Cartolas

O excêntrico Luciano Gaucci tornou o Perugia conhecido em todo o mundo

Se você tiver acompanhado o futebol italiano apenas de maneira superficial nas décadas de 1990 e 2000 ou já tiver buscado algumas histórias daquela época, certamente o nome de Luciano Gaucci não lhe será estranho. Afinal, o extravagante cartola fez de tudo para colocar o Perugia em evidência e ainda causou rebuliço com outras empreitadas.

Bem antes disso, Luciano precisou “subir na vida”. Ele nasceu na capital italiana em 1938, de uma família modesta proveniente da região das Marcas, e começou sua vida profissional como condutor de bondes em Roma. Passou ao administrativo da operadora do transporte público local ao ser aprovado num concurso e, pouco tempo depois, foi trabalhar em uma empresa de limpeza da qual o seu sogro era proprietário.

As primeiras empreitadas

Em 1975, Gaucci fundou a sua própria empresa de limpeza, chamada La Milanese, e se tornou um acionista minoritário da Roma, seu time de coração. Seus empreendimentos iam bem e um homem de negócios nunca deixa seu dinheiro parado. Então, em 1980, ele fundou uma escuderia hípica, já que o turfe também é uma atividade com possíveis grandes lucros, desde que o diretor tenha visão e habilidade para comprar o cavalo certo e contratar o jóquei perfeito.

Neste caso, Big Luciano comprou o jovem potro Tony Bin por 12 milhões de liras, fez com que ganhasse mais de 3 bilhões em premiações e ainda vendeu o cavalo em 1988 por um recorde de 7 bilhões da antiga moeda corrente na Itália – valor que equivaleria a cerca de 8 milhões de euros. Tutelado pela escuderia de Gaucci, a White Star, o cavalo de corrida foi um dos mais famosos da história do turfe italiano.

No ano seguinte à fundação da escuderia, Gaucci se tornou membro do conselho administrativo da Roma, e cada vez mais foi ganhando terreno na direção de seu clube de coração. Três anos depois, ele se tornou vice-presidente e em duas vezes, 1985 e 1991, tentou adquiri-lo, mas não obteve sucesso: primeiro, porque Dino Viola voltou atrás na decisão de vender a agremiação; depois, porque Giuseppe Ciarrapico teve um ambiente mais favorável para fechar o negócio no início da década de 1990. Nesse período, o romanista até tentou assumir o controle da Lazio, mas as tratativas não decolaram e ele resolveu mudar sua estratégia.

Gaucci tinha estilo populista, mas nem sempre estava de bem com os torcedores (Arquivo/Perugia Calcio)

Perugia: glórias e polêmicas

Assim como fizera com o cavalo Tony Bin, o empresário percebeu que seria uma boa estratégia assumir um time em divisões menores, numa situação em que teria mais lastro e uma menor necessidade de capital para alavancar um clube. Gaucci, então rumou para a Úmbria e comprou o Perugia, em 1991. Na época, os grifoni disputavam a terceira divisão e, logo em sua segunda temporada no comando, o empreendedor romano mostrou um lado obscuro que seria constante em sua trajetória como cartola.

Na 29ª rodada da Serie C1 de 1992-93, o Perugia precisava de poucos pontos para subir para a segunda divisão, e jogou contra o Siracusa, que brigava contra o descenso. Um pênalti escandaloso foi marcado para os umbros, que empataram a partida em 1 a 1: o resultado encaminhou o rebaixamento dos sicilianos e o caminho do acesso perugino para a Serie B, depois de ausência de sete anos. Porém, este duelo foi o estopim para que uma investigação fosse feita, já que o time biancorosso obtivera resultados de forma muito polêmica em algumas partidas daquela temporada.

Foi descoberto que Gaucci doou um de seus cavalos de turfe para o sogro do árbitro da partida contra o Siracusa e se encontrou com o próprio apitador três dias antes da partida crucial, no fim de abril. O empresário ainda teve a indecência de usar a o seguinte argumento para se defender: afirmou que o juiz insistira pelo almoço e presenteava a todos com puros-sangues. Naturalmente, não convenceu o tribunal e acabou suspenso do futebol por três anos. A promoção do Perugia também foi anulada.

O time acabou subindo para a segunda divisão de forma lícita no ano seguinte e conseguiu retornar à Serie A em 1996, depois de 15 anos de ausência. Curiosamente, na temporada em que a suspensão de seu presidente terminou, embora isso não fizesse diferença: Gaucci continuou a frequentar estádios, mesmo impedido, e pagava uma multa à Federação Italiana de Futebol (FIGC) sempre que o fazia. O Perugia não permaneceu na elite e, como tinha um forte elenco, voltou para a primeira categoria em 1998, dessa vez de forma aparentemente sustentável.

