Na Itália, durante todo o período de hegemonia da Juventus, a única agremiação a conquistar nove títulos da Serie A de forma consecutiva, só um jogador participou de todas as campanhas por pelo menos uma partida: Giorgio Chiellini. Pelo que fez em campo, o zagueiro se tornaria uma lenda bianconera. Para além disso, foi extremamente vitorioso e liderou, seja literalmente ou tecnicamente, uma sequência de scudetti que dificilmente será superada em um futuro próximo. E, claro, foi o capitão da Nazionale bicampeã da Euro, em 2021.
Chiellini nasceu em 1984 na cidade de Pisa, onde seu pai, médico, trabalhava, mas cresceu na vizinha Livorno, localidade em que se encontram as raízes de sua família. Com apenas cinco anos de idade, o pequeno Giorgio deu seus primeiros passos no Livorno 9, um clube amador do bairro de Ardenza, no qual vivia. Não demorou para ele passar ao Livorno mais conhecido: lá chegou aos 12 e seguiu vestindo amaranto até se formar como jogador profissional de futebol pelo time tradicional da Toscana. Sua estreia foi em 2000, na Serie C1, a terceira divisão italiana. Curiosamente, Claudio, seu irmão gêmeo, também seguiria carreira no esporte, mas na condição de seu empresário.
Giorgio foi formado como meio-campista, mas passou a atuar como lateral-esquerdo ainda nas categorias de base. E foi assim que ele chamou atenção de Fabio Capello, então, treinador da Roma. Em 2002, a agremiação da capital adquiriu a copropriedade do defensor italiano, que só vestiu a camisa giallorossa na Copa Viareggio, uma das principais competições de base da Itália – curiosamente, Chiello também chegara a usar a malha do Milan alguns anos antes, num período de testes na categoria Allievi, correspondente ao sub-17.
A ascensão de Chiellini era evidente. O garoto foi figura carimbada de quase todas as seleções de base da Itália, da sub-15 à sub-21, e só não passou pela sub-20 porque queimou uma etapa. Com a sub-19, chegou a faturar o Campeonato Europeu da categoria, em 2003.
Após o título, Giorgione se tornou titular do Livorno, que disputava a Serie B desde 2002, quando conquistou a promoção da terceirona. Se alternando entre ala, lateral-esquerdo e zagueiro, o toscano atuou em 41 dos 46 jogos dos labronici e, com quatro gols marcados, foi fundamental para que o time treinado por Walter Mazzarri e comandado pelos goleadores Cristiano Lucarelli e Igor Protti voltasse à elite após uma ausência de 55 anos.
Ao fim da gloriosa temporada, o presidente do Livorno, Aldo Spinelli, e seu homólogo da Roma, Franco Sensi, entraram num acordo verbal para que Chiello, ainda em copropriedade, finalmente fosse para a Cidade Eterna. No entanto, os capitolinos passavam por dificuldades financeiras e foram adiando o fechamento do negócio, o que fez com que a Juventus decidisse atravessar as tratativas. No fim das contas, os bianconeri prometeram aos toscanos que iriam adquirir o defensor se o clube amaranto recomprasse a totalidade do seu passe. E foi o que ocorreu.
Entretanto, Chiellini não vestiu a camisa da Juventus em 2004. Logo que comprou o defensor, a equipe de Turim vendeu metade do seu passe, em copropriedade, à Fiorentina, que voltara à elite após comer o pão que o diabo amassou nas divisões inferiores, devido ao processo de falência que se desenrolou em 2002. O motivo era simples: permitir que Giorgio amadurecesse e tivesse tempo de jogo em Florença, capital da Toscana.
Curiosamente, a estreia do defensor na Serie A foi justamente contra a Roma, em uma derrota por 1 a 0 da Fiorentina, com gol de Vincenzo Montella. O campeonato de Chiellini, que atuou exclusivamente pelo flanco esquerdo da defesa violeta, foi excelente. Ele ajudou sua equipe a escapar do rebaixamento, chegou a marcar contra a própria Juventus e teve sua primeira convocação para a seleção italiana, treinada por Marcello Lippi, em novembro, em amistoso contra a Finlândia. Antes disso, já tinha conquistado uma medalha de bronze na Olimpíada de Atenas.
Esse foi mais ou menos um prólogo da carreira de Giorgione até vestir definitivamente a camisa da Velha Senhora. De 2005 até 2022, não mudou mais de ares e se consagrou como um dos melhores zagueiros de sua geração – mas não de imediato.
Finalmente reunido com Capello, Chiello atuou majoritariamente como lateral-esquerdo em seus primeiros jogos no novo clube. Apesar de reserva da equipe, chegou a ser campeão italiano, porém a Juventus teve o título revogado devido à ação de seus dirigentes no Calciopoli e terminou rebaixada para a segunda divisão, como consequência de todo o processo. A punição acabou por abrir espaços no elenco e isso fez bem à carreira do defensor.
