Não é muito comum que esportistas reais sejam citados nominalmente no cinema “de vanguarda”. Se em produções de Hollywood até há espaço considerável para referências a atletas dos esportes mais populares dos Estados Unidos (basquete, beisebol e futebol americano, por exemplo), o mesmo não ocorre nas cinematografias europeia e sul-americana. Nestes continentes, o futebol reina absoluto, mas as raras menções a futebolistas nas películas locais são, geralmente, reservadas àqueles que marcaram época por algum motivo. O atacante Pedro Manfredini foi um deles: idolatrado pelos torcedores de Racing e Roma, foi personagem de clássicos da sétima arte na Argentina e na Itália.
Neto de italianos provenientes de Cremona, na Lombardia, e Bisceglie, da Apúlia, Manfredini nasceu na província de Mendoza, a cerca de 150 quilômetros da fronteira com o Chile. Pedro começou a jogar futebol no pequeno Deportivo Maipú, de sua cidade, e por lá ficaria até perto de completar 22 anos. Foi então que um campeão mundial pela Itália mudou o seu destino.
Argentino de nascimento, o ex-atacante Raimundo Orsi fez carreira na Juventus nos anos 1930 e defendeu tanto a albiceleste quanto a Squadra Azzurra, com a qual chegou ao topo do mundo, em 1934. Após se aposentar, Mumo voltou a seu país e começou a treinar times de pequena expressão. Em Maipú, Orsi conheceu Manfredini e o indicou ao Racing – curiosamente, o craque nascido em Avellaneda havia sido ídolo do Independiente. Comprado a preço de banana, Pedro rumou à capital e, em menos de dois anos, se tornou um dos maiores jogadores da história de La Academia.
Bastaram apenas 39 jogos para que Manfredini marcasse época no Racing – leia mais sobre isso no parceiro Futebol Portenho. Nessas aparições, distribuídas por 18 meses, o centroavante marcou incríveis 28 gols: é a maior média de tentos da era profissional racinguista – apenas no amadorismo houve quem o superasse. Dois desses gols foram marcados num 4 a 1 sobre o rival Independiente, no clássico de Avellaneda, e só aumentaram a idolatria em torno do camisa 9.
Uma idolatria tão grande que chegou às telonas através de um de seus maiores fãs – que é fictício. No argentino “O Segredo dos Seus Olhos”, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro de 2010, o personagem Isidoro Gómez escreve para a mãe: “Fique tranquila, velha. Nisso, sou como Manfredini, e não como Bavastro”. A metáfora, desvendada num bar pelo excêntrico policial Pablo Sandoval e por velhos hinchas blanquiazules, é explicada a seguir: Gómez se gaba de ser como Pedro, que chegou a Avellaneda como um qualquer e se tornou “o cara”, e não um fracassado como o ponta Julio Bavastro. A descoberta não só soluciona um crime como é o mote para um dos planos-sequência mais vigorosos do cinema contemporâneo, que se passa num duelo entre Huracán e Racing, nos anos 1970.
Manfredini foi o artilheiro racinguista no título de 1958, com 19 gols, e ficou entre os cinco maiores goleadores do país na temporada. A grande forma só não o levou à Copa do Mundo daquele ano porque uma lesão no menisco impediu sua convocação pela Argentina. Em janeiro de 1959, porém, o atacante começou a Copa América como titular e logo marcou uma doppietta contra o Chile. No entanto, Pedro não teve sorte na seleção: se machucou no terceiro jogo e nunca mais voltou defendê-la. Os portenhos foram campeões em cima do Brasil e Manfredini foi para a Roma, mas isso lhe custou a carreira como nove albiceleste: por determinação da AFA, até os anos 1970 atletas que atuavam no exterior não eram convocados.
