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Franco Evangelisti e Giuseppe Ciarrapico levaram a corrupção da política para dentro da Roma

Franco Evangelisti e Giuseppe Ciarrapico foram presidentes da Roma com uma diferença de quase 30 anos entre suas gestões. Contudo, a história dos dois não pode ser contada de forma separada. Limone e Ciarra, como eram conhecidos nos bastidores da política, comandaram a Loba entre 1965 e 1968 e 1991 e 1993, respectivamente, ao passo que foram importantes figuras da Democracia Cristã e estiveram envolvidos em grandes escândalos de corrupção.

A presença destas duas figuras, mesmo que em períodos distintos, ratifica de forma bem clara que o futebol não está desconectado do seu contexto social. E, assim como na sociedade, as relações que cercam esse esporte são recheadas de controvérsias, o que não espanta o historiador John Foot. Segundo o autor inglês, especializado em história italiana contemporânea, o futebol da Itália viu sua história se construir de maneira controversa desde o seu início por um simples motivo: faz parte de uma sociedade atormentada por escândalos, suspeitas, acusações e contra-acusações, na qual a lei é opção e não regra.

Tanto Evangelisti quanto Ciarrapico tinham ligações com Giulio Andreotti, que foi primeiro-ministro da Itália em sete governos e também recebeu o título de senador vitalício no país – Franco, inclusive, era considerado seu braço direito. Essa menção é importante pois o romano é considerado uma das figuras políticas mais polêmicas da República Italiana.

Os democristãos

Andreotti foi um dos homens mais poderosos e populares da Itália. Líder do partido Democracia Cristã (DC), colocado ao centro do espectro político italiano – mas com correntes de centro-direita e centro-esquerda –, acumulou bastante prestígio durante seus seis primeiros mandatos, mas viu sua popularidade ruir nos anos 1990, devido à eclosão de escândalos que o tinham como figura central. Divo Giulio, como era conhecido, teve seu nome envolvido em grande parte dos casos mais obscuros do país enquanto teve vida pública ativa, entre as décadas de 1940 e 2010.

A Justiça italiana o acusou de delitos diretamente ligados à máfia e a esquemas de financiamento ilegal de partidos políticos – o Tangentopoli, que deu origem à conhecida operação Mãos Limpas. A confirmação de seu envolvimento com a Cosa Nostra veio somente em 2003, quando, esgotadas as possibilidades de recurso, o tribunal de apelação de Palermo provou suas relações com a organização mafiosa até os anos de 1980, absolvendo-o de fatos posteriores. Apesar disso, o julgamento ocorreu apenas alguns meses após a prescrição dos crimes, o que livrou Divo Giulio da cadeia.

Um ano antes, Andreotti foi condenado a 24 anos de prisão por ter sido considerado como um dos mandantes do assassinato de Mino Pecorelli, em 1979. O jornalista foi morto por dois capangas pouco depois de ter anunciado que publicaria uma reportagem sobre supostas cobranças de comissões ilegais pelo ex-político. Entretanto, o democristão não foi preso pois gozava do privilégio da imunidade parlamentar. Esse caso gerou inúmeras reviravoltas e Il Gobbo acabou absolvido no ano seguinte por decisão da Suprema Corte.

Andreotti morreu em 2013, sem que nunca fosse condenado definitivamente por qualquer crime. Diz-se que os muitos segredos de terceiros, que guardava num arquivo pessoal, eram o seu salvo-conduto e uma das fontes de seu poder. A velha raposa contou com a ajuda de aliados para amealhar tanta influência e um dos seus principais correligionários era Evangelisti, que cunhou até o nome da corrente política que aproximou Ciarrapico a Divo Giulio. A Primavera, como era chamada, possibilitou a expansão do Democracia Cristã por um vasto território.

Evangelisti, de terno, posa no CT da Roma ao lado do técnico Pugliese (ASR Talenti)

Limões e limonadas

Jornalista de prática, mas não de formação, Franco Evangelisti nasceu em Alatri, localizada na região do Lácio, em 1923. Sua vida pública se inicia quando vence as eleições para comandar a prefeitura de sua cidade natal, em 1964. Eleito pela DC, o político não ficou muito tempo no cargo: se tornou deputado e ocupou o posto por um longo período, até 1983. Em seguida, rumou ao Senado, onde permaneceu até 1992, ano anterior à sua morte.