Com a saída de medalhões consagrados, como Fabio Cannavaro e Gianluca Zambrotta, a aposentadoria de Gianluca Pessotto e a chegada do novo treinador Didier Deschamps, Chiello ganhou mais minutos e se tornou titular, alternando entre a lateral e a zaga. Em 2006, marcou seu primeiro gol pelo time. Em um empate caótico por 3 a 3 com Napoli, na terceira eliminatória da Coppa Italia, Giorgio inaugurou o placar: cruzamento na segunda trave e cabeçada indefensável, como um foguete. Nos pênaltis, converteu sua cobrança, mas a Juve terminou eliminada. Já a campanha na Serie B foi tranquila, com o acesso sendo garantido numa partida em que o defensor anotou duas vezes, ambas de cabeça – vitória por 5 a 1 fora de casa contra o Arezzo.
Os dois primeiros anos de volta à Serie A foram sido muito bons, considerando o contexto: a equipe, então treinada por Claudio Ranieri, obteve a terceira e a segunda colocação, respectivamente, e Chiellini foi um dos pilares dessa reconstrução, atuando mais frequentemente no centro da zaga bianconera. Só que a trajetória ascendente de uma Juve que parecia começar a se recuperar do baque do rebaixamento foi brecada por uma sequência de temporadas de vacas magras. Até 2011, a Velha Senhora encontrou dificuldades de se estabelecer com um técnico confiável após a saída de Ranieri e, após um vexame europeu e duas campanhas pífias no Italiano, concluídas com o sétimo lugar, tudo mudou com a chegada de Antonio Conte ao comando.
Nesse meio tempo, Chiellini não arrefeceu. Travou duros embates com Zlatan Ibrahimovic, então na Inter, foi reconhecido como um dos mais sólidos defensores da Serie A e se tornou titular da seleção italiana. Em 2008, disputou a Eurocopa sob o comando de Roberto Donadoni e, em 2009 e 2010, Lippi o convocou para as campanhas da Squadra Azzurra na Copa das Confederações e na Copa do Mundo. Giorgione, que por pouco não participara da trajetória do tetra da Nazionale, finalmente garantia seu espaço na equipe.
Na Juventus, Giorgione atingiria o seu auge a partir de 2011, começando pela “era Conte”. Sob o comando do treinador, Chiellini, Leonardo Bonucci, Andrea Barzagli e Gianluigi Buffon passaram a ser o pilar de sustentação e de segurança de uma equipe lendária, que recolocou a agremiação nos trilhos após os escombros deixados pelo terremoto Calciopoli. Na primeira temporada do trio BBC, o sólido sistema defensivo foi responsável pela volta dos títulos a Turim: um scudetto vencido de forma invicta. E com uma defesa que foi vazada apenas 20 vezes em todo o campeonato.
Por seis anos, a resposta para a pergunta “qual é a melhor defesa da Itália?” foi praticamente unânime – e, em algumas oportunidades, a mesma assertiva valeu para o cenário europeu. Sob a batuta de Conte, foram três edições da Serie A vencidas de forma consecutiva e com autoridade, inclusive com recorde de pontos: 102 em 2013-14. Giorgio foi eleito para a equipe da temporada com Antonio apenas em 2013, mas o time sempre garantiu pelo menos um zagueiro nessas seleções. O maior problema no período foram as competições europeias.
Primeiro, uma eliminação na Champions League para o Bayern de Munique em que os alemães dominaram por completo. Depois, duas frustrações tremendas na mesma temporada: queda na fase de grupos e, na Liga Europa, a oportunidade de decidir a competição no Juventus Stadium caindo por terra nas semifinais, com uma eliminação em casa, para o Benfica.
“Não se pode comer com 10 euros em um restaurante no qual os pratos custam 100 euros”, disse Conte. O treinador não estava satisfeito com as movimentações da Juve no mercado de transferências e justificou seu insucesso tanto na Champions League quanto na Liga Europa pelas ferramentas que tinha em mãos. Foi hora de separar os caminhos.
Massimiliano Allegri chegou ao Piemonte sob olhares de desconfiança da torcida e quase chocou o mundo do futebol em 2015. O novo comandante não ficou preso a linha com o trio BBC, até porque Barzagli teria uma lesão grave no pé, o que o afastaria de boa parte da temporada. Então, Chiellini e Bonucci na zaga, além de Patrice Evra e Stephan Lichtsteiner nas laterais, ajudaram a levar a equipe a uma final de Champions League depois de 12 anos.