Entre 1998 e 2004, o Perugia fez bastante sucesso. Não só se manteve na principal divisão nacional como ainda chegou até a semifinal da Coppa Italia, em 2003, e venceu a Copa Intertoto, no mesmo ano – o que lhe deu o direito de disputar a Copa Uefa. Apesar de tudo, o ápice do projeto foi muito curto: ainda em 2004 a equipe biancorossa caiu para a Serie B e nunca mais retornou.

Uma das passagens mais marcantes desse período perugino na elite ocorreu em novembro de 1999. Após uma derrota do Perugia para o Bari, no Renato Curi, Gaucci explodiu: considerou que o mau resultado havia ocorrido porque o árbitro não expulsara Duccio Innocenti por uma entrada que ocasionou a substituição de Renato Olive logo no início do jogo. O mandatário gostava de afirmar repetidamente que o seu time era roubado.

Furioso pelo acontecido, Gaucci desceu até os vestiários do estádio para insultar o árbitro Emilio Pellegrino e ainda discutiu feio com Vincenzo Matarrese, presidente do Bari. No calor do bate-boca, tentou até invadir o ônibus adversário para agredi-lo. Para Big Luciano, o resultado do jogo fazia parte de um complô armado por Antonio Matarrese, irmão do cartola barês, que também foi ex-dirigente máximo dos galletti e da FIGC, além de ocupar, naquela época, os cargos de vice da Uefa e da Fifa.

No Perugia, o cartola conseguiu valorizar jogadores como Liverani e Materazzi (imago/Buzzi)

A anedota fez parte do início dessa jornada do Perugia na elite, período em que o time teve jogadores que fizeram história de forma positiva. O maior exemplo disso foi o japonês Hidetoshi Nakata, uma promessa entusiasmante e que também servia a uma estratégia de marketing do mecenas: Gaucci queria popularizar os biancorossi no Japão, vender camisas por lá e visava estabelecer a marca da equipe no panorama internacional.

Nakata foi um dos felizes e raros acertos de Gaucci na busca por atletas que estabelecessem uma simbiose entre a boa qualidade técnica e o efeito publicitário, pensado para gerar o máximo de receitas para os modestos cofres do Perugia. O japonês foi um dos jogadores jovens e baratos adquiridos pelo cartola que conseguiram se valorizar na Úmbria e acabaram sendo revendidos a peso de ouro – tal qual os selecionáveis italianos Marco Materazzi e Fabio Liverani.

Depois da venda de Nakata para a Roma, em 2000, Gaucci nunca mais acertou em suas contratações bombásticas oriundas do exterior. A primeira aposta foi no sul-coreano Ahn Jung-hwan, atacante que rumou para a Úmbria com a ajuda da Daewoo, montadora de carros também da Coreia do Sul – a multinacional ajudaria a pagar seus altos salários colocando seu nome na camisa do time.

Ahn teve muitas dificuldades de se adaptar à realidade europeia e viu o seu mundo cair após o famigerado duelo entre Itália e Coreia do Sul, pela Copa de 2002. O atacante marcou o gol de ouro que eliminou a Nazionale naquela partida cercada de polêmicas, o que deixou o dirigente furioso. Gaucci foi à imprensa dizer que o contrato do jogador seria rescindido, uma vez que considerava o tento como uma afronta ao país que lhe recebia desde 2000. Big Luciano ainda disse que o Perugia jamais contrataria outro asiático. Naturalmente, a explosão do romano virou notícia em todo o planeta e se transformou num incidente diplomático.

Toda a situação ocorria enquanto Ahn ainda disputava o Mundial pela Coreia do Sul (que seria a quarta colocada) e à revelia do técnico Serse Cosmi, que contava com o jogador para a temporada 2002-03. Para Gaucci, isso não fazia diferença. Afinal, estava acostumado a interferir nas escalações do time por entender que, como era ele que investia, as escolhas deveriam ter o seu aval. Obviamente, Ahn não retornou à Itália depois da Copa e rumou ao futebol japonês.

Vários outros negócios feitos pelo Perugia não deram certo. Gaucci contratava jogadores por atacado (cerca de duas centenas passaram pela Úmbria durante sua gestão) e alguns deles, além de Nakata e Ahn, chegavam de mercados periféricos com o objetivo de expandirem a imagem dos biancorossi em seus países. O chinês Ma Mingyu, o iraniano Ali Samereh, o trinitino Silvio Spann e o equatoriano Iván Kaviedes, considerado uma grande revelação na época, foram exemplos disso.

Gaucci posa com Gaddafi, com o qual protagonizou alguns dos momentos mais insólitos da história do futebol italiano (AFP/Getty)

Gaucci, um ególatra

Nenhuma das aquisições feitas por Gaucci no Perugia foi mais esdrúxula e controversa do que a de Al-Saadi Gaddafi, filho do ex-ditador líbio Muammar al-Gaddafi. No verão de 2003, Big Luciano contratou o meio-campista de 30 anos, profissional havia apenas três, somente com um intuito: chamar a atenção, seguindo o lema “falem bem ou falem mal, mas falem de mim”. O cartola sempre quis que tudo girasse em torno de si.