Além de ocupar esses cargos, durante sua vida pública chegou a ser nomeado subsecretário de Turismo e Entretenimento no segundo governo de Mariano Rumor, permanecendo no cargo durante o mandato subsequente e na gestão de Emilio Colombo. Ademais, ele foi subsecretário da Presidência do Conselho em governos liderados por Andreotti, quando exerceu a função de articulador político da gestão. Foi a partir daí que a relação com o ícone da DC se tornou ainda mais íntima. Tão próxima que Evangelisti, conhecido como Limone, ganhou ainda o apelido de Apóstolo.

Um pouco antes disso, Evangelisti ganhou notoriedade regional e nacional através do futebol – e, dizem à boca miúda, por influência direta de Andreotti. Giulio, assim como Franco, era torcedor da Roma e teria influenciado o protegido a se aproximar de diretores do clube. Limone, então, virou conselheiro giallorosso e chegou ao cargo máximo da hierarquia romanista no verão de 1965, dividindo-o com a função de deputado.

A gestão de Evangelisti como presidente não foi longeva: durou apenas três temporadas, sendo encerrada em 1968. Neste triênio, buscou aplicar mudanças para salvar o clube, que estava à beira da falência, como a sua transformação numa sociedade por ações cotadas na bolsa de valores. O resultado não foi imediato, mas contribuiu para que a Roma voltasse a crescer estruturalmente.

Do ponto de vista esportivo, a presidência de Franco é conhecida como a que deu início à “Rometta” – uma Roma frágil em campo, que só colecionava péssimos resultados. Logo de cara, Evangelisti contratou o técnico Oronzo Pugliese, lembrado por sua grande capacidade de estímulo aos jogadores, embora com um currículo bastante modesto. Pugliese foi o único treinador da gestão.

O triênio também foi de vendas. A Roma negociou uma série de bons jogadores para que houvesse dinheiro em caixa: sob a batuta de Evangelisti, deixaram a Cidade Eterna atletas como Giancarlo De Sisti, Karl-Heinz Schnellinger, Antonio Angelillo, Pedro Manfredini, Franco Cudicini, Víctor Benítez e Paolo Barison. A Loba sentiu na pele e terminou a Serie A duas vezes em décimo e uma em oitavo lugar.

Em evento promovido pelo clube giallorosso, Evangelisti posa com o capitão Giacomo Losi (primeiro à esq.) e o técnico Pugliese, ao centro (La Roma)

Após deixar a presidência do time capitolino, em 1968, Evangelisti seguiu nos esportes, mas em outra modalidade: foi dirigente máximo da Federação Italiana de Boxe entre 1969 e 1973. Contudo, era mesmo em política que Limone se interessava de verdade. E em Andreotti, um dos mais poderosos italianos daqueles tempos. O relacionamento entre divindade e apóstolo não estremeceu nem quando seria aconselhável que um ficasse distante do outro para evitar que certas polêmicas respingassem onde não deveriam.

Em 1980, quando era ministro da Marinha Mercante no governo de Francesco Cossiga, Franco deu uma polêmica entrevista ao jornal La Repubblica, na qual admitiu que recebia dinheiro ilegal do empresário Gaetano Caltagirone, ligado à corrente andreottiana e torcedor da Roma. O caso ficou nacionalmente conhecido por causa da frase “A Fra’, che te serve?” (“E você, Franco, do que precisa?”), usualmente proferida por Caltagirone nas ligações que fazia a Evangelisti. A indagação surgia quando o empreiteiro perguntava ao político sobre a quantia de dinheiro de que ele precisava.