Era a chance de a Velha Senhora repetir a Inter de 2009-10 e se tornar a segunda equipe italiana a obter uma tríplice coroa. Afinal, os bianconeri já haviam levantado as taças da Serie A e a da Coppa Italia – nesta última, Giorgione até marcou gol na final contra a Lazio e pode levantar o seu primeiro caneco com a braçadeira de capitão, já que Buffon não atuou na decisão. A Juventus teria pela frente um Barcelona estelar, mas tinha cacife para competir pela “orelhuda”.
Na trajetória continental, Giorgio viveu um dos seus momentos mais memoráveis com a camisa bianconera. Quando vencia o Real Madrid por 2 a 1, na primeira partida da ida das semifinais da Champions, parou um contra-ataque nos acréscimos do segundo tempo com um carrinho desenfreado em cima de Cristiano Ronaldo. Outro detalhe: a cabeça estava enrolada por ataduras, algo muito comum na carreira de Chiello, o que lhe rendeu algumas fotos inesquecíveis com turbantes improvisados.
Infelizmente, Chiellini não pode jogar a final devido a uma lesão muscular. Bonucci e Barzagli foram a dupla de zaga, mas não foram páreo para o Barcelona de Lionel Messi, Neymar e Luis Suárez. Derrota por 3 a 1 no estádio Olímpico de Berlim e a primeira prata de Giorgio na competição.
O BBC retornaria à estrutura principal da equipe de Allegri em 2016. Uma arrancada impressionante de 25 vitórias e um empate colocou o quinto scudetto consecutivo na sala de troféus da Juventus, que foi a primeira agremiação a conseguir tal feito em duas ocasiões – a primeira foi na década de 1930. No geral, foi a quarta vez na história do futebol italiano que tivemos uma pentacampeã seguida, sendo que as outras formações foram o Grande Torino dos anos 1940 e a Inter pós-Calciopoli. O entrosamento do trio de beques citado acima, aliás, seria crucial para a Nazionale.
Em 2010 e em 2014, a Itália passou por dois vexames em Copa do Mundo: consecutivamente, após ser campeã mundial, terminou eliminada na primeira fase. Na segunda vez, quando estava no grupo da morte, Giorgio foi um dos protagonistas de uma cena curiosa: em um jogo contra o Uruguai, foi mordido por Suárez, o que rendeu ao uruguaio uma punição de quatro meses sem poder jogar futebol.
“Eu também sou um grande filho da puta em campo e tenho orgulho disso”, afirmou o zagueiro, em sua autobiografia. Chiellini sempre esteve disposto a fazer o que fosse preciso para que seu time saísse vencedor. Faltas, puxões, provocações… Apesar de ser um cara leve e alto astral, jogando, era insuportável para seus adversários. E, para os rivais, agraciado por uma suposta falta de rigor da arbitragem.
Suas grandes campanhas com a Squadra Azzurra aconteceram em Eurocopas. Nas três primeiras de que participou, sem levantar troféus, é verdade. Em 2012, em sua segunda aparição no torneio, sob as ordens de Cesare Prandelli, ficou no quase: conquistou o vice-campeonato, parando na histórica Espanha de Xavi e Iniesta. Na edição seguinte, apesar de o grande destaque da competição ter sido Bonucci, era o sistema defensivo orquestrado novamente por Conte que levou a Itália às quartas de final, onde foi derrotada nos pênaltis pela Alemanha.
Sua partida de maior destaque foi nas oitavas de final, quando marcou contra a Espanha, no triunfo por 2 a 0. Aproveitando o rebote de uma cobrança de falta de Éder, empurrou para o fundo das redes e fez sua tradicional comemoração de King Kong, dando socos em seu próprio peitoral. O motivo? “Eu queria algo que me resumisse. Adriano imitou o Hulk e não queria copiá-lo. Então, no final, optei pelo King Kong”.
O momento que essa celebração ficou mais em evidência (e até chegou nos jogos eletrônicos) foi em 2017. A Juventus fazia outra campanha histórica na Champions League e o destino quis que o embate da decisão de 2015, contra o Barcelona, fosse reeditado nas quartas de final. Desta vez, foi um atropelo italiano: jogando em Turim, uma das melhores atuações da era Allegri terminou com um sonoro 3 a 0 em Turim para os donos da casa.
Quem fechou a conta depois de dois gols de Paulo Dybala foi Chiellini, de cabeça, coroando uma das melhores exibições dessa geração bianconera. O sonho acabou caindo por terra novamente no último passo. O Real Madrid de Zinédine Zidane passou o carro e goleou por 4 a 1 na finalíssima em Cardiff, no País de Gales, deixando o gosto amargo da prata para os italianos.