Gaddafi não tinha a menor capacidade de atuar na Serie A. Gaucci, porém, além de contratá-lo mediante a troca por investimentos no clube, ainda pressionava Cosmi para colocá-lo em campo. O filho do ditador acabou jogando apenas 15 minutos de uma partida, contra a Juventus, na antepenúltima rodada do certame de 2003-04. No entanto, o Perugia e, consequentemente, Big Luciano, ficaram nas manchetes durante um ano inteiro.

Alguns meses antes, no inverno de 2003, Gaucci também foi assunto de jornais de todo o mundo. O motivo também foi estrambólico: o cartola queria contratar uma mulher para jogar a Serie A masculina pelo Perugia, já que nenhuma normativa da Fifa impedia tal prática. Antes de a entidade máxima do futebol mundial deliberar sobre o tema e vetar estes movimentos, Big Luciano até tentou se valer de uma argumentação pretensamente feminista para justificar as suas motivações. Contudo, como costuma acontecer a mitômanos, rapidamente foi desmascarado.

Inicialmente, o proprietário do Perugia identificou como alvos as atacantes suecas Victoria Svensson e Hanna Ljungberg, que rejeitaram a ideia – tida como “absurda”. Mostrando maior ambição, passou a cortejar a goleadora alemã Birgit Prinz, uma das melhores da história. A germânica chegou a se encontrar com Gaucci e refletiu, mas acabou refutando a possibilidade de transferência. Embora tenha recebido negativas frequentes, Big Luciano continuou a procurar outras jogadoras para integrar ao elenco biancorosso, mostrando que a sua intenção não era a de fechar com uma atleta em específico, mas com qualquer uma que fosse mulher. Em suma: aparecer, sem oferecer nada em troca para um futebol feminino ansioso por apoio.

Em 1999, ele já havia tentado algo do gênero, ao escolher a ex-jogadora Carolina Morace como técnica da Viterbese, time da Serie C1 do qual também era acionista majoritário. A craque da seleção italiana se tornava a primeira mulher a ocupar o banco de reservas de um clube masculino, mas durou algumas semanas: pelo nível de interferência de Gaucci, que determinava quais atletas deveriam entrar em campo e ainda escanteava os seus auxiliares, Morace decidiu entregar o cargo. A ex-atacante se sentiu desrespeitada, como se ocupasse a posição de fantoche para as vontades de Luciano.

Luciano e a ex-namorada Elisabetta Tulliani presentes num Dérbi de Roma (imago)

Gaucci foi dono da Viterbese entre 1997 e 2000, mas a equipe da região do Lácio não foi a sua única empreitada além-Perugia: de 2000 a 2004, comandou Catania e Sambenedettese nas séries inferiores. Em todos estes clubes, fez evoluir jogadores emprestados pela matriz perugina e conseguiu promoções. Porém, esgotados os modelos, deixou um rastro de destruição. Tal qual na Úmbria.

Gaucci tentava, sem sucesso, adquirir o Napoli ao mesmo tempo em que o Perugia caía para a Serie B – levando o empresário a ter que se desfazer do Catania, que também disputava a categoria. Naquele verão de 2004, o romano começou a lidar com graves problemas financeiros e passou a presidência dos biancorossi para seu filho, Alessandro.

No ano seguinte, no qual deveria comemorar o seu centenário, o Perugia acabou falindo. Gaucci prometeu que sanaria os problemas e mostraria que não era covarde, mas não foi o que aconteceu. Acusado de falência causada por fraude, juntamente aos filhos Alessandro e Riccardo, Big Luciano fugiu para a República Dominicana – país sem acordo de extradição com a Itália – e lá permaneceu como foragido.

Enquanto sua prole cumpriu prisão domiciliar por um tempo, o patriarca entrou em acordo com a justiça italiana e não foi preso. Luciano até retornou à Itália em 2009, mas permaneceu no país. Gaucci construiu uma nova família em Santo Domingo, capital dominicana, e lá habitou até sua morte, causada pelo Mal de Alzheimer, em 1º de fevereiro de 2020. O ex-cartola foi sepultado no país caribenho, como desejava.

Ao mesmo tempo que Luciano tinha uma relação próxima e franca com os jogadores, também era um homem que não tinha medo de ameaçá-los com concentrações longas e punitivas. Montava times competitivos, mas não largava os holofotes e contratações marqueteiras e de qualidade duvidosa. Era um homem de negócios que nem sempre se encontravam no devido escopo legal, e não tinha medo de se engajar em atos que pareciam de verdadeiros mafiosos.

No fim das contas, Gaucci foi um verdadeiro cartola italiano, daqueles que se imagina encontrar apenas nos livros de ficção. Para os torcedores de Perugia, Viterbese, Catania e Sambenedettese, foi sinônimo de problemas, folclore, brigas e momentos inesquecíveis. Ao menos no caso do time da Úmbria, o seu objetivo foi alcançado: o clube ficou conhecido mundialmente, ainda que não pelos motivos mais gloriosos.

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