A Roma seria a seleção de Pedro Manfredini e o seu impacto na Cidade Eterna seria imediato. Anunciado como reforço no final de abril de 1959, o atacante só pode entrar em campo na temporada seguinte. Quando o fez, foi arrebatador: o argentino marcou em sua estreia, com apenas 16 minutos em campo, num jogo da Coppa Italia contra o Cagliari, em setembro. No debute pela Serie A, na quarta rodada, também foi “apressadinho” e assinou o seu primeiro em Florença, diante da Fiorentina, aos quatro minutos – seu time, porém, perdeu por 3 a 1. Na sequência, teria responsabilidades num jogo ainda mais pesado: o dérbi contra a Lazio. O camisa 9 nem sentiu a pressão e estufou as redes com menos de dois minutos de bola rolando. Perto do intervalo, ampliou, e foi o grande nome do triunfo romanista por 3 a 0.
Treinada por Alfredo Foni, a equipe da Roma em 1959-60 tinha um ataque poderoso. Além de Manfredini, o brasileiro Dino da Costa, o uruguaio Alcides Ghiggia e o sueco Arne Selmosson eram as estrelas de uma companhia modesta. O elenco era desequilibrado e contava com poucos outros nomes de relevo – o goleiro Fabio Cudicini, o defensor Giacomo Losi, o volante Mario David e os meias Egidio Guarnacci, Paolo Pestrin e Alberto Orlando –, o que acarretava em um desempenho irregular, potencializado pelo fato de que o grupo era dado à dolce vita, ao clima boêmio da Itália dos anos 1960. Os giallorossi ficaram apenas com a nona posição e se classificaram para a Copa das Feiras por convite dos organizadores. Manfredini, no entanto, era geralmente assistido por Selmosson e se sagrou artilheiro da equipe, com 17 gols na campanha – 16 deles no Campeonato Italiano.
Manfredini já era querido pela torcida, mas caiu definitivamente em suas graças em 1960-61, naquela que foi a sua temporada mais gloriosa pelos giallorossi. Carinhosamente chamado de Piedone (“pezão”) pelos tifosi, o argentino chegou a anotar 15 gols nas primeiras nove rodadas daquela Serie A. O feito impressionante foi abrilhantado pelo fato de que Manfredini começou o campeonato anotando uma tripletta contra o Bari e repetindo a dose na rodada seguinte, contra a Udinese. Na sétima rodada, mais três gols – estes, num 4 a 0 sobre a arquirrival Lazio –, e bis na oitava, em nova vitória contra o Padova. Em toda a história, nenhum outro jogador romanista conseguiu hat-tricks em duas partidas consecutivas. Piedone, o único, obteve logo dois.
A Roma de Foni, reforçada pelos oriundi sul-americanos Juan Alberto Schiaffino e Francisco Loiácono, chegou a liderar a Serie A nas primeiras rodadas, mas depois teve uma natural queda de rendimento e acabou a campanha numa boa quinta posição. Na Copa das Feiras, os giallorossi puderam sorrir mais, graças a Manfredini. Se o título do torneio que deu origem à Copa Uefa e à Liga Europa foi conquistado, muito se deve ao argentino, que anotou 12 gols (número recorde na competição), brilhando mais ainda na parte final.

As câmeras fizeram parte da vida do argentino, que até foi citado em filmes: acima, Manfredini abraça os companheiros Losi e Pestrin (Arquivo/AS Roma)
Implacável, Manfredini deixou dois nas quartas de final contra o Köln e mais seis diante do Hibernian nas semifinais, que acabaram disputadas em três jogos. Como houve empate nos dois primeiros (2 a 2 e 3 a 3), o regulamento previa um jogo de desempate, no qual Piedone lavou a alma: anotou quatro no 6 a 0 sobre os escoceses. Na ida das finais, uma doppietta contra o Birmingham, na Inglaterra, encaminhou a conquista italiana. Pedro concluiu a campanha de 1960-61 com 42 partidas e 34 gols marcados – o dobro que conseguira em seu ano de estreia.
Àquela altura, com apenas 26 anos, Manfredini já havia ultrapassado um ícone romanista, o atacante Rodolfo Volk, como o jogador que precisou de menos partidas para marcar 50 gols pelo clube. Piedone alcançou a marca com 67 jogos, dois a menos que o bomber dos anos 1920 e 1930. Para se ter uma ideia, Edin Dzeko, o terceiro no quesito, teve de entrar em campo 92 vezes para igualar o número. Outros goleadores históricos da Roma aparecem bem atrás – como Abel Balbo (96), Dino da Costa (98), Vincenzo Montella (100), Amedeo Amadei (103), Carlo Galli (106) e Roberto Pruzzo (107).