Na Velha Bota, a Juventus seguiu soberana até 2020. Para Giorgio, foram cinco taças da Supercopa Italiana e da Coppa Italia – considerando, nessa lista, também o caneco do mata-mata de 2021 – e, principalmente, nove títulos da Serie A em sequência. Chiello, que atuou em pelo menos um jogo em cada uma das campanhas, se tornou o único jogador da história a obter tal feito. A rigor, o zagueiro foi absoluto em quase todas essas temporadas, não tendo sido importante dentro de campo apenas em 2019-20, por conta da ruptura do ligamento cruzado de seu joelho direito.
Apesar dessa grave lesão, os últimos troféus foram alguns dos mais saborosos de sua passagem por Turim. Afinal, foi quando ele se estabeleceu como capitão bianconero: em 2018, 13 anos após a sua chegada ao Piemonte, em razão da saída de Buffon para o Paris Saint-Germain, Chiellini passou a ostentar a braçadeira de maneira oficial. Com ela, levantou duas taças da Serie A, duas Supercopas nacionais e o seu derradeiro título pela Juve. A já citada Coppa Italia de 2021, tendo Andrea Pirlo, ex-companheiro de equipe, como comandante.
Seu troféu mais importante com a camisa da Itália também foi obtido na reta final da carreira – e, claro, numa Eurocopa. Em sua última dança ao lado de Bonucci no miolo da defesa de uma seleção italiana renovada, o capitão Chiellini liderou a equipe de Roberto Mancini à bela conquista da Euro 2020 que, em virtude da pandemia de covid-19, foi adiada para o ano seguinte.
A decisão contra a Inglaterra foi vencida pela Itália nos pênaltis. Porém, um dos mais célebres momentos ocorreu com a bola rolando, tendo Chiello como protagonista. O zagueiro certamente será lembrado durante muito tempo por uma falta icônica: Bukayo Saka ia disparar em direção ao gol, na prorrogação, quando um puxão de camisa providencial impediu o avanço. Giorgio trocou o cartão amarelo, tão caro a si próprio, pela oportunidade de levantar a taça, com quase 37 anos.
Chiellini seguiu na Juventus e na seleção após a Euro, mas não por muito tempo: deu adeus a ambas em 2022. Pela Itália, a última de suas 117 aparições foi na derrota para a Argentina na Finalíssima, em Wembley. Empatado com Daniele De Rossi, Giorgio ocupa o quinto lugar na lista de atletas que mais vezes vestiram a mitológica camisa azul. Com a malha bianconera, seu posto é ainda mais alto: ultrapassou beques históricos, como Gaetano Scirea, e se colocou no pódio da Velha Senhora, com 561 partidas – somente Buffon (685) e Alessandro Del Piero (705) estão na sua frente. O beque ainda marcou 36 gols pela gigante de Turim.
Pensando num futuro como dirigente esportivo, o veterano Chiellini optou por terminar a carreira nos Estados Unidos. A língua inglesa não era estranha ao zagueiro, que é fluente e também um acadêmico de primeira. Não só é bacharel em Economia e Comércio na Universidade de Turim como também se tornou mestre em Administração e Gestão de Empresas ao defender o estudo sobre o clube pelo qual militava: “O modelo de negócio da Juventus FC em um contexto internacional”.
Atuando na Major League Soccer, pelo Los Angeles FC, pode também ficar perto de uma das suas primeiras paixões, o basquete. Um de seus ídolos de infância era a lenda do Los Angeles Lakers, Kobe Bryant, falecido em 2020. O zagueirão até tentou a sorte na modalidade, porém, sentiu que não ia ter futuro ali.
Na América do Norte, conquistou as últimas glórias da carreira – a Supporters’ Shield e a MLS Cup, em 2022 –, além de ter acumulado um vice do campeonato norte-americano e da Champions League da Concacaf. Chiello se aposentou do futebol após 830 jogos disputados e 51 gols marcados. “Agora é hora de começar novos capítulos, enfrentar novos desafios e escrever mais páginas importantes e emocionantes da vida”, afirmou, em sua despedida. Firme, como de praxe, o histórico zagueiro italiano logo transformou as palavras em atos: se tornou auxiliar de Steve Cherundolo no LAFC e ocupou o posto até julho de 2024.
Giorgio Chiellini
Nascimento: 14 de agosto de 1984, em Pisa, Itália
Posição: zagueiro
Clubes: Livorno (2000-04), Fiorentina (2004-05), Juventus (2005-22) e Los Angeles FC (2022-23)
Títulos: Serie C1 (2002), Europeu Sub-19 (2003), Bronze Olímpico (2004), Serie A (2012, 2013, 2014, 2015, 2016, 2017, 2018, 2019 e 2020), Coppa Italia (2015, 2016, 2017, 2018 e 2021), Supercopa Italiana (2013, 2014, 2016, 2019 e 2021), Eurocopa (2021), Supporters’ Shield (2022) e MLS Cup (2022)
Seleção italiana: 117 jogos e 8 gols