O extracampo pode ser determinante para a trajetória de um atleta. No caso de Fábio Bilica, ex-zagueiro de times como Grêmio, Venezia, Brescia, Ancona e Fenerbahçe, uma sucessão de acontecimentos e boatos quase fez a sua carreira desmoronar: foi esquecido na seleção brasileira após o fiasco na Olimpíada de Sidney, em 2000, e, posteriormente, terminou sendo alvo de um boato de caráter homofóbico. Este amálgama de ocorrências praticamente minou o longo itinerário do defensor no futebol e o relegou a atuar por clubes pequenos em grande parte dele. Além disso, o beque colecionou expulsões, episódios de indisciplina e se envolveu em diversos casos judiciais.
Viciado em chupar pirulitos da marca Bilica durante a infância, Fábio Alves da Silva adotou o apelido que recebeu dos amigos e passou a utilizar o nome do doce nos gramados e na vida. O seu primeiro filho, inclusive, foi batizado com a alcunha.
Embora tenha nascido em Campina Grande, segunda cidade mais populosa da Paraíba, Bilica começou a jogar profissionalmente na Bahia: foi prospectado e revelado pelo Vitória em 1996, na mesma safra de Allan Delon. No início daquela mesma temporada, o rubro-negro emprestou o defensor de 17 anos ao modesto Vila Branca, para a sua primeira experiência profissional – que durou até o fim do Campeonato Paraibano. Na volta, foi campeão baiano em 1997 e 1998.
Em seguida, Bilica deixou o Brasil e, com apenas 19 anos, fechou com o Venezia – que também pescou o defensor Marcone e o meia Tácio no próprio Vitória. Os arancioneroverdi haviam ascendido à elite na temporada anterior e almejavam a permanência sob a batuta de Walter Novellino, comandante do acesso, do diretor de futebol Giuseppe Marotta e do presidente Maurizio Zamparini. Na empreitada de montar um time competitivo contra os titãs da Serie A, os diretores não fizeram loucuras: além do zagueiro brasileiro, o compatriota Tuta e os italianos Filippo Maniero Daniele Carnasciali e Massimo Taibi foram algumas das contratações. Era preciso torcer por um milagre.
Na primeira metade do campeonato, o Venezia cumpriu à risca o que se imaginava dele e se manteve na parte inferior da tabela. A situação, no entanto, parecia insustentável daquela maneira. A chegada de Álvaro Recoba, na janela de inverno, fez o time ganhar fôlego no segundo turno e evitar o rebaixamento de forma quase milagrosa.
Bilica teve uma participação relativamente efetiva na campanha de permanência: foram 12 jogos como titular, incluindo o duelo decisivo contra a Inter, na penúltima rodada. No entanto, acabou expulso três vezes – média de um cartão vermelho a cada quatro aparições. Apesar de seus altos e baixos no futebol italiano, foi convocado para a Copa do Mundo Sub-20, onde jogou todas as partidas até a eliminação verde e amarela nas quartas de final. Aliás, após se ausentar em abril, por conta da competição de seleções, o paraibano retornou justamente para o compromisso com os nerazzurri, citado acima.
O Venezia poderia se consolidar como um time da máxima divisão italiana na temporada seguinte, mas o raio não caiu pela segunda vez no mesmo lugar. Novellino se despediu do comando dos lagunari e assumiu o Napoli – assim como Recoba, que teve a permanência em La Serenissima vetada pela Inter. Ex-companheiro de Bilica no Vitória, clube com o qual os vênetos mantinham bom relacionamento, Dejan Petkovic recebeu a responsabilidade de substituir o uruguaio, mas mas não correspondeu às expectativas e, meses depois, voltou ao Brasil. Os leões alados não sustentaram mais um ano na elite e ficaram 13 pontos atrás do Bari, primeiro concorrente fora da zona da degola.
Com três técnicos diferentes ao longo da temporada, Fábio Bilica teve mais minutos em campo do que em 1998-99, sendo utilizado frequentemente por Luciano Spalletti na primeira passagem do treinador e por Francesco Oddo na reta final da campanha. Na curta experiência de Giuseppe Materazzi, o paraibano atuou somente uma vez, mas num jogo que marcou a sua vida.
Era a estreia de Beppe, pai do zagueiro Marco Materazzi, no comando do Venezia. Jogo mais difícil não havia: os arancioneroverdi encaravam o Milan, detentor do título italiano, em pleno San Siro. Depois de segurarem o Diavolo no primeiro tempo, os visitantes acabaram sucumbindo depois do intervalo, apesar de terem reclamado bastante da arbitragem de Roberto Rosetti.