A campanha de 1961-62 acabou sendo de entressafra para a equipe da capital. Além do técnico Foni, deixaram o Olímpico jogadores importantes, como Ghiggia e Selmosson. O argentino Luis Carniglia assumiu o comando da Maggica, mas não conseguiu fazer o time render o esperado. Com o ocaso de Schiaffino, Giancarlo De Sisti começava a se afirmar no meio-campo, mas Antonio Angelillo não teve entrosamento automático com os compatriotas Loiácono e Manfredini. O resultado foi uma queda no número de gols da equipe e de Piedone – o bomber anotou apenas 14.
Apesar do futebol inferior às expectativas, Carniglia foi mantido no cargo, mas não resistiu a um início negativo na Serie A: após derrota para o Vicenza, na sétima rodada, Foni retornou à Roma. Com o antigo comandante, Manfredini voltou a encontrar o caminho do gol com mais facilidade e, numa dupla infernal com Angelillo, conduziu a equipe a uma temporada de bons resultados, ainda que sem títulos: quinta posição na Serie A, eliminação nas semifinais da Copa das Feiras e terceiro lugar na Copa dos Alpes.
O Pé-grande foi o grande nome giallorosso em 1962-63, com 26 gols marcados. Manfredini garantiu, naquela temporada, as artilharias do Italiano (19) e da antecessora da Liga Europa (6). Se na Serie A, o argentino dividiu a honra com o dinamarquês Harald Nielsen, do Bologna, na Copa das Feiras a primazia foi compartilhada com o brasileiro Waldo, que brilhou no campeão Valencia. O atacante nascido em São Gonçalo, vale lembrar, é de longe o maior artilheiro da história do Fluminense, com 319 bolas nas redes entre 1954 e 1961.
Enquanto vivia o auge da carreira, Manfredini voltou a aparecer num filme. Em 1963, o atacante é citado numa das partes do filme de comédia cult “I Mostri” (Os Monstros), dirigido por Dino Risi e produzido por Mario Cecchi Gori – que, anos depois, seria presidente da Fiorentina. No episódio “Che vitaccia!” (Que vidinha!), o protagonista vivido por Vittorio Gassman se desespera por não ter dinheiro para cuidar de sua numerosa família, mas ao mesmo tempo não se furta a gastar suas economias para ver a Roma no estádio, numa vitória por 5 a 1 contra o Catania. Numa das cenas, ele grita fervorosamente “Vai, Piedone, vai!”. Neste jogo, Pedro marcou uma doppietta e deu uma assistência.
Depois do lançamento do filme, contudo, os pés de Manfredini voltaram a pisar poucas vezes nos gramados italianos. O atacante sofreu uma séria lesão em 1963-64 e perdeu grande parte da temporada, concluída com 22 jogos e nove gols. Pelo menos, Pedro pode comemorar seu segundo título com a equipe: a Coppa Italia, vencida às custas do Torino. O ano seguinte acabou sendo o derradeiro do goleador em Roma. Piedone foi reintegrado ao time em dezembro, depois de passar pelos momentos mais duros da recuperação, mas acabou sendo muito pouco utilizado por Juan Carlos Lorenzo. O técnico argentino, que já não era benquisto pela torcida graças a seu passado laziale, utilizou o ídolo em apenas 15 ocasiões – com isso, Manfredini marcou apenas quatro gols.
Em 1965, o adeus foi consumado. Manfredini encerrou sua passagem pela Roma com 164 partidas e 104 gols pelo clube – 77 na Serie A. Estes números o colocam na quinta posição da lista de maiores artilheiros dos giallorossi, atrás de Francesco Totti e os já citados Pruzzo, Amadei e Volk. Piedone é, ainda, um dos sete únicos jogadores que encabeçaram a artilharia do Italiano enquanto defendiam a Roma. O único atleta aurirrubro que supera Manfredini em número de partidas com dois ou mais gols marcados é Totti: são 56 do italiano contra 29 do argentino. No entanto, Pedro é o líder em termos de tripletta, já que garantiu três tentos em nove oportunidades.
