito atribulada e houve muitos questionamentos sobre fim de ciclos. O técnico chegou a entrar na berlinda e Dida, que cometia muitos erros, também. Só que Kalac não conseguiu se impor, até porque também falhava. Por exemplo, na impactante derrota por 3 a 0 para o Palermo, que resultou na eliminação do Diavolo nas quartas de final da Coppa Italia, o grandalhão foi imperfeito em dois dos gols.

Mesmo com os percalços, Zeljko garantiu seu lugar entre os convocados da Austrália para a Copa do Mundo de 2006 na Alemanha. O goleiro disputou a última partida da fase de grupos – justamente contra a Croácia, país de origem de seus familiares – e, do banco de reservas, assistiu à dramática eliminação dos Socceroos contra a Itália, nas oitavas.

Kalac chegou ao Milan para ser reserva e cumpriu a função, sendo que deixou Dida no banco por algum tempo (Getty)

Na temporada seguinte, Dida sofreu alguns problemas físicos, como a lesão num dos ligamentos do joelho, e Kalac aumentou o número de jogos disputados: foram 16, como o seu número de camisa, incluindo nove pela Serie A. O australiano chegou a atuar em três partidas da vitoriosa campanha do Milan na Champions League, terminada com revanche sobre o Liverpool na final, mas também se contundiu e ficou de molho por um tempo, o que levou os rossoneri a buscarem Marco Storari no Messina.

A temporada 2007-08 seria a mais positiva de Kalac no Milan – e não foi por ter vencido, como reserva, a Supercopa Uefa e o Mundial de Clubes. O motivo? Ele simplesmente conseguiu desbancar Dida por questões técnicas na segunda parte da campanha rossonera. É verdade que o brasileiro também teve problemas físicos, que impulsionaram a utilização de Spider em algumas ocasiões, mas quando os dois tinham condições de jogo, Ancelotti frequentemente optou por escalar o australiano. No total, Zeljko acumulou 32 aparições num ano de resultados medianos do Diavolo, que foi apenas quinto colocado da Serie A.

O desempenho de Kalac, entretanto, foi considerado suficiente para lhe render a renovação do contrato até 2010. O que acabaria sendo, de certa forma, um erro do Milan. Até porque Christian Abbiati voltou de empréstimo ao Atlético de Madrid e se tornou o titular, levando Dida à reserva e o já veterano Zeljko, então com 35 anos, à condição de terceiro arqueiro. Spider entrou em campo apenas uma vez em 2008-09 e rescindiu o seu vínculo com os rossoneri em agosto de 2009, após 56 aparições totais pelo Diavolo. O australiano fechou com o Kavala, da Grécia, com o qual faria sua última temporada como profissional.

Aposentado, Kalac se tornou preparador de goleiros e rodou o mundo na função. Em sua terra natal, ocupou o posto em Sydney FC, Western Sydney Wanderers e Melbourne City, além de ter passado pelo Karabükspor, da Turquia, e pelo Xanthi, da Grécia. Zeljko também se tornou treinador, com um trabalho pelo Urania Baska Voda, da terceirona croata, e dois por seu querido Sydney United – time que comanda atualmente.

Sua carreira como técnico ainda é incipiente, mas dentro de campo ele construiu uma trajetória louvável e inesperada. Kalac faturou oito títulos e, principalmente, teve uma passagem por um Milan histórico, chegando a colocar um ídolo rossonero para escanteio por um tempinho. Vamos combinar que está de bom tamanho para um grandalhão desengonçado que deixou a Austrália, um país até então muito pouco expressivo no cenário internacional do futebol.

Zeljko Kalac
Nascimento: 16 de dezembro de 1972, em Sydney, Austrália
Posição: goleiro
Clubes: Sydney United (1989-95 e 1996-98), Leicester (1995-96), Roda (1998-2002), Perugia (2002-05), Milan (2005-09) e Kavala (2009-10)
Títulos: Copa da Oceania (1996, 2000 e 2004), Copa da Holanda (2000), Copa Intertoto (2003), Champions League (2007), Supercopa Uefa (2007), Mundial de Clubes (2007)
Clubes como treinador: Sydney United (2020 e 2024-hoje) e Urania Baska Voda (2021-23)
Seleção australiana: 54 jogos

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