O esquema que levou à demissão de Evangelisti envolvia outros membros da empresa de Caltagirone e líderes democristãos. As investigações começaram em setembro de 1977 e revelaram um sistema de financiamento de campanhas organizado entre executivos e políticos ligados sobretudo à DC, que governava a Itália de forma ininterrupta desde a instituição da república, em 1946. As verbas vinham do uso de fundos do instituto de crédito das caixas econômicas italianas, a Italcasse.

O resultado da devassa foi a renúncia do então diretor da Italcasse, o democristão Giuseppe Arcaini, e a prisão dos banqueiros Edoardo Calleri di Sala e Giordano Dell’Amore. Além disso, um mês antes da renúncia de Evangelisti do cargo de ministro, foi expedido um mandado de prisão por falência fraudulenta contra o empresário Caltagirone. Segundo Franco, os pagamentos eram realizados porque Caltagirone era um amigo que não pedia nada em troca. O braço direito de Andreotti não sofreu qualquer consequência penal.

Como apóstolo do líder democristão, Evangelisti era visto como cúmplice de todos os rolos em que Andreotti se meteu – quase todos denunciados a partir apenas do fim da década de 1980. Além dos já citados e de mais alguns esquemas menores de corrupção, ainda podemos citar o suposto envolvimento na formação de diversas estruturas clandestinas de poder: redes de espionagem, envolvendo uma agência de serviço secreto extraoficial; de combate ao comunismo, através da Operação Gladio; e até de governança, através da loja maçônica P2, vista como um estado paralelo dentro da Itália.

Evangelisti, o apóstolo, segue Andreotti, o divo (Il Riformista)

A dupla democristã chegou a ser acusada de participação na morte por envenenamento do banqueiro Michele Sindona, em 1986, em plena prisão de Voghera. Se temia que Sindona, membro da P2 e ligado à Cosa Nostra, delatasse ex-aliados. Como nenhuma prova foi apresentada, o caso foi tratado como suicídio.

No início da década de 1990, o cerco se fechava sobre os principais políticos do país por causa do Maxiprocesso de Palermo, relativo à máfia Cosa Nostra, e do início da operação Mãos Limpas, que inestigava subornos e financiamentos irregulares de partidos – as chamadas tangenti, que deram origem ao nome Tangentopoli. Evangelisti, naquele momento, estava isolado. A sétima gestão de Andreotti foi derrubada e, na sequência, o Indecifrável sofreu a maior derrota de sua vida na eleição indireta para presidente da república: embora Divo Giulio fosse tido como favorito, os eventos que desgastavam sua imagem lhe levaram a receber apenas seis votos dos 1.009 votos possíveis do Parlamento.

Sem cargo e investigado pela justiça, Evangelisti se viu abandonado. Sem formação universitária e vindo do interior, era tido por muitos políticos como um mero brucutu às ordens de Andreotti – simplesmente não era considerado para tratar de assuntos “sérios” e sentia que o seu líder também o via da mesma forma. Em 1992, então, decidiu delatar a velha raposa, num movimento que foi considerado como um inesperado ato de traição.

O apóstolo informou aos procuradores sobre um suposto encontro secreto envolvendo o ícone da DC e o general de polícia Carlo Alberto Dalla Chiesa. Na reunião, o militar teria mostrado a Andreotti um memorial escrito por Aldo Moro, então presidente democristão, durante o período em que foi refém das Brigadas Vermelhas, no quinto governo do Indecifrável – o grupo paramilitar o assassinou em 1978, após o primeiro-ministro informar que não negociaria qualquer resgate. As cartas, segundo Evangelisti, continham revelações bombásticas sobre Divo Giulio.

Poucos meses depois do depoimento, em novembro de 1993, Franco sofreu um acidente vascular cerebral hemorrágico e faleceu no dia 11, aos 70 anos. Evangelisti estava internado no hospital Quisisana, de propriedade de Giuseppe Ciarrapico.

Andreotti visitou o ex-aliado enquanto ele estava em coma. Não permaneceu nem 15 minutos no prédio em que seu apóstolo perecia.