Ao deixar a Roma, Manfredini assinou com a Inter, que tinha Helenio Herrera no comando. Técnicos argentinos, porém, nunca lhe trouxeram bons augúrios e a história não seria muito diferente em Milão. Piedone nem mesmo teve a chance de vestir a camisa da Grande Inter dos anos 1960, uma vez que foi subitamente repassado ao Brescia. O atacante não conseguiu sequência pelo clube lombardo, que teve uma campanha regular na elite, e em 1966 passou ao Venezia, recém-promovido à Serie A.
Contratado juntamente ao peruano Víctor Benítez, Manfredini agregaria experiência e qualidade à equipe veneziana. Contudo, ambos estavam longe da melhor fase, sobretudo do ponto de vista físico, e o naufrágio ocorreu sem choro nem vela: com apenas 17 pontos, o Venezia foi rebaixado como penúltimo colocado, ganhando do Lecco, o lanterna, apenas nos critérios de desempate. Piedone ainda disputou a segundona pelos lagunari, e em 1969, se aposentou no futebol chileno, atuando no pequeno Deportes La Serena.

Imperioso, focado, implacável: Manfredini tinha fome de gol e ganhou dois títulos vestindo giallorosso (Arquivo/AS Roma)
Manfredini não se envolveu mais com futebol depois do encerramento de sua carreira. Seu caminho já estava consolidado e sua média de 0,57 gol por partida (que poderia ser ainda melhor, não fossem os últimos decadentes anos) fala por si só. É superior, por exemplo, às de craques de seu tempo, como José Altafini (0,47) e Omar Sívori (0,51), e às de goleadores que o sucederam, como Luigi Riva (0,54), Roberto Boninsegna (0,45), Michel Platini (0,52), Diego Maradona (0,53), Gabriel Batistuta (0,56), Roberto Baggio (0,45), Giuseppe Signori (0,55) e Andriy Shevchenko (0,49).
Como havia feito sua vida em Roma, Pedro Manfredini retornou à capital italiana para tocar a sua rotina como ex-jogador. O argentino abriu um bar chamado Piedone em Piazzale Clodio, nas redondezas do bairro Flaminio – reduto de romanistas e localidade que abriga o estádio homônimo, maior da cidade até a construção do Olímpico.
Com o passar dos anos, Manfredini foi se afastando da bagunça urbanística de Roma: primeiro levou o bar a Spinaceto, nos arredores da metrópole, e depois foi morar no balneário de Óstia. Piedone dirigiu uma escolinha de futebol, mas voltou à cena mesmo em 2016, quando escreveu o posfácio de um livro inspirado na vida de Garrincha: “Il Passerotto di Magé” (“O pardalzinho de Magé”, em tradução livre), de Antonio Orlando. Com seu pequeno conto, saiu vitorioso no 45º concurso literário do CONI, o Comitê Olímpico Italiano. Foi a sua última glória.
Pedro Manfredini nos deixou em janeiro de 2019, de causa não divulgada. O ex-atacante, que tinha 83 anos, faleceu no hospital Giovan Battista Grassi, em Óstia. A cerimônia de despedida foi discreta, mas o craque foi homenageado pela Roma e por seus torcedores mais antigos e fervorosos.
Pedro Waldemar Manfredini
Nascimento: 7 de setembro de 1935, em Maipú, Argentina
Morte: 21 de janeiro de 2019, em Óstia, Itália
Posição: atacante
Clubes: Deportivo Maipú (1955-57), Racing (1957-59), Roma (1959-65), Inter (1965), Brescia (1965-66), Venezia (1966-68) e Deportes La Serena (1969)
Títulos: Campeonato Argentino (1958), Copa América (1959), Copa das Feiras (1961) e Coppa Italia (1964)
Seleção argentina: 3 jogos e 2 gols