Bilica se envolveu em dois dos três gols do Milan naquela tarde. No segundo, de George Weah, se atrapalhou juntamente com o capitão Gianluca Luppi e permitiu que o atacante ficasse livre, cara a cara com o arqueiro Fabrizio Casazza. No terceiro, foi protagonista de forma positiva. O goleiro foi expulso ao cometer pênalti sobre Andriy Shevchenko e, como o Venezia já havia feito três substituições, Fábio tomou seu lugar debaixo das traves. O brasileiro se adiantou e defendeu a cobrança do craque ucraniano, mas nada pode fazer no rebote, quando a retaguarda dos lagunari bateu cabeça e não impediu que Pierluigi Orlandini marcasse. O paraibano passou mais 15 minutos com as luvas na mão e manteve as redes intactas dali em diante.
Contando com a insólita experiência de ser goleiro por um dia, Bilica participou de 18 jogos na Serie A e de três na Coppa Italia em 1999-2000 – nessa segunda competição, escapou da humilhante derrota por 5 a 0 para a Lazio no jogo de ida das semifinais. Mesmo pouco conhecido no Brasil, Fábio tinha credibilidade com Vanderlei Luxemburgo e, após ser campeão do torneio pré-olímpico, era nome certo no embarque para a Olimpíada de 2000, em Sidney. Mas o Venezia não gostou da ideia de liberar o zagueiro.
O clube italiano escondeu os faxes enviados pela CBF, que solicitavam a dispensa do defensor. Só depois que amigos deram parabéns através de telefonemas é que Bilica soube da convocação. No final das contas, o imbróglio se resolveu e o passaporte do paraibano foi carimbado. Mal sabia ele, porém, que o Venezia quase o livrou do início de uma série de infortúnios. O Brasil caiu para Camarões nas quartas de final e, apesar de ter sido um dos poucos a jogar bem durante o certame, o zagueiro naufragou juntamente com a maioria daquele grupo e nunca mais vestiu a amarelinha.
No retorno à Bota, o brasileiro encontrou o novo técnico Cesare Prandelli, que tinha a missão de devolver os arancioneroverdi ao topo da pirâmide. O bate-volta se concretizou, inclusive com o primeiro gol do zagueiro na Europa. Em 2001-02, porém, Fábio se envolveu em polêmicas depois que Roberto Baggio, do Brescia, sofreu uma entorse no joelho após entrada de Antonio Marasco, meio-campista do Venezia. Depois, o craque italiano revelou que Bilica teria lhe intimidado com as seguintes palavras: “Vou quebrar sua perna. Você não vai para a Copa do Mundo”.
De fato, Baggio não jogou a Copa do Mundo. Robi teve três lesões sérias na temporada, incluindo a ruptura dos ligamentos cruzados num jogo com o Parma, três meses após o duelo com o Venezia, e até se recuperou a tempo, mas foi excluído da lista de Giovanni Trapattoni, que apontou os problemas físicos do trequartista como motivo para não tê-lo chamado.
A suposta ameaça de Bilica foi investigada por autoridades da Federação Italiana de Futebol – FIGC, que chegaram a ouvir um depoimento do jogador revelado pelo Vitória, mas nenhuma medida disciplinar foi tomada. As partes selaram a paz e, curiosamente, o Brescia reuniria os ex-desafetos um ano depois, muito por conta de mais um rebaixamento do Venezia para a Serie B. O zagueiro somou 81 jogos e anotou um gol durante sua passagem pelo Vêneto.
No início do verão europeu, Fábio acertou com o Palermo para disputar a segundona – foi levado por Zamparini, que tinha acabado de vender sua participação no Venezia para iniciar investimentos no time siciliano. Seis meses depois, ele não titubeou em jogar a primeira divisão ao ser contactado pelo Brescia.
Bilica se tornou companheiro e até amigo de Baggio, mas a amizade com o craque do time não comoveu o técnico Carlo Mazzone. Preterido por Dario Dainelli e pelo croata Anthony Seric, entrou 11 vezes em campo e foi expulso em duas delas. O jogador paraibano passou longe de encantar os andorinhas, que ficaram na nona posição da Serie A, e o namoro se encerrou com o Brescia no fim da temporada 2002-03.
Com mercado no futebol italiano, o defensor assinou com o Ancona, onde dividiu vestiário com o atacante brasileiro Mário Jardel. O time marquesão voltava à Serie A depois de uma década de ausência e, já na rodada de estreia, mostrou que viveria fortes emoções com Bilica na retaguarda. Na derrota para o Milan, Fábio foi expulso após se desentender com Paolo Maldini. “Maldini esbarrou em mim depois que a bola passou. “Quando saí da área, senti um golpe por trás, no pescoço e no rosto, e reagi”, disse o beque, em entrevista da época ao jornal La Repubblica. “Todas as vezes sou rotulado como vilão, mas não sou, nunca fiz mal a ninguém”, acrescentou.