Nos primeiros meses de sua gestão, Ciarrapico bajula Völler e Hässler com um banquete – e uma garrafa da água Fiuggi (Bartoletti)

A ficha corrida de Ciarra

Três dias antes da morte de Evangelisti, a Roma tinha um novo presidente: após uma tratativa que durara alguns meses, Franco Sensi adquirira as quotas acionárias de Ciarrapico. Ciarra não era mais o mandatário dao clube desde maio, quando passou a enfrentar problemas judiciais e detenções sucessivas. Investigado pela justiça italiana por crimes contra o sistema financeiro e pela operação Mãos Limpas por financiamento irregular de partidos políticos e associação criminosa, teve de se licenciar do cargo e ceder a direção a Ciro Di Martino.

Corrupção, fraude, lavagem de dinheiro, exploração do trabalho infantil, simpatia pelo fascismo, antissemitismo e homofobia. Essas palavras-chave nada lisonjeiras podem ser utilizadas para traçar acontecimentos marcantes na trajetória de Ciarrapico. Como é possível perceber, o romano se envolveu em muito mais confusões e controvérsias do que Evangelisti.

Giuseppe nasceu em 1934 e foi criado em Roma, mas sua família vinha de uma pequena cidade chamada Bomba, pertencente à província de Chieti, nos Abruzos. Lá, seu avô construíra a riqueza dos Ciarrapico através de uma fábrica de cimento. Em sua juventude, já era simpatizante fascista e isso fez com o que pudesse ter, desde cedo, um contato maior com a política – especialmente o lado mais reacionário dela.

Sabendo do uso massivo que o movimento populista de extrema direita fazia dos meios de comunicação, investiu na abertura e na aquisição de gráficas, editoras e jornais em cidades do interior do Lácio e no Molise, para expandir a sua influência e, ao mesmo tempo, abrir as portas para políticos. O empresário se aproximou, ao mesmo tempo, da corrente andreottiana da DC – que estava no poder e, de Roma, lançava os seus tentáculos para o restante do país – e de Giorgio Almirante, líder do Movimento Social Italiano, um partido de declarada inspiração fascista.

Inegavelmente, Ciarrapico era mais ligado ao MSI do que à DC, do ponto de vista ideológico. Não à toa, fez uso de seu parque gráfico instalado na cidade de Cassino, no sul do Lácio, para imprimir cartazes do partido neofascista e o próprio jornal oficial da sigla, que circulava por todo o país.

Além disso, o empresário mobilizou sua máquina editorial num esforço de publicação de livros e fascículos sobre a história do fascismo e de suas forças armadas, em particular acerca do período da República Social Italiana, estado fantoche do Terceiro Reich que foi fundado após os alemães libertarem Benito Mussolini da prisão e que, por 19 meses, perdurou no norte da Itália. Ciarrapico também adquiriu os catálogos das editoras conservadoras Il Borghese e Volpe, além de ter reimprimido um periódico destinado à Wehrmacht nazista – em colaboração com intelectuais de direita, como o jornalista e agente secreto Guido Giannettini, ligado ao atentado da Piazza Fontana, em Milão.

Em 1992, o presidente de extrema direita levou Boskov para Roma (Bartoletti)

Na década de 1980, Ciarrapico adquiriu as termas de Fiuggi e ampliou a sua fortuna, ganhando até o apelido de “Rei das águas minerais”. Vivendo o seu ponto alto como empresário, também estendeu os seus negócios a outros ramos, como o hospitalar – até hoje, a família controla a clínica Villa Stuart, um centro de referência para exames médicos e tratamento de esportistas. Pouco depois, em 1991, ascendeu à presidência da Roma.

Ser presidente da Roma era sinônimo de prestígio político. Três dos antecessores de Ciarra ocuparam cargos eletivos – Evangelisti, Gaetano Anzalone e Dino Viola – e Sensi, seu sucessor, também. Todos pela Democracia Cristã. O andreottiano Viola faleceu em janeiro de 1991, em decorrência de um tumor intestinal, e Flora, sua esposa, se encarregou de passar o bastão. Ciarrapico declarava abertamente que não entendia de futebol, mas se apresentou como interessado na aquisição das cotas que lhe dariam o controle acionário do clube.

Numa entrevista concedida em 1993 ao jornal L’Unità, logo após a primeira prisão de Ciarrapico, Flora Viola declarou que ela e parte de seus familiares estavam relutantes quanto a vender a Roma para uma figura como Ciarra, tão envolvida em polêmicas. Contudo, facções de torcedores romanistas se mostravam favoráveis ao magnata e estavam dispostas a deixar de lado as questões ideológicas que pairavam sobre o empresário se ele mantivesse o alto nível de investimentos que marcara a vitoriosa gestão anterior – que deu aos giallorossi cinco títulos, incluindo um scudetto, e uma final de Copa dos Campeões.

Dona Flora também contou que Antonio Matarrese, presidente da Federação Italiana de Futebol (FIGC), insistiu bastante para que o negócio fosse fechado em favor de Ciarrapico: segundo o manda chuva da FIGC, o “Rei das águas minerais” era a solução ideal. Matarrese, além de dirigente de futebol, ocupava um assento na Câmara dos Deputados. Era, também, democristão e andreottiano.

Ciarrapico acabaria se tornando presidente da Roma no final de maio, a poucos dias da final da Coppa Italia, e logo comemorou um título: o clube da Cidade Eterna bateu a Sampdoria na decisão. Em sua primeira temporada como executivo, Ciarra fez apenas contratações pontuais e adquiriu o alemão Thomas Hässler para substituir Bruno Conti, que se aposentava. Sob o comando de Ottavio Bianchi, os giallorossi ficaram na quinta posição da Serie A, foram vice-campeões da Supercopa Italiana e pararam nas quartas de final das copas.

Mihajlovic foi atraído por Ciarrapico para sua barca furada (Bartoletti)

Para 1992-93, Ciarrapico planejava um mercado mais ambicioso, de modo a fazer a Roma ser ainda mais competitiva em todas as frentes. Isso permitiria ao empresário transformar as glórias obtidas pela equipe em capital político-eleitoral e, em algum tempo, testar a sua popularidade nas urnas. Porém, tudo passou a dar errado para Ciarra e seus aliados naqueles anos. Os maiores partidos do país passaram a sofrer as consequências pela manutenção, por décadas, de um sistema corrupto e Andreotti viu seu poder se esvair. O magnata, conhecido como “alma obscura” de Divo Giulio – em referência a seu apreço pelo fascismo e pelos camisas negras –, também se viu num labirinto. Afinal, era um dos operadores financeiros e, extraoficialmente, articuladores políticos da corrente Primavera.

Desse modo, o mercado de 1992-93 feito pela Roma servia para Ciarrapico tentar dar uma resposta aos acontecimentos que lhe envolviam nos tribunais. A Loba trocou Bianchi por Vujadin Boskov, vencedor pela Samp, e teve de encontrar um substituto à altura para Rudi Völler, que rumara ao Olympique de Marseille. Naquele mercado, o presidente decidiu fazer maiores investimentos e fechou com três reforços importantes: o zagueiro Silvano Benedetti, o versátil Sinisa Mihajlovic (que atuava como volante, lateral-esquerdo e zagueiro) e o tarimbado atacante Claudio Caniggia.

Não funcionou. Com um proprietário sob fogo cruzado, o time não rendia bem na Serie A e não passava do meio da tabela: em meados de março, estava na 10ª posição. Por outro lado, era semifinalista da Coppa Italia e estava nas quartas da Copa Uefa, com vantagem de 1 a 0 sobre o Borussia Dortmund no jogo de ida. A eliminação para os aurinegros, em 18 de março, coincidiu com o estopim da crise: naquele mesmo dia, Ciarrapico recebeu ordem de prisão pela gestão fraudulenta da Italsanità, empresa pertencente à sua holding. Na mesma operação, foi detido também Mauro Leone, vice-presidente romanista, filho do ex-primeiro-ministro e ex-presidente italiano Giovanni Leone (DC).

A prisão gerou enorme apreensão dos torcedores giallorossi, que já sabiam que o clube tinha débitos de mais de 70 bilhões de liras e que Ciarrapico enfrentava dificuldades com a sua empresa de água mineral em Fiuggi. A Roma vivia situação difícil e caminhava para a falência, já que o seu proprietário estava preso e via seu império ruir. A tensão se transformou em revolta no dia 21 de março, quando houve quebra-quebra no entorno do Olímpico antes do duelo contra o Napoli.

Encarcerado, Ciarrapico não viu o melhor momento de sua gestão: a estreia de Francesco Totti como profissional, aos 16 anos, num jogo contra o Brescia, no fim de março. O presidente chegou a ser solto em maio, mas voltou à cadeia alguns dias depois, numa diligência da Operação Mãos Limpas: foi transferido para Milão sob acusação de financiamento ilegal de partidos políticos. A Roma, por sua vez, terminaria a temporada na 10ª posição da Serie A e com o vice-campeonato da Coppa Italia. A agremiação reencontraria a paz e os títulos nas temporadas seguintes, com Sensi.

Andreotti e Ciarrapico, sua “alma obscura” (Umberto Pizzi)

Longe do futebol e às voltas com a justiça, Ciarra ainda ficaria em evidência no cenário italiano por muitos anos. Sua extensa lista de crimes cometidos durante sua vida político-empresarial lhe renderam quatro anos de cadeia pela falência do Banco Ambrosiano, em 1996, e, em 2000, a condenação definitiva pela fraude da Italsanità – devido à sua idade, prestou apenas serviços sociais.

Na década seguinte, teve bens apreendidos e foi condenado, juntamente a Tullio, seu filho, por emissão de notas fiscais frias, sonegação de impostos e fraude para a obtenção de benefícios fiscais. O magnata chegou a criar 90 empresas no ramo editorial (muitas delas, de fachada) para lucrar 20 milhões de euros com esses expedientes.

Nessa mesma época, Ciarrapico ainda foi indiciado por um delito “menor”: utilizar seus jornais para perseguir uma repórter de uma rede de televisão concorrente, casada com um político adversário. Em outras situações, o empresário não chegou a sentar no banco dos réus, mas gerou revolta tanto por repugnantes comentários antissemistas e homofóbicos quanto pela participação no funeral de Massimo Morsello, fundador do Forza Nuova, um nanopartido neofascista. Durante o velório, ocorrido em 2001, proliferavam símbolos nazifascistas, como a cruz celta, e a famosa saudação romana, com o braço em riste.

Mesmo tão presente nas páginas policiais e nos tribunais, Ciarrapico decidiu se dedicar à política. E os eleitores do Lácio também acharam essa uma boa ideia: em 2008, foi eleito senador pelo partido O Povo da Liberdade, que nascera a partir da dissolução do MSI e abrigara alguns nomes mais moderados do que no passado. Um deles era Silvio Berlusconi, que era amigo de Ciarra, já havia sido beneficiado anteriormente em algumas de suas negociatas e que, daquela vez, pediu que se candidatasse. O apoio de Berlusconi a um fascista declarado gerou antipatia, mas não afetou a sua campanha: o Cavaliere saiu vitorioso naquelas eleições e se tornou primeiro-ministro pela quarta vez.

Em 2013, Ciarrapico não se reelegeu e, dois anos depois, em virtude das condenações na justiça, o Senado suspendeu a aposentadoria vitalícia a que tinha direito por ter sido parlamentar. Em 2019, o ex-presidente da Roma faleceu, aos 85 anos, no hospital Quisisana – onde Evengelisti, seu ex-colega de corrente andreottiana, também morrera.

No fim das contas, Franco Evangelisti e Giuseppe Ciarrapico representaram a complexidade das relações que o futebol possui com a sociedade, principalmente em seu vínculo com a política e as formas de exercício do poder. As controvérsias acumuladas pelos ex-presidentes da Roma – e não somente na agremiação, mas em suas trajetórias públicas – expuseram o que o historiador John Foot afirmou em Calcio: A History of Italian Football, sua obra-prima sobre o futebol italiano: os interesses em torno de um esporte cada vez mais lucrativo e provedor de popularidade fazem com que seguir a lei não seja imprescindível, mas opcional.

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