Bilica continuou como titular e participou de uma campanha desastrosa: 21 derrotas e sete empates entre setembro e abril. O primeiro triunfo do Ancona na Serie A ocorreu sobre o Bologna, na 29ª rodada, quando o brasileiro já havia sido relegado ao banco de reservas – sequer atuaria dali em diante – e o time já estava enterrado na lanterna. Até hoje, nenhuma outra equipe demorou tantas jornadas para vencer na primeira divisão.
O técnico Giovanni Galeone até tentou conter o desastre iniciado por Leonardo Menichini e continuado com Nedo Sonetti, mas não era possível. O Ancona foi rebaixado e a situação piorou depois disso: o time teve a inscrição na Serie B negada devido às contas no vermelho. Os dorici declararam falência e, apesar de terem sido admitidos na quarta divisão, foram obrigados a rescindir o contrato com todos os jogadores.
Foi o último ano de Bilica na Itália, que encerrou sua militância na Bota com sete expulsões em seis temporadas. O defensor voltou ao futebol brasileiro em busca de visibilidade e para, talvez, beliscar uma convocação para a Seleção. Ele chegou a ser anunciado como novo reforço do Goiás antes do início do Brasileirão, mas a negociação acabou não sendo concluída.
No fim das contas, o zagueiro foi contratado pelo Grêmio, onde viveria um novo período turbulento. Seu passado na Bota respingou em um dos primeiros treinos no Tricolor Gaúcho. Uma italiana chamada Vittoria apareceu no CT para cobrar a pensão da filha de 10 meses, que carregava no braço. Depois, Bilica fez parte de um rebaixamento humilhante para a Série B, chegou a cabular as atividades do clube por uma semana e brigou com o técnico Cláudio Duarte durante um treinamento, o que encerrou sua passagem por Porto Alegre. Ele ainda teve seu nome envolvido em um suposto episódio de relação homossexual, conhecido como “poltrona 36”, juntamente com Capone. Os dois defensores enfrentaram problemas após o caso difamatório e o paulista chegou a entrar em severa depressão.
Sem sucesso no futebol brasileiro, Bilica voltou à Europa em 2005 e, como um andarilho da bola, vagou por Alemanha, França e Romênia até se consolidar no Fenerbahçe. Foram anos complicados para o zagueiro, que disputou (e ganhou) a segundona germânica pelo Köln, a terceirona alpina pelo Istres e se refugiou num país distante até dar a volta por cima na também longínqua Turquia. Primeiro, com a camisa do Sivasspor; depois, pelo Fener.
Bilica jogou três temporadas com a camisa do gigante turco e foi campeão nacional – no período, foi acusado de participar de uma orgia na concentração, juntamente com André Santos, Vederson e Colim Kazim-Richards. O defensor permaneceu na Turquia entre 2012 e 2015, no Elazigspor, e depois retornou ao Brasil para jogar em times de menor expressão. Muitos, aliás: foram nove até se aposentar, sendo o mais relevante deles o Fluminense de Feira.
O grande número de times de divisões inferiores nos estaduais foi proporcional à quantidade de conflitos em que Fábio Bilica se envolveu. O zagueiro, que pendurou as chuteiras em 2021, foi preso seis vezes por não pagar pensão alimentícia de seus filhos e chegou a ser indiciado por estupro, cárcere privado, sequestro e corrupção de menores – estes casos, porém, não tiveram andamento até agora. Sem dúvidas, o paraibano é mais lembrado pelo histórico de indisciplina e confusões do que por seu rendimento como atleta.
Fábio Alves da Silva, o Fábio Bilica
Nascimento: 4 de janeiro de 1979, em Campina Grande (PB)
Posição: zagueiro
Clubes: Vila Branca (1996), Vitória (1996-98), Venezia (1998-2002), Palermo (2002-03), Brescia (2003), Ancona (2003-04), Goiás (2004), Grêmio (2004), Köln (2005-06), Istres (2006-07), Universitatea Cluj (2007-08), Sivasspor (2009-09), Fenerbahçe (2009-12), Elazigspor (2012-15), Auto Esporte (2017), São Paulo Crystal (2017), Atlético Cajazeirense (2018), Batatais (2019), Miramar (2019), América de Pedrinhas (2020), São Francisco (2020), Fluminense de Feira (2021) e Forte Rio Bananal (2021)
Títulos como jogador: Copa Maria Quitéria (1998), Pré-Olímpico Sul-Americano (2000), 2.Bundesliga (2005), Supercopa da Turquia (2009), Süper Lig (2010) e Copa da Turquia